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terça-feira, 30 de abril de 2019

Devagar e então de repente


Samuel Pessôa, para variar, escreveu uma bela coluna no domingo. Parte do pressuposto, para lá de razoável, que o atual governo, apesar do evidente corpo mole do presidente, conseguirá aprovar alguma reforma da previdência, porém bastante desidratada e mais tarde do que se espera.

Conclui que, a despeito disto, não haverá ruptura, e nos oferece quatro razões para tanto: reservas internacionais elevadas (que evitam uma crise de balanço de pagamentos); o teto de gastos públicos; algum efeito da reforma “desidratada”; e, por fim, a inflação baixa, que permite manter o juro também baixo, reduzindo o custo da dívida. Assim, as principais consequências da falta de apetite pelas reformas seriam crescimento lento e, em algum momento, uma transição para algo semelhante à Argentina hoje, com inflação alta complementando a expansão medíocre.

Minha análise tem muito em comum com a do Samuel, mas confesso que, ao ler a coluna, me vieram à mente dois relatos, em alguma medida aparentados.

Ernest Hemingway, em “O sol também se levanta”, conta de um empresário que explica como faliu: “Two ways. Gradually; then suddenly” (de duas formas: devagar e então de repente, em tradução livre).

Já o grande economista Rudi Dornbusch, em frase memorável, afirmou (também em tradução livre): “em economia as coisas demoram mais para ocorrer do que você pensa e então acontecem muito mais rápido do que você imagina”. A verdade é que nossa capacidade como economistas de prever eventos descontínuos não é grande coisa, mas vou me arriscar aqui.

Quem teve a chance de analisar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), enviada há pouco ao Congresso Nacional, deve ter notado algumas coisas interessantes. Em primeiro lugar, quase uma curiosidade: embora durante a campanha Paulo Guedes tivesse prometido zerar o déficit primário, a LDO prevê déficits recorrentes de 2019 a 2022. Neste aspecto, pelo menos, o ministro parece ter calçado as sandálias da humildade e se dobrado à necessidade de fazer um pouco de conta, atitude positiva, ainda que tardia.

É bem verdade que a trajetória de déficits é declinante no período, caindo a 0,3% do PIB no último ano, consequência da premissa de obediência ao teto de gastos, que força o conjunto da despesa federal a se reduzir relativamente ao PIB, enquanto receitas se mantém aproximadamente constantes.

Por outro lado, quando examinamos as principais contas de dispêndio público projetadas na LDO é impossível deixar de notar que sua trajetória cadente só se materializaria sob a suposição de contração extraordinária do gasto discricionário, que viria de 1,7% do PIB em 2018 (11% da despesa) para 0,8% do PIB (6% da despesa) em 2022, uma vez que benefícios previdenciários seguiriam crescendo.

Posto de outra forma, a ser respeitado o teto de gastos, na ausência de reforma, a contração necessária da despesa discricionária levaria à paralisação da máquina federal em 2021, ou (mais provavelmente) em 2022, uma vez que requereria um corte em termos reais pouco superior a 40% em quatro anos.

Se, porém, a reforma for plenamente aprovada, seria possível limitar o corte do gasto discricionário a algo como R$ 14 bilhões até 2022 (contra R$ 64 bilhões no cenário sem reforma), o que, com um pouco de sorte, manteria o governo federal operante. Vale dizer, caso a reforma seja muito desidratada haverá um encontro sério com a realidade das contas públicas num horizonte de 3 a 5 anos.

Em tal circunstância duas coisas me parecem prováveis. Em primeiro lugar, o abandono do teto de gastos, que se tornaria insustentável sem uma reforma parruda da previdência. Todavia, como isto significaria também a impossibilidade de estabilização da dívida como proporção do PIB, também o BC teria que deixar de pautar sua política de juros pela inflação, calibrando a Selic para estancar o endividamento.

Neste caso o BC perderia a capacidade de controlar a inflação, devagar e, então, de repente. Se vale o dito de Dornbusch, quando isto ocorrer, provavelmente mais tarde do que prevejo, será muito pior do que imagino.




(Publicado 28/Abr/2019)

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Passando o pano


À primeira vista, a decisão do presidente Jair Bolsonaro mandar a Petrobras voltar atrás no aumento do preço do diesel, com repercussões graves sobre o valor da companhia, guarda enorme semelhança com a política desastrada imposta pela presidente Dilma Rousseff. O problema é que a semelhança continua à segunda, terceira e qualquer versão de vista que se pretenda dar sobre o assunto, porque os princípios que nortearam a deliberação são, a rigor, exatamente os mesmos.


