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terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Sexo e outras obsessões

Robert Solow, Prêmio Nobel de Economia, disse certa vez, referindo-se a Milton Friedman: “Tudo para Milton o lembra da oferta de moeda. Já para mim tudo lembra sexo, mas, pelo menos, eu tento mantê-lo fora dos meus artigos”. Também tenho minhas obsessões e, entre as publicáveis, a questão fiscal no Brasil ocupa lugar de honra. Digo isto a propósito de dados recentemente publicados pelo Banco Mundial acerca da comparação entre diferentes países. A imprensa local deu ênfase à posição do Brasil como a décima maior economia do mundo, mas não prestou muita atenção a outro conjunto de dados, bem menos lisonjeiro, que destaca o elevado nível de gasto público no país.

Tais dados se originam do Programa para Comparação Internacional (ICP) do Banco Mundial. O propósito do ICP é simples: gerar um conjunto de estatísticas que possibilitem a comparação entre vários países numa base comum, tarefa bem mais difícil que seu enunciado sugere. Obviamente não faz muito sentido comparar dados expressos em moedas diferentes. Dado que o PIB brasileiro é medido em reais e o PIB indiano em rúpias teríamos que convertê-los numa medida comum (por exemplo, euros) utilizando-se para tanto das taxas de câmbio entre o real e o euro e a rúpia e o euro. No entanto, taxas de câmbio de mercado são extremamente voláteis e com freqüência podem se desviar de seus valores de equilíbrio, prejudicando a comparação.

É possível, porém, definir taxas de câmbio “ideais” determinadas pelo que se convencionou chamar de Paridade de Poder de Compra (PPC). Em termos intuitivos a taxa de PPC é aquela que equipara os custos de uma mesma cesta de bens no Brasil e na Índia medidos na mesma moeda. Um exemplo simples deste conceito é o Índice Big Mac, calculado pela revista inglesa The Economist, que estima as taxas de câmbio em vários países que fariam o sanduíche valer o mesmo que custa nos EUA. Ainda que tal procedimento não esteja livre de problemas, as maiores dificuldades da comparação internacional conseguem ser bastante atenuadas.

Foi com base nesta metodologia que se construiu o ranking mencionado acima, mas ela também permite a montagem de vários outros rankings, inclusive relativos aos gastos do governo na provisão de serviços públicos (defesa, justiça, segurança, etc.). Não é surpresa, à luz dos números que venho apresentando nesta coluna há pouco mais de um ano, que o Brasil ocupe posição de destaque neste quesito. De fato, embora o PIB brasileiro corresponda a 2,9% do PIB global, o gasto do governo na provisão de serviços públicos equivale a 5% do total mundial; somos o décimo maior PIB, mas o quarto maior gasto.

Quando consideramos apenas os países com PIB acima de US$ 100 bilhões em 2005, o Brasil é o segundo colocado em termos de gastos com relação ao PIB, perdendo apenas para a China, cujo dispêndio militar é muito superior ao nosso. Na América do Sul, excetuado o Brasil, o gasto médio é 11% do PIB; no Brasil 19% do PIB. Tudo isto, diga-se, com a qualidade consagrada dos serviços prestados à população.

São números assim que deveriam sepultar de vez teses esdrúxulas sobre o “raquitismo” estatal brasileiro. A má qualidade destes serviços não resulta de pouco gasto, mas da baixa produtividade. Ignorar estes problemas pode ser cômodo, mas – mesmo mantendo sexo fora do artigo – é, acima de tudo, escandaloso. Feliz 2008 a todos.

(Publicado 26/Dez/2007)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

A última do Pochmann

“O presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Marcio Pochmann, defendeu a adoção de jornada semanal de trabalho de três dias com expediente de quatro horas. Disse ainda que o Brasil deveria preparar seus cidadãos para começar a trabalhar depois dos 25 anos de idade. (Folha Online, 12/12/2007 http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u354096.shtml) ”

Comentário: Acho idéia excelente se aplicada ao seu próprio autor. Só ficaria melhor se ele prometesse trabalhar nenhuma hora de nenhum dia. Não há dúvida que isto aumentaria o bem-estar no país.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

A falácia de Sherwood

Robin Hood, quem diria, é a mais recente justificativa para o esbanjamento. Segundo novíssimo argumento, não é verdade que o governo gaste muito, nem que a despesa pública tenha aumentado vertiginosamente no país nos últimos 13 anos. Tudo o que o governo inocentemente faz, a exemplo do salteador, é transferir recursos de uma parcela da população para outra. Como transferências a pessoas não representam consumo do governo, não haveria razões para que tal comportamento gerasse preocupação com demanda ou inflação.

