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segunda-feira, 28 de junho de 2021

No tom

A comunicação que se seguiu à decisão do Copom reforça o compromisso do BC com a meta de inflação e deve ajudar a manter as expectativas para o ano que vem sob controle.

A decisão do BC na semana passada, um aumento da Selic de 3,50% para 4,25% ao ano, não foi uma surpresa. Como, de resto, também não foi a eliminação da expressão “normalização parcial”, uma sinalização do Comitê de Política Monetária (COPOM) sobre sua intenção de manter a taxa de juros abaixo de 6,5% ao ano, substituída por “normalização da taxa de juros para patamar considerado neutro” (isto é, 6,5% ao ano), que discutirei em mais detalhes à frente.

Se houve algo inesperado na reunião do COPOM foi o aviso que, muito embora o BC ainda pense em repetir a magnitude do ajuste em sua próxima reunião (no dia 4/8), o aumento pode ser ainda maior, caso as expectativas de inflação para 2022 continuem a se deteriorar, mensagem reforçada na Ata da reunião, divulgada há pouco.

Fonte: FOCUS
Como se vê acima, analistas que contribuem para a pesquisa FOCUS, esperavam, há poucos meses, que a inflação, depois de desviar consideravelmente para cima da meta em 2021, retornaria a ela em 2022, uma indicação na crença da capacidade do BC em impedir que os fatores que elevaram a inflação este ano contaminassem o próximo. Isto, porém, deixou de ser verdade.

Não se trata, é bom deixar claro, de sangria desatada. As expectativas ainda se encontram algo como 0,3% acima da meta para o ano que vem, nada extraordinário. A causa do desconforto do BC é menos com a magnitude da diferença e mais com o fato de ela ocorrer quando ainda faltam 18 meses para o final de 2022, ou seja, tempo suficiente para que os aumentos de preços de commodities se dissipem e o BC calibre a taxa de juros para fazer com que a inflação convirja à meta. Posto de outra forma, sugere que analistas, de alguma forma, duvidam da disposição do BC em trazer a inflação de volta à trajetória de metas.

A origem da dúvida pode estar na própria expressão agora removida da comunicação do BC.

Quando iniciou o ciclo de aperto monetário em março, o COPOM anunciou também que pretendia fazer uma “normalização parcial” da taxa de juros, ou seja, embora elevasse a Selic, imaginava que não seria necessário trazê-la até seu nível considerado “neutro” (que não estimula, nem desestimula, o crescimento na comparação com o seu ritmo potencial, em torno de 2,0-2,5% ao ano no longo prazo), que o próprio BC parece estimar se encontrar próxima ao supramencionado 6,5%.

Tal afirmação foi interpretada como possível falta de vontade para combater a inflação, a tal ponto que na reunião seguinte, em maio, o BC tentou elucidar a questão, adicionando que “não há compromisso com essa posição e que os passos futuros da política monetária poderão ser ajustados para assegurar o cumprimento da meta de inflação”. Mesmo assim, analistas parecem ter continuado a duvidar da intenção do BC, fenômeno que, diga-se, pode ocorrer também com a intepretação acerca da “normalização da taxa de juros para patamar considerado neutro”.

Neste sentido, é bem vindo o esclarecimento constante da Ata, em que o BC afirma que:

O compromisso inequívoco do Banco Central é com a convergência da inflação para a meta no horizonte relevante e os passos futuros da política monetária são livremente ajustados com esse objetivo, conforme novas informações se tornam disponíveis.”

O tom mais duro da comunicação, sinalizando a possibilidade de um aumento de 1 ponto percentual na Selic em agosto, e a mensagem da Ata reforçam o foco na inflação e devem ajudar a manter as expectativas sob controle.

O desafio do BC quanto à inflação é claro. Embora a batalha de 2021 já esteja perdida, ainda lhe cabe evitar que o impacto do aumento dos preços agora, mais concentrado nos produtos afetados pelo dólar, contamine os demais. Neste sentido, foi importante o posicionamento expresso na Ata.

Pessoalmente acredito que, face à severidade do choque, há certamente o risco de o BC não encerrar o ciclo de aperto em 6,5%, conforme planejado, chegando um tanto acima deste patamar. Parte por força dos desenvolvimentos que já conhecemos; parte ainda maior por conta da dinâmica da sucessão presidencial que aponta para um quadro de políticas econômicas impalatáveis dentre os favoritos ao cargo.