Seria bom que alguém esclarecesse ao presidente que, sim, ele é intervencionista ao interferir numa decisão corporativa de uma empresa, ainda mais no caso de uma empresa listada em Bolsa de Valores, cujos acionistas minoritários ficam à mercê de decisões arbitrárias impostas pelo controlador. Como seria bom também que alguém lhe explicasse que o preço do diesel, como aliás de todos os combustíveis (e de todas as commodities), não guarda qualquer relação com a inflação local.

Diga-se de passagem, a inflação, medida pelo IPCA, é uma média ponderada dos aumentos (e reduções) de preços observados para 383 bens e serviços, que variam de “arroz” a “TV por assinatura com internet”, passando por “estacionamento”, “material hidráulico” e “sardinha”. Neste conjunto de 383 bens e serviços há itens como a cebola, cujo preço subiu quase 30% nos últimos 12 meses, bem como televisores, que ficaram 8,6% mais baratos no mesmo período.

Por mais que o presidente possa apreciar uma ordem unida, não é assim que preços costumam se comportar numa economia de mercado, à qual ele recentemente jurou fidelidade.

Em outras ocasiões e em outros locais talvez fosse desnecessário repisar este tema, mas no Brasil e no atual momento é bom repetir que preços desempenham um papel central no funcionamento da economia, fenômeno que se conhece desde a contribuição original de Adam Smith, também explorado pelos economistas austríacos que seu filho 03, Eduardo Bolsonaro, supostamente teria estudado no Instituto Mises, o que obviamente não o impediu de apoiar a intervenção, nem de afirmar que valeria para todos os combustíveis.

De qualquer forma, preços mais altos desencorajam o consumo daquilo que se tornou relativamente mais escasso, bem como encorajam aumento na sua produção (e vice-versa). A intervenção no sistema de preços impede que este mecanismo funcione a contento, levando a situações de escassez para o consumidor e de dificuldades para o produtor. Não é por outros motivos que congelamentos e demais intervenções não funcionam, assim como não é por outras razões que tanto a Petrobras como o setor elétrico sofreram no passado recente, ou ainda que falte tudo na Venezuela.

Em maior ou menor grau a desarrumação dos preços traz consequências graves, o que já deveríamos ter aprendido, mas, como notei, vivemos em um país cujas elites políticas (quando não as empresariais) permanecem imunes ao aprendizado econômico.

Sim, sim, há os “passadores de pano” de sempre, que defendem a decisão com base na lógica política de “acalmar” os caminhoneiros para que eventuais manifestações não prejudiquem o avanço da reforma da previdência. Algo assim na lógica de “salvar a economia, mesmo que sejamos forçados a destruí-la no processo”, um raciocínio de rara e atilada inteligência.

Para quem testemunhou Margaret Thatcher encarar os mineiros de carvão, Ronald Reagan os controladores de voo e Fernando Henrique Cardoso domar os petroleiros em 1995 só resta lamentar que haja ainda quem defenda a atitude servil para com certos grupos de pressão que pretendem manter privilégios à custa do resto da sociedade. Mas cada um tem o líder sindical que merece.




quarta-feira, 10 de abril de 2019

Cold turkey


Fico a cada dia mais convencido que a proposta de criação de um regime de capitalização nos marcos do projeto de reforma da previdência só serve para conturbar o processo. A começar porque jamais ficou claro qual o alcance da proposta. No caso, as indicações de que o ministro pensa numa transição cold turkey para o regime de capitalização são preocupantes, como espero mostrar neste espaço.

Podemos pensar o regime de repartição da seguinte forma: há uma geração em atividade e uma geração aposentada; os ativos transferem aos aposentados parcela de sua renda, habilitando-os a continuar a consumir e, em troca (imaginam), serão tratados da mesma forma quando passarem para o segundo time.

Por mais que este arranjo se pareça com uma “pirâmide financeira”, ele não o é necessariamente. Se a demografia permanecer aproximadamente constante, em particular o tamanho relativo da geração aposentada na comparação com a ativa (às vezes denominado “razão de dependência”) e o valor das aposentadorias não se elevar relativamente ao valor dos salários na ativa, o sistema pode funcionar indefinidamente.