No entanto, a aparência de neutralidade envolvida na noção de que o governo simplesmente tira de um grupo para dar a outro, não sobrevive a uma inspeção mais cuidadosa. Tal operação só seria “neutra” sobre o equilíbrio interno se a tributação requerida para financiar estas transferências não distorcesse de alguma forma as decisões de empresas, trabalhadores e consumidores. Isto está longe de ser verdade no Brasil, onde o setor privado é oprimido por enorme e crescente carga tributária.

De fato, entre 1995 e 2006 a arrecadação federal cresceu o equivalente a 5,8% do PIB, sendo que, deste total, PIS-COFINS (2% do PIB), CPMF (1,4% do PIB) e a contribuição para o INSS (0,7% do PIB) representam a maior parcela. São esses também os impostos que mais distorcem a atividade econômica, seja por seu caráter cumulativo, seja por desencorajarem o emprego formal.

Assim, mesmo que todo aumento de gasto público fosse destinado a transferências a pessoas, seu financiamento por meio de impostos de má qualidade reduz a taxa de crescimento potencial da economia, com repercussões sobre o equilíbrio doméstico e a inflação. Ademais, dado menor crescimento, o consumo das gerações futuras é reduzido relativamente ao consumo presente. Quem, porém, se importa, já que tais gerações não têm voto?

Não bastasse isto, há ainda dois pontos a considerar. O primeiro é que, mesmo excluindo as transferências a pessoas, o consumo do governo brasileiro não é baixo, correspondendo a cerca de 20% do PIB comparado a uma média ao redor de 13% do PIB nos principais países da América Latina. Talvez por esta razão nossa infraestrutura seja referência na região e nossos serviços públicos invejados por todo o globo.

Além disto, como notado por minha colega Zeina Latif, houve uma dramática mudança no padrão cíclico do consumo governamental nos últimos anos. Entre 1997 e 2002 o consumo do governo e o gasto privado se moviam tipicamente em direções opostas: quando o gasto privado se acelerava o consumo do governo se retraía e vice-versa (a correlação era forte e negativa, -0,82). Entre 2003 e a primeira metade de 2007 observa-se exatamente o contrário: uma alta correlação positiva (0,67) entre estas variáveis, ou seja, ao invés de contribuir para a estabilização do ciclo, a política fiscal amplia a volatilidade.

Assim, na atual conjuntura, em que o gasto privado já cresce 6% ao ano, com tendência de aceleração, a política fiscal põe desnecessariamente mais lenha na fogueira, reduzindo o espaço para queda adicional da taxa de juros.

Proclamar a falácia de Sherwood em altos brados não basta para eliminar as distorções associadas ao gasto público. Isto não altera o tamanho e a composição perversa da carga tributária, nem muda o caráter pró-cíclico do consumo governamental. Serve apenas para tentar tirar o foco do necessário, e sempre adiado, ajuste fiscal.

(Publicado 12/Dez/2007)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

A miséria da epistemologia

O artigo de Luís Antônio de Oliveira Lima (“Ousando discordar da ortodoxia dos economistas”, Valor Econômico, 12/11/07) é pródigo em citações, o que mostra o salutar hábito de leitura do autor. Pena que seu entendimento destes textos não seja igualmente saudável, o que me pouparia o trabalho de rebatê-lo novamente. Isto dito, um texto com tantos problemas não poderia passar incólume.

A questão que debatemos é simples. Defendo que a escolha de uma meta de inflação mais elevada (ou mais baixa) não deve ter qualquer efeito sobre a taxa de crescimento da economia por um motivo bastante singelo: as pessoas conseguem distinguir entre alterações nominais e reais de preços. Sindicatos, por exemplo, negociam salários sabendo muito bem o que se trata de mero reajuste nominal e o que é, de fato, ganho real. Se isto é verdade, o anúncio de meta de inflação mais elevada deve ser imediatamente incorporado ao conjunto de informações dos agentes e, consequentemente, às suas expectativas, sem efeitos reais sobre a economia (chamemos isto de hipótese aceleracionista). Lima, pelo contrário, argumentou originalmente que, sim, uma meta de inflação mais alta poderia acelerar o crescimento (já em seu último artigo recuou da posição inicial, afirmando apenas que crescimento pode ser compatível com inflação mais alta).

Em apoio à sua tese Lima, citando o trabalho de Robert Barro, “observa que para taxas de inflação abaixo de 20% qualquer relação, positiva ou negativa, entre crescimento e inflação, não é estatisticamente significativa”. Lima não se deu conta, porém, que este resultado, ao contrário do que parece acreditar, não apóia sua tese. Se a taxa de inflação não tem qualquer efeito sobre a taxa de crescimento, por que alguém escolheria uma meta de inflação mais alta?