(Publicado 23/Jun/2021)

terça-feira, 22 de junho de 2021

O suspeito de sempre

O aumento dos preços das commodities deveria ter levado ao fortalecimento do real frente ao dólar. O desempenho fiscal é o principal suspeito para que o contrário tenha ocorrido, o que o torna também a razão real da aceleração inflacionária.

Preços internacionais de commodities atingiram seu nível mais elevado desde agosto de 2014. Embora ainda bastante inferiores ao pico observado pouco antes da crise financeira de 2018, a recuperação é expressiva: mesmo deixando de lado a queda abrupta do ano passado, falamos de preços cerca de 80% mais altos do que o observado no começo de 2016. Na esteira da recuperação das commodities, os preços médios dos produtos exportados pelo Brasil também subiram, ainda que de forma menos impressionante, como mostrado abaixo.

Fontes: FMI e Funcex
Não há grande surpresa quanto à correlação estreita entre preços de commodities e preços médios das exportações brasileiras. Historicamente, algo em torno de 60% do que exportamos pode ser descrito como commodity. Note-se que não se trata de sinônimo de “produtos primários”, categoria que usávamos até há pouco para classificar nossas exportações. No sentido aqui empregado, commodity é uma mercadoria homogênea (isto é, não diferenciada), cujo preço é geralmente formado no mercado internacional.

Produtos primários (como, por exemplo, petróleo, soja em grão, ou minério de ferro) são commodities, mas vários produtos manufaturados (aço ou combustíveis) também o são. A questão essencial, portanto, é a capacidade de diferenciação do produto, isto é, se, como no caso de automóveis, ou aviões, ou smartphones, há a possibilidade de caracterização do bem por meio de modelos e marcas, o que certamente não é o caso, seja para um barril de petróleo, seja para um perfil de aço.

O Brasil é essencialmente um exportador de commodities, exceto em seu comércio com as demais economias sul-americanas, para as quais seu perfil é mais inclinado para o lado de produtos diferenciados.

Assim, quanto mais altos os preços de commodities, tipicamente mais altos são os preços médios das nossas exportações. Ainda mais importante, uma elevação dos preços de commodities costuma fazer com que o preço das coisas que exportamos suba mais do que o preço das coisas que importamos (apesar da relevância do petróleo entre estas últimas).

Em economês denominamos esta relação (preços das exportações comparados aos preços das importações) termos de troca. Termos de troca mais elevados significam que obtemos mais coisas em troca do mesmo volume exportado, processo que permite elevação do consumo doméstico: 1 tonelada de minério de ferro compra mais smartphones (ou qualquer outro produto importado) do que fazia em 2016. Apesar de preços das exportações estarem ainda 24% abaixo do seu maior valor, em março deste ano os termos de troca se encontravam muito próximos ao pico histórico dos últimos 41 anos, registrados no final de 2011.

Fonte: Funcex

Tal processo se encontra na raiz da melhora recente das contas externas. As importações já se recuperaram da queda observada no ano passado em função do colapso da atividade; a bem da verdade, hoje superam em cerca de 15% o registrado às vésperas da crise. Já as exportações, impulsionadas pelos preços em alta, se encontram no seu maior valor mensal (US$ 25 bilhões, ajustado à sazonalidade), 40% acima do registrado pré-crise e 15% além do pico anterior, em outubro de 2011 (não por acaso, nosso melhor momento de termos de troca)

Normalmente isto levaria a uma forte apreciação do real face ao dólar. Apesar de o real ter ganho alguma força nos últimos meses, não parece refletir a intensidade dos ganhos de termos de troca. De fato, no último trimestre de 2011, já corrigido pela diferença entre a inflação brasileira (69%) e a americana (8%) desde então, um dólar custava em torno de R$ 2,80, bem mais barato do que hoje.

Obviamente, termos de troca (portanto preços de commodities) não são os únicos determinantes do valor do dólar ajustado à inflação, ou seja, outras variáveis podem estar atuando em sentido contrário.

A diferença entre taxas de juros (para aplicações por um ano no Brasil e aplicações pelo mesmo período nos EUA), por exemplo, caíram de 10% ao ano naquele momento para 6% ao ano agora, mas tal diferença não consegue explicar a magnitude um aumento tão expressivo do preço do dólar ajustado à inflação.