Na prática, porém, mudanças demográficas não apenas ocorrem, como tipicamente causam estrago considerável nas contas previdenciárias. Seja pelo envelhecimento da população (que eleva o tamanho da geração aposentada), seja pela redução da taxa de natalidade (que reduz o tamanho da geração ativa), a relação entre aposentados e ativos cresce ao longo do tempo.

Para manter o equilíbrio (ou diminuir o desequilíbrio) do regime são necessárias alterações: elevação da idade de aposentadoria (que reduz a geração de aposentados e aumenta a de ativos), maiores contribuições de ativos, bem como possíveis limites ao valor das aposentadorias. São estas, em grandes linhas, as principais medidas do projeto de reforma previdenciária, complementados por regras de transição que buscam mitigar mudanças bruscas para quem já se encontra perto da aposentadoria.

Os problemas da transição demográfica, que afligem os regimes de repartição, como regra não têm o mesmo efeito no caso dos regimes de capitalização, desde que bem desenhados. Nestes a geração ativa contribui para contas individuais ao longo de sua vida de trabalho e o valor lá aplicado pode ser usado durante seu período de aposentadoria.

Há dificuldades técnicas que não devem ser subestimadas: em particular o cálculo atuarial deve ser preciso, ou seja, em média o valor capitalizado durante o período ativo deve ser suficiente para bancar o período de aposentadoria. Todavia, se o cálculo for preciso, o regime se mantém indefinidamente, mesmo face a mudanças demográficas. Deve ficar claro que sob a versão pura deste regime não há déficits persistentes: cada um recebe aquilo que poupou e eventuais desvios devem se anular ao longo do tempo.

O problema, contudo, é transitar de um regime a outro. No período de transição os aportes da geração ativa não mais financiam as pensões da atual geração aposentada, que, contudo, ainda precisa ser paga porque já contribuiu para financiar a geração anterior. Caso o governo não consiga produzir um superávit em suas demais contas para compensar o déficit de transição, seu endividamento crescerá aceleradamente.

No caso do Brasil, mantendo o foco apenas no INSS (para simplificar), notamos que o déficit da previdência atingiu nos 12 meses terminados em fevereiro R$ 198 bilhões (a preços constantes), enquanto o déficit primário do governo central atingiu, no mesmo período, R$ 122 bilhões, ou seja, previdência à parte, o governo central produziu superávit de R$ 76 bilhões.

Numa transição cold turkey para um regime de capitalização o governo central abriria mão de pouco mais de R$ 400 bilhões em receitas, que seriam direcionadas para contas individuais e o déficit primário saltaria para R$ 522 bilhões. Apenas para manter o déficit atual, o governo central ex-previdência teria que produzir um superávit primário de R$ 476 bilhões, tarefa impossível, considerando que o conjunto de todos os gastos não-previdenciários no período mais recente atingiu R$ 780 bilhões. Posto de outra forma, para compensar a perda da receita previdenciária o governo teria que reduzir em pouco mais de 50% todos seus gastos não-previdenciários.

Deve ficar claro que a transição cold turkey é inviável. Há, é verdade, alternativas.

Se formos tomar, por exemplo, o excelente trabalho de Paulo Tafner e coautores, a capitalização seria feita de forma complementar ao regime de repartição. Uma vez definido o teto do regime de repartição, quem recebe mais contribuiria com um percentual sobre o valor que ultrapassasse o teto. Em particular, na versão de Tafner, apenas a geração 7 a 1 (isto é, os nascidos a partir de 2014, que entrarão no mercado de trabalho em meados da década de 30) é que estariam sujeitos a este modelo.

Este desenho não só “empurra” a transição uns 20 e tantos anos para a frente, como também não implica a renúncia às contribuições advindas da repartição.

Infelizmente não parece que os formuladores do projeto atual pensem desta forma. Não está claro no texto da reforma propriamente dita, que remete a capitalização para lei complementar, mas as manifestações do ministro da Economia sugerem que sua proposta está mais próxima da versão cold turkey do que da idealizada por Tafner.

Por vezes aparenta sugerir que a economia de pouco mais de R$ 1 trilhão ao longo de 10 anos que seria obtida em caso de aprovação das mudanças referentes ao regime de repartição seria usada para financiar a transição. Isto, porém, não faz sentido.

Lembremos que a tal economia não significa que haverá redução de R$ 1 trilhão nos gastos previdenciários em relação ao que existe hoje, mas sim com relação à trajetória de gastos que se materializaria nos próximos 10 anos caso nenhuma reforma seja