Para colocar a questão em termos mais mundanos, o número de vezes ao dia que alguém tocar a Macarena durante a primeira infância do seu filho muito possivelmente não irá afetar sua estatura na adolescência. Isto, porém, não é justificativa para tocá-la inúmeras vezes ao dia, a menos que você acredite que isto trará um aumento de bem-estar à criança (eu não acho, mas deixo isto a critério de cada pai). Da mesma forma, ainda que a inflação (abaixo de 20% a.a.) não prejudique o crescimento, qual a razão para que esta seja 8% a.a. ao invés de, digamos, 3%? Há algo de positivo na inflação mais elevada?

A bem da verdade, Lima agora diz não acreditar que inflação mais alta traga mais crescimento (ainda que em outras passagens revele persistir na crença), mas sim que inflação alta também é compatível com crescimento, assim como é a inflação baixa, ou seja, que o crescimento independe da taxa de inflação. Pergunto: no que mesmo sua posição difere da hipótese aceleracionista?

Lima, porém, não se limita a citações sobre macroeconomia e traz também a epistemologia ao debate. Segundo ele não se pode dizer que a hipótese aceleracionista seja “correta”, já que – citando Karl Popper – não há uma teoria “correta”, apenas hipóteses que se ajustam melhor ou pior aos dados. De fato, a teoria da gravidade de Newton, na leitura ingênua de Popper proposta por Lima, também não é “correta”, mas apenas uma hipótese, que, pode se ajustar melhor ou pior aos dados. Será que o filósofo pularia de uma janela com base na noção que a teoria da gravidade não é “correta” no sentido popperiano do termo?

Exagero meu? Pelo contrário. Anos de exercício de política monetária sob a hipótese aceleracionista cimentaram a noção do que tem sido denominado “A Grande Moderação”, isto é, um período no qual taxas baixas de inflação têm convivido com baixa volatilidade do crescimento. Ao contrário do período em que bancos centrais tentaram (inutilmente) acelerar o crescimento à custa de inflação mais elevada, apenas para pouco depois serem forçados a desacelerar fortemente a atividade para controlar a inflação, gerando um padrão conhecido como stop-and-go, hoje os bancos centrais aprenderam que não precisam (metaforicamente) pular da janela para ver se a hipótese aceleracionista se ajusta aos dados.

Em outras palavras, a hipótese aceleracionista, considerada “simplista” por Lima, serviu de base para a gestão bem sucedida de política monetária que, ao redor do globo, gerou baixas taxas de inflação com reduzida volatilidade do produto, traduzindo-se em ganhos significativos de bem-estar. Como diria Milton Friedman (“The Methodology of Positive Economics”), inspirado pelo mesmo positivismo de Popper, pouco interessam as hipóteses do modelo, desde que este consiga gerar previsões válidas, entre elas sugestões de política que aumentem o bem-estar. A evidência acumulada sobre estes anos de gestão de política monetária inspirada pela hipótese aceleracionista sugere que esta cumpre, com honras, este quesito.

Isto, porém, parece ainda além da compreensão de Lima, em que pesem suas pretensões epistemológicas. Sem dúvida é curioso que alguém cite Popper e, poucos parágrafos depois, questione o “realismo” das hipóteses do modelo, incluída a suposição acerca da racionalidade dos agentes econômicos. Revela, no mínimo, pouca reflexão sobre as implicações da abordagem popperiana à ciência. Na pior das hipóteses sugere que só cita o filósofo alemão quando lhe é interessante, deixando de lado as implicações menos favoráveis à sua tese.

Em todo caso, a miséria epistemológica, mesmo grave, não é o pior aspecto do artigo. Mais séria é a falta de entendimento acerca da própria hipótese aceleracionista, em particular para alguém que pretende se posicionar como o campeão da heterodoxia, “ousando desafiar a ortodoxia dos economistas”. Ao recuar da sua posição original acerca da inflação mais alta trazer mais crescimento e afirmar que teria dito apenas que a inflação elevada (mas, imagino, abaixo de 20%) é “compatível” com crescimento Lima apenas repete inadvertidamente a hipótese aceleracionista, isto é, que o crescimento não é afetado pela taxa de inflação. O defensor da “heterodoxia” não conseguiu perceber que sua suposta crítica apenas ecoa a mesma teoria que pretende criticar. Seria irônico, mas é apenas triste.

(Publicado 5/Dez/2007)