Já o “apetite global por risco”, medido pelo índice de volatilidade das ações norte-americanas (ou melhor, pelo seu inverso), é bem maior do que naquele período. Pensando bem, se há gente disposta a comprar non-fungible tokens, deve haver muito mais dispostos a comprar o real. Vale dizer, aversão a risco não parece ser a explicação para o fenômeno.

O que sobra, no final das contas, é a percepção bem maior de risco fiscal ligado à evolução da dívida e das contas públicas hoje comparada àquele momento. Embora algo reduzido nos últimos meses, em boa parte pela corrosão inflacionária da dívida, como exploramos semana passada, este risco é bem maior que o observado em 2011, quando a dívida equivalia a metade do PIB (contra 85% do PIB hoje) e o superávit primário recorrente (livre da “contabilidade criativa”) se acercava de 2% do PIB (contra um déficit de magnitude similar hoje).

O aumento do risco fiscal é, portanto, o suspeito mais provável por trás da fraqueza da moeda, atuando no sentido oposto ao do impacto dos preços das commodities (sobre os termos de troca), e permitindo assim que a elevação dos preços em dólares se torne aumento ainda maior medida em reais, como atestam os índices de preços por atacado.

O canal fiscal é, portanto, a origem da piora da inflação; o impacto do preço das commodities é apenas a materialização da deterioração fiscal sobre a taxa de câmbio.



(Publicado 16/Jun/2021)

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Nem uma rima, nem uma solução

A redução da relação dívida-PIB no começo do ano deveu-se principalmente à aceleração da inflação, uma “solução” indesejável para o problema. Não deveríamos contar com isso para lidar com o endividamento excessivo.

Depois de atingir 90% do PIB em fevereiro deste ano, a dívida bruta do governo geral (União, estados e municípios, sem empresas estatais ou o Banco Central) caiu para 86,7% do PIB em abril, no curto espaço de dois meses. Como no momento de sua divulgação o PIB do primeiro trimestre ainda não era conhecido, o valor deve ser ainda mais baixo, possivelmente em torno de 85,5% do PIB naquele mês, o que, se confirmado, traria a dívida para patamares observados em meados do ano passado.

Fonte: Autor com dados do Banco Central

Parte importante da história é a evolução do denominador da fração, o PIB, notando que seu aumento decorre de duas variáveis: o aumento da atividade (o crescimento propriamente dito) e a elevação dos preços no período, a popular inflação.

Para esclarecer a importância relativa destas variáveis (bem como outras tantas), resumimos na tabela abaixo os fatores determinantes da evolução da dívida desde 2007, quando a atual definição de dívida bruta começou a ser utilizada pelo BC, notando que a estimada pela metodologia anterior ainda é publicada pelo BC e indica um valor cerca de 10 pontos percentuais do PIB mais alto, na casa de 96,6%.

Tentando manter os números tratáveis, dividimos o período em 5 intervalos: 2007 a 2013, 2014 a 2016, 2017 a 2019, 2020 e os três meses até março de 2021, que, com a divulgação do PIB do primeiro trimestre, também pode ser tratado da mesma forma.

A classificação aqui empregada é algo diferente da utilizada pelo BC, mas acredito que ajuda não só a lançar uma luz sobre o comportamento passado da dívida, como também a entender o que podemos esperar para os próximos anos. Classificamos assim os fatores determinantes da evolução da relação dívida-PIB em 4 grandes grupos:

  1. A dinâmica de dívida, isto é, a interação entre o juro real (já deduzida a inflação) sobre a dívida, o crescimento do PIB e os resultados primários do governo. Juro real acima do crescimento tende a puxar a dívida para cima, requerendo, portanto, superávits primários para sua estabilização ou decréscimo e vice-versa;
  2. O ajuste cambial, que reflete a valorização ou desvalorização do dólar, assim como de outras paridades, já que parte da dívida é denominada em moeda estrangeira;
  3. O reconhecimento de dívidas (“esqueletos”), devidamente abatidos de receitas de privatização; e
  4. Outras operações, que refletem principalmente a capitalização dos bancos oficiais (BNDES notadamente) e a devolução recente de recursos ao Tesouro, bem como a compra e venda de reservas internacionais, a primeira se traduzindo em aumento do endividamento bruto do governo e a segunda em sua redução.

