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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Quem tem TCU tem medo

A possível transferência do lucro contábil do BC para o Tesouro Nacional agora em discussão não implica redução da dívida, nem melhora das contas fiscais. Pode ajudar o Tesouro na rolagem, mas à custa de piora adicional no perfil da dívida.

Hoje quero falar de um assunto que pode soar esotérico, não por ser místico, mas por ser domínio de uns poucos e, apesar disso, ainda importante para entender as dificuldades que enfrentamos: a transferência de lucros do BC para o Tesouro Nacional, um valor que pode atingir R$ 440 bilhões. Já adianto que, apesar do montante considerável, não é a salvação da lavoura das contas públicas, mas precisamos entender o porquê.

O Tesouro é o único acionista do Banco Central e também seu correntista, já que seu caixa se encontra na chamada Conta Única no próprio BC. A arrecadação de impostos é lá depositada, assim como o dinheiro que o Tesouro toma emprestado; já as despesas (pessoal, juros, previdência, etc.) são pagas com os recursos da Conta Única, da mesma forma que as amortizações da dívida pública.

Como o Tesouro registra déficits (isto é, as despesas superam a arrecadação) e há sempre uma parcela da dívida vencendo, precisa emitir não só dívida nova para cobrir a diferença, mas também um extra para quitar os boletos cuja data de pagamento se aproxima. Quando as condições de mercado são boas, em termos de prazos e custos, os gestores da dívida costumam colocar um tanto a mais de títulos, deixando um “colchão” de liquidez na Conta Única.

Tal “colchão” existe para permitir o pagamento de despesas e amortização da dívida quando, por quaisquer motivos, o Tesouro tem dificuldades para vender títulos nos prazos (mais longos) e custos (mais baixos) preferidos. Este dinheiro é remunerado à taxa Selic, ou seja, o Tesouro recebe pelo excedente de recursos depositados na Conta Única aproximadamente aquilo que lhe custa para colocar estes títulos a mais no mercado.

Ocorre que o BC gera lucros e prejuízos, tipicamente relacionados aos efeitos das variações do dólar. Como regra, quando o dólar fica mais caro o BC ganha; caso contrário, perde. Até a entrada em vigor da Lei 13.820/19, sempre que o BC registrava lucro, este era transferido para a Conta Única; em caso de prejuízo, o Tesouro capitalizava o BC sob a forma de títulos públicos.

 A lei, contudo, passou a exigir que o resultado oriundo desses ganhos passasse a constituir uma conta de “reserva de resultados”. Assim, quando o dólar sobe, esta conta de reserva de resultados aumenta; quando cai, se reduz, sem necessidade nem de transferência ao Tesouro, nem de capitalização por parte dele. Simplificando, a lei permitiu que o BC poupasse estes lucros (contábeis) para os dias chuvosos, evitando a “troca de chumbo” com o Tesouro Nacional.

Há, porém, salvaguardas. O artigo 5º estabelece que “mediante prévia autorização do Conselho Monetário Nacional, os recursos existentes na reserva de resultado (...) poderão ser destinados ao pagamento da Dívida Pública Mobiliária Federal quando severas restrições nas condições de liquidez afetarem de forma significativa o seu refinanciamento”.

Trata-se precisamente da situação hoje enfrentada. Por força das turbulências de mercado resultantes da epidemia, o Tesouro teve que cancelar diversos leilões de títulos. Além disso, preocupações quanto à capacidade do governo repagar a dívida têm levado ao aumento dos prêmios de risco, encarecendo a colocação para prazos mais longos, apesar da queda da taxa Selic.



Como se vê no gráfico acima, para prazos além de cinco anos os juros requeridos para comprar papéis do Tesouro são maiores hoje do que no final de 2019, ainda que inferiores aos que vigoraram no pior momento da crise financeira (no final de março). Como o Tesouro não está disposto a sancionar estas taxas, vem utilizando seu colchão, a cada dia mais fino.

É neste contexto que se insere a possibilidade de transferências dos lucros em reserva do BC para a Conta Única. O valor, estimado ao redor de R$ 440 bilhões, poderia ser usado para pagar a dívida vincenda (mas não para pagar despesas; como se carimbar dinheiro fosse algo exequível). Note-se que a dívida mobiliária ao final de junho atingia R$ 4,15 trilhões, dos quais praticamente R$ 900 bilhões vencendo no prazo de 12 meses. Falamos, portanto, de pouco mais de 10% da dívida e cerca de metade dos vencimentos em um ano, valor nada trivial.

Aparentemente, portanto, poderíamos quitar 10% da dívida hoje, resolvendo metade da rolagem nos próximos 12 meses. Por que isto pode ser uma rima, mas não uma solução?