Variação anual média da dívida bruta - % PIB

 

2007-13

2014-16

2017-19

2020

2021*

Variação da dívida bruta (A) + (B) + (C) + (D)

 (0,6)

6,1

1,5

14,6

 (1,0)

(A) Dinâmica de dívida (1) + (2) + (3) + (4)

 (2,7)

5,6

3,5

13,8

 (1,7)

   (1) Resultado primário do Governo Geral

 (2,6)

1,6

1,4

9,6

 (0,7)

   (2) Juro real - dívida bruta

1,8

2,8

3,1

1,3

 (0,8)

         Juro nominal

5,8

7,0

6,0

4,7

1,3

         Inflação

 (4,0)

 (4,2)

 (2,9)

 (3,4)

 (2,2)

   (3) Crescimento real do PIB

 (2,1)

1,3

 (1,1)

3,1

 (0,2)

   (4) Efeito cruzado inflação-PIB

0,2

 (0,1)

0,0

 (0,1)

0,0

(B) Ajuste cambial e paridades

0,0

0,4

0,2

1,3

0,6

(C) Reconhecimento de dívidas (-) privatização

0,1

0,1

0,1

 (0,0)

0,0

(D) Outras operações

2,0

0,1

 (2,3)

 (0,6)

0,1

   Emissões para bancos oficiais

1,3

 (0,5)

 (1,5)

 (0,2)

nd

   Operações com reservas internacionais

1,6

0,2

 (0,7)

 (1,6)

nd

   Demais operações do BCB

 (0,7)

0,4

0,1

0,8

nd

   Demais operações do Governo Geral

 (0,2)

 (0,1)

 (0,2)

0,5

nd

* Até março
Fonte: Autor com dados do Banco Central

Antes de avançarmos, uma palavra sobre 2021. Conforme destacado, tratamos dos dados até março, período para o qual temos uma estimativa oficial do PIB produzida pelo IBGE. Como a relação dívida-PIB reflete a dívida no final do período contra o PIB acumulado em 12 meses, falamos aqui do produto medido entre segundo trimestre de 2020 e o primeiro de 2021. O crescimento, portanto, resulta da comparação deste período com 2020. Todas as demais variáveis para o primeiro trimestre de 2021 estão medidas como proporção do PIB dos 12 meses terminados em março.

Alguns resultados são muito claros. Noto, em primeiro lugar, que o esforço fiscal, capturado pelo resultado primário do governo, ajudou a reduzir a dívida entre 2007 e 2013, mas cumpriu papel diametralmente oposto desde então. De 2014 a 2016 a transformação do superávit primário em déficit ajudou a elevar a dívida, fenômeno que se manteve mesmo depois da adoção do teto de gastos (de 2017 a 2019) e explodiu no ano passado, por força da necessidade de lidar com a crise sanitária.

Já o juro real sobre a dívida foi quase sempre positivo (a exceção é o período mais recente, que trataremos à frente), caindo, contudo, sensivelmente já em 2020.

O crescimento real da economia no período 2007-2013 (pouco inferior a 4% ao ano) reduziu a dívida em torno de 2 pontos percentuais do PIB por ano. Com a recessão de 2014 a 2016 acrescentou 1,3 pontos percentuais do PIB a cada ano, só voltando a colaborar no triênio 2017-2019. No ano passado, a forte queda do produto adicionou mais de 3% do PIB à dívida.

Resumindo, a dinâmica de dívida foi positiva entre 2007 e 2013, mesmo com juros altos, graças ao esforço fiscal de então. Com o desaparecimento dos superávits primários adicionou mais de 40% do PIB à dívida entre 2014 e 2020.

Neste sentido, o comportamento observado até março poderia ser tomado como animador. Pela primeira vez desde 2013 a dinâmica de dívida atuou no sentido de reduzi-la, em parte pelo superávit primário registrado no primeiro trimestre, em parte pelo juro real negativo registrado do período e em parte pelo crescimento do PIB (pequeno, porque comparamos os 12 meses terminados em março com os 12 meses terminados em dezembro).

Todavia, quando observamos as magnitudes envolvidas, conclui-se que redução da dívida se deve principalmente ao comportamento do deflator do PIB, que atingiu 10% nos 12 meses terminados em março (o IPCA, medido também como média trimestral, acumulou 5,3% no mesmo intervalo). O governo tem sido, portanto, sócio da inflação.

Obviamente, inflação alta não é a solução do problema do endividamento. Não é por outro motivo que o BC tem elevado a taxa de juros, movimento que, espera-se, deve reduzir a inflação no ano que vem, tanto no caso do IPCA como do deflator do PIB. Em outras palavras, muito provavelmente retornaremos ao mundo de taxas reais de juros positivas num futuro próximo.

Já o crescimento do PIB, turbinado pela recuperação cíclica este ano, deve desacelerar à frente, convergindo para algo ao redor de nosso crescimento potencial. Nos termos da tabela acima, os itens (2) e (3) da dinâmica de dívida não deverão colaborar para sua redução além de 2021.

A responsabilidade, portanto, para a redução persistente da dívida, assim como foi observado entre 2007 e 2013, deverá vir da melhora das contas públicas, em particular da conversão do atual déficit primário em superávit. Todavia, não há qualquer perspectiva de retorno a superávits primários nos próximos 4 a 5 anos, no mínimo.

Há quem aponte que a solução para o dilema esteja em crescer mais.

Nada contra, obviamente, a não ser um pequeno problema: não controlamos a taxa de crescimento (senão não haveria país pobre, exceto por nações masoquistas). No máximo podemos articular políticas que favoreçam a expansão da capacidade de crescimento, exatamente aquelas que ignoramos anos a fio: maior investimento, melhora da capacitação da mão de obra, criação de ambiente de negócios mais favorável, abertura econômica e reforma tributária, para ficar apenas com algumas delas.

O que sobra, se não conseguirmos reprisar o período de 2007 a 2013 no que se refere ao desempenho das contas públicas? Neste caso teremos que reprisar o ocorrido no começo deste ano, isto é, contar com a inflação para reduzir a dívida.

Não é uma rima, nem uma solução, mas o que ocorrerá se não botarmos a casa em ordem.



(Publicado 9/Jun/2021)

terça-feira, 8 de junho de 2021

O futuro condena

Há quem acredite que o Brasil pode aumentar seus gastos como o governo americano. A diferença de taxas reais de juros – em parte decorrentes da trajetória fiscal esperada – sugere conclusão radicalmente distinta.

Há quem acredite que o aumento do gasto público nos EUA marca o fim da era das contas públicas equilibradas. Duplo erro: desde o governo Clinton os EUA não equilibram suas contas e, muito mais importante, engana-se quem acha que um país como o Brasil teria as mesmas condições hoje presentes naquele país, principalmente no que diz respeito à taxa real de juros.

Hoje investidores estão dispostos a receber menos do que a inflação para comprar títulos do Tesouro norte-americano. Compradores de papéis com vencimento em 5 anos recebem o equivalente a inflação menos 1,8% aa, enquanto investidores em títulos mais longos, no caso 10 anos, se contentam com inflação menos 0,9% aa.

Em contraste, se o Tesouro Nacional quiser vender um título semelhante, no caso indexado ao IPCA, terá que pagar 3,5% aa de juros acima da inflação, enquanto para carregar um papel de 10 anos investidores demandam inflação mais 4,2% aa. Esta diferença de taxas, em ambos os casos na vizinhança de 5% aa ainda é um pouco menor do que a observada de 2010 a 2016 (na faixa de 5,5% a 6,0% aa), embora tenha subido bastante a partir do começo do ano passado, como mostrado abaixo (retornaremos aos motivos no final do artigo).

Fonte: Autor com dados do FRED e ANBIMA
A diferença é crucial. A dívida do governo americano hoje se encontra próxima a 100% do PIB. Todavia, com taxas de juros negativas, se o governo rolasse toda usa dívida agora, garantiria que o custo de sua dívida ficaria abaixo da inflação. Em particular, se trocasse toda sua dívida por papéis pagando inflação menos 0,9% aa, ela encolheria ao ritmo de 0,9% do PIB por ano.

Somando a isto o crescimento do PIB, que nos últimos 30 anos rodou em torno de 2,5% ao ano, temos que, sem fazer nada, a dívida americana cairia quase 3,5% do PIB a cada ano apenas pela combinação de taxas negativas de juros reais e crescimento.