Porque o pagamento da dívida (assim como o das despesas do Tesouro) envolve criação de reservas bancárias: o dinheiro que sai da Conta Única é depositado nas contas de reservas que bancos mantêm no BC. O excesso de reservas faria com que a taxa Selic caísse abaixo da meta definida pelo Copom, a menos que o BC compensasse este movimento (como o faz), trocando o excesso de reservas bancárias por títulos públicos da sua carteira, vendendo-os com compromisso de recompra em alguma data futura (as chamadas “operações compromissadas”).

Assim, a dívida que desparece por um lado (ao ser amortizada com recursos da Conta Única) reaparece por outro (compromissadas). A propósito, os saques líquidos da Conta Única este ano somaram R$ 397 bilhões; no mesmo período, as operações com títulos públicos oficiais (isto é, a colocação de compromissadas) acumularam R$ 348 bilhões, não por acaso.

A transferência dos lucros do BC, portanto, resolve o problema imediato do Tesouro, a rolagem da dívida, mas não o problema da dívida em si, imune a mágicas contábeis.

Obviamente o BC poderia, alternativamente, deixar que a Selic ficasse abaixo do nível que considera adequado, caso não anulasse a criação de reservas por meio das operações compromissadas. Tal postura, porém, geraria outros problemas

Como pude explorar neste espaço, quando o BC permite que a Selic se desvie do nível adequado para manter a inflação esperada na meta, ele perde o controle da inflação, como aconteceu, diga-se, ao longo do mandarinato de Alexandre Pombini na instituição.

Dito de outra forma, não se resolve o problema da dívida com criação de reservas bancárias, mas sim com o esforço persistente para manter as contas públicas em ordem, justamente o que falta ao país.

A disparada das taxas longas de juros, mostrada acima, é apenas o sintoma mais claro desta síndrome, fenômeno que os “terroristas fiscais” entendem, mas que os mais simplórios convenientemente ignoram.


(Publicado 26/Ago/2020)

terça-feira, 25 de agosto de 2020

O teto e a raça: o que dizem os números

Argumenta-se que o teto de gastos seria racista por limitar o gasto social, prejudicando a população negra. Mostramos, porém, que houve forte aumento do gasto social a partir de 2016. Por outro lado, a elevação das despesas com o funcionalismo agrava a desigualdade racial, justificando reformas que reduzam seu impacto.

Pegando carona no movimento que justificadamente se formou na esteira do assassinato de George Floyd, em Minneapolis, a última investida contra o controle de gastos públicos no Brasil tenta associar tal política ao racismo. Afirma-se que as medidas de contenção das despesas, expressas em particular no teto constitucional, limitam os gastos sociais; logo, afetam os mais pobres.

Como nada menos do que 10,1 milhões dentre os 13,5 milhões de pobres no país em 2018 são pretos ou pardos (ou seja, 75% da população pobre, bem mais do que a participação de pretos e pardos na população em geral, 55,8%), segue-se que a limitação de gastos sociais oriunda do teto afeta mais este grupo. Portanto, o teto de gastos é racista, QED.

O silogismo é impecável; já a hipótese central – a saber, a limitação dos gastos sociais – não se sustenta à luz da evidência existente.

A tabela abaixo apresenta o conjunto das despesas do governo central calculado segundo metodologia do Manual de Estatísticas de Finanças Públicas do FMI, mas por uma ótica distinta daquela que normalmente apresento neste espaço (voltarei a ela mais à  frente), destacando no caso a despesa por função de governo, e não pela natureza do gasto. Os dados são apresentados para os anos de 2010 (início da série), 2016 (ano de adoção do teto de gastos) e 2019 (o mais recente), a preços constantes de 2019, usando o deflator implícito do PIB.

Despesa por função de governo – R$ bilhões de 2019

 

2010

2016

2019

% total

2016-19

DESPESA TOTAL

2.035,0

2.408,7

2.384,5

100,0

-24,2

Serviços públicos gerais *

793,1

997,2

873,7

36,6

-123,5

Transações da dívida pública

481,2

676,7

517,5

21,7

-159,1

Transferências entre diferentes níveis de governo

230,5

250,5

284,9

11,9

34,5

Defesa

54,0

47,8

51,4

2,2

3,6

Ordem pública e segurança

75,5

80,4

82,6

3,5

2,2

Assuntos econômicos

94,2

83,0

99,3

4,2

16,3

Proteção ambiental

15,0

6,9

6,7

0,3

-0,2

Habitação e serviços comunitários

10,3

7,1

9,1

0,4

2,0

Saúde

123,7

143,3

153,3

6,4

10,0

Lazer, cultura e religião

5,6

5,2

4,0

0,2

-1,3

Educação

140,7

166,3

166,2

7,0

-0,1

Proteção social

722,9

871,4

938,2

39,3

66,8

Memo:

 

 

 

 

 

Despesa total (-) transações da dívida pública

1.553,8

1.732,1

1.867,0

78,3

134,9

* Há outras rubricas nesta conta, não apresentadas por questão de espaço e relevância

Fonte: STN

Houve, como se nota, redução visível da despesa total entre 2016 e 2019, expressa em queda de R$ 24 bilhões no período. Tal diminuição, porém, resulta essencialmente da forte contração de gastos com juros brutos (nesta terminologia apresentados como “transações da dívida pública”), de R$ 677 bilhões em 2016 para R$ 518 bilhões em 2019, corte de quase R$ 160 bilhões no período.