Fonte: Autor com dados do FRED e ANBIMA
No caso do Brasil, o crescimento, mostrado acima, não tem sido muito diferente do norte-americano: um pouco mais forte durante o boom de commodities; um pouco mais fraco nos demais anos, mas, em média, também na casa de 2,5% ao ano nos últimos 30 anos (e deixamos de lado, em ambos os casos, a queda excepcional de 2020).

Ocorre que, mesmo com uma dívida menor, perto de 85% do PIB, o custo real da dívida giraria em torno de 4% aa, caso optássemos pela colocação em prazos mais longos (10 anos), ou seja, o equivalente a 3,3% do PIB. O crescimento, 2,5% ao ano, “comeria” apenas 2,1% do PIB por ano, ou seja, a combinação de juros e crescimento nos acrescenta, a cada ano, 1,2% do PIB a mais de dívida.

Vale dizer, enquanto o Tesouro americano tem que fazer força para fazer a dívida crescer, isto é, gerar resultados primários negativos, no Brasil teríamos que fazer força para obter o resultado oposto, ou seja, gerar resultados primários positivos para reduzir a dívida.

É bem verdade que o governo americano deve registrar um enorme déficit primário em 2021, mas, segundo projeções do Congressional Budget Office (CBO), nos próximos 10 anos, o déficit primário lá deve ser inferior a 3,5% do PIB. Consequentemente não se espera uma trajetória explosiva da relação dívida-PIB naquele país.

No Brasil, contudo, precisaríamos de superávit primário hoje na casa de 1,2% do PIB para estabilizar nossa dívida. Contudo, segundo projeções da Instituição Fiscal Independente, que faz com galhardia por aqui as mesmas funções do CBO, não devemos registrar qualquer resultado primário positivo nos próximos 10 anos.

A própria trajetória fiscal esperada, seja dos resultados primários, seja da própria dívida do governo (medida como proporção do PIB), explica muito da diferença das taxas reais de juros exigidas pelos investidores para aplicação em títulos brasileiros e americanos, em particular em horizontes tão longos como os aqui contemplados, para os quais os efeitos da política monetária, tanto na forma de fixação da taxa de juros de curto prazo (no caso brasileiro) quanto na compra de títulos públicos (no caso americano), são bem menos relevantes.

Não por acaso, diga-se, atingimos a menor diferença entre as taxas brasileiras e americanas entre meados de 2019 e o começo de 2020, quando a reforma da previdência acenou – naquele momento – concretamente para a possibilidade de melhora da trajetória fiscal, que, hoje sabemos, não se materializou. Também não é por acaso que o diferencial voltou a subir, como notado, quando da frustração com nosso desempenho fiscal.

A transposição a frio das condições de financiamento da dívida norte-americana para o Brasil está na origem do erro dos que acreditam que temos as mesmas condições para elevar fortemente nossos gastos, ainda mais de forma permanente. Se nosso passado fiscal nos condena, o futuro reforça adicionalmente a percepção de paralisia, quando não piora, do quadro das contas públicas. Esta é a mensagem do mercado de renda fixa que não deve ser ignorada, sob risco de problemas ainda mais sérios à frente.



(Publicada 2/Jun/2021)

terça-feira, 1 de junho de 2021

Não vale o que pesa

O Brasil não só gasta muito com seu funcionalismo em comparação a outros países, mas entrega pouco em troca. Não basta a reforma administrativa adequar o gasto à nossa renda, mas principalmente assegurar serviços de qualidade em troca do que se paga.

Na semana passada o jornal O Estado de S. Paulo publicou matéria baseada em dados divulgados pelo Tesouro Nacional revelando que o Brasil, dentre 74 países, ocupava a sétima posição no quesito “remuneração de empregados”, rubrica que no Manual de Finanças Públicas do FMI expressa o montante gasto no pagamento ao funcionalismo público. 

Este montante se divide em duas partes. A principal inclui salários e vencimentos, definidos como “pagamentos em dinheiro e/ou em espécie, efetuados pelo governo aos empregados em troca da prestação do serviço”, ou seja, não apenas os salários, mas também “vantagens fixas de pessoal civil e militar, bem como a contratação por tempo determinado”, ou seja, também “penduricalhos”. 
 
A segunda inclui as contribuições sociais, isto é, “pagamentos (...) feitos por unidades do governo (...) a sistemas de seguridade social que proporcionam aos servidores (...) o direito a receber prestações sociais, incluindo pensões e outros tipos de aposentadorias.” Como notado pelo Tesouro, “são pagos pelos empregadores em benefício de seus empregados e, portanto, são registrados como um componente de remuneração”. 