Já os gastos primários aumentaram R$ 135 bilhões entre 2016 e 2019. Metade disso foi direcionado à rubrica de “proteção social”, que engloba desde previdência à assistência social. Em 2019 esta rubrica representou 39,3% dos gastos do governo central; em 2016 equivalia a 36,2% do total.

Outros gastos tipicamente descritos como “sociais” aumentaram no período, como “saúde” (aumento de R$ 10 bilhões), “habitação e serviços comunitários” (R$ 2 bilhões a mais), ou ficaram virtualmente estáveis, como no caso de “educação” (queda de R$ 80 milhões).

Vale dizer, não há qualquer evidência que o teto de gastos tenha implicado redução das despesas sociais no país; ao contrário, os dados registram aumento considerável desde a adoção do mecanismo.

Já a tabela abaixo mostra as despesas do governo central por natureza, como “remuneração de empregados”, “uso de bens e serviços”, etc., já apresentadas ao leitor em colunas anteriores (lembrando que “aquisição de ativos não financeiros” é um nome complicado para o investimento público).

 Despesa do governo central – R$ bilhões de 2019

 

2010

2016

2019

% total

2016-19

DESPESA TOTAL

2.035,0

2.408,7

2.384,5

100,0

-24,2

Remuneração de empregados

286,0

280,5

305,8

12,8

25,3

Uso de bens e serviços

66,4

63,5

57,0

2,4

-6,5

Juros

481,2

676,7

517,5

21,7

-159,1

Subsídios

10,8

30,3

16,4

0,7

-13,9

Transferências / Doações

429,8

449,9

484,1

20,3

34,2

Benefícios sociais

690,1

848,1

922,1

38,7

74,0

Outras despesas

18,5

37,3

64,9

2,7

27,6

Aquisição de ativos não financeiros

52,3

22,4

16,6

0,7

-5,8

Memo:

 

 

 

 

 

Despesa total (-) juros

1.553,8

1.732,1

1.867,0

78,3

134,9

Fonte: STN

 Há, é claro, forte sobreposição mesmo sob óticas distintas: o aumento de R$ 74 bilhões em benefícios sociais, por exemplo, é quase todo destinado à proteção social. Já outros casos revelam dinâmicas interessantes, com apelo social bem mais baixo.

Por exemplo, do aumento de R$ 25 bilhões em remuneração de empregados, R$ 10,7 bilhões foram destinados à educação, enquanto o total das despesas em educação ficou – como vimos – praticamente estável, indicando que provavelmente os prestadores de serviços se beneficiaram mais do que seus usuários. Já no que se refere à saúde, a remuneração de empregados respondeu por 40% do aumento do gasto, enquanto proporções ainda maiores são observadas no caso de defesa e ordem pública.

Como deve ficar claro a partir dessas observações, o teto de gastos não impediu a expansão das despesas de proteção social, muito pelo contrário. Não evitou, todavia, que grupos mais bem localizados junto aos centros de poder conseguissem aumentar a extração de renda do restante da sociedade, em particular o funcionalismo.

De fato, segundo dados da PNAD, o rendimento médio real dos estatutários nos últimos 12 meses é próximo a R$ 4,3 mil/mês, mais de duas vezes maior que o de todas as demais categorias, pouco superior a R$ 2 mil/mês.

Curiosamente, porém, a resistência a reformas que reduzam os gastos com o funcionalismo sempre foi forte nos grupos autodenominados progressistas, como no caso da previdenciária e, mais recentemente, a administrativa.

 Segundo trabalho de Tatiana Silva e Josenilton Marques da Silva, negros compunham apenas 40% do funcionalismo federal em 2012. Houvesse, portanto, preocupação real com políticas que prejudicam a população negra, os “progressistas” deveriam estar na linha de frente pela reforma, mas ainda não tive a chance de vê-los lá.

Em resumo, além do impacto da instabilidade macroeconômica sobre os mais pobres, tema já explorado por outros analistas, o exame dos dados disponíveis não indica que o teto de gastos tenha impedido o avanço dos gastos sociais. Ao mesmo tempo, propostas de reformas para conter gastos obrigatórios, principalmente no que se refere ao funcionalismo, reduziriam também a desigualdade racial no país.



(Publicado 19/Ago/2020)