Houve, contudo, críticas, no meu entender infundadas, à inclusão das contribuições sociais como custo da remuneração de empregados. Parte destas contribuições é efetiva, como, por exemplo, os pagamentos feitos à Funpresp, mas parte são contribuições “imputadas”, isto é, uma estimativa de quanto o governo teria que pagar para que seus funcionários hoje na ativa pudessem usufruir suas pensões quando se aposentassem. 

Embora o critério do FMI me pareça correto, decidi investigar como ficaria o cálculo caso considerássemos apenas a primeira parcela da remuneração de empregados, isto é, “salários e vencimentos”. Os resultados aparecem no gráfico abaixo. 

Fonte: FMI (https://data.imf.org/?sk=a0867067-d23c-4ebc-ad23-d3b015045405&sId=1544448210372)



Como se vê, o Brasil ainda se manteria nas primeiras posições do ranking, agora em 11º lugar entre 68 países (nem todos divulgam a abertura da conta de remuneração de empregados). Mesmo ignorando, portanto, a questão das contribuições à previdência, à qual retornaremos no final do artigo, ainda somos um país que gasta muito com seu funcionalismo. 

Esta informação, embora importante, deixa de fora dois aspectos essenciais para o entendimento. 

Em primeiro lugar, a questão do custo para a população com a manutenção do funcionalismo, ou seja, o gasto por habitante. Para fins de comparação internacional uso os dados de 2019, devidamente convertidos a uma unidade comum, no caso o dólar. Não utilizo as taxas de câmbio correntes, mas as estimadas pela paridade de poder de compra (PPC), ou seja, taxas de câmbio que equalizam o custo de uma determinada cesta de produtos entre países. 

Fonte: FMI


O Brasil (ponto preto acima) gasta mais por habitante do que os países em sua faixa de renda per capita (os pontos em cinza), exceto a África do Sul, cujo gasto é praticamente igual ao nosso. 

Fonte: Autor com dados do FMI e Fund for Peace


Já o gráfico acima trata da segunda questão, ainda mais relevante: o que obtemos em troca deste gasto? Para responder a esta pergunta usamos um índice de qualidade de serviços públicos calculado pelo Fund for Peace que busca capturar tanto o fornecimento de serviços (como saúde, educação e água), quanto a capacidade do governo de proteger seus cidadãos contra a violência (dados obtidos aqui). O índice original varia de 10 (pior qualidade) a zero (melhor qualidade), mas, para facilitar o entendimento, redefini a escala de zero (pior) para 10 (melhor). 

Os dados confirmam o que já se intuía: a população brasileira recebe muito pouco em troca do que paga ao funcionalismo, mesmo se considerarmos apenas salários e vencimentos. Embora a África do Sul se assemelhe a nós neste aspecto, vários outros países, como a Bósnia (destacada acima), oferecem serviços de melhor qualidade em troca de gasto similar ao nosso, ou mesmo bastante inferior. 

Isto dito, é ilusão acreditar que o custo do funcionalismo reflete apenas o pagamento de salários. O governo brasileiro em seus três níveis gastou em 2019 cerca de 5% do PIB em pagamentos de aposentadorias e pensões para seus funcionários inativos, disparado o maior valor da amostra, seguido (de longe) pelo Reino Unido, Tailândia e Nepal (todos na casa de 2% do PIB) e, mesmo com a reforma previdenciária aprovada naquele ano, há ainda um enorme contingente de funcionários ativos que irá se aposentar em condições similares, o que deve manter nossa dianteira nesta nada honrosa corrida. 

Posto de outra forma, a remuneração do funcionalismo na ativa não compreende apenas os salários e vantagens da função, mas também um fluxo correspondente ao seu direito a aposentadorias em condições melhores do que o resto da sociedade, ou seja, os números acima subestimam (e muito) o custo efetivo do funcionalismo público (civil e militar). 

Apesar, portanto, do lobby contrário, é cada vez mais clara a urgência de uma reforma administrativa profunda, isto é, algo totalmente distinto da proposta atual. Não se trata apenas de adequar o gasto à nossa renda, mas de assegurar serviços de qualidade congruente ao muito que pagamos.



(Publicado 26/Mai/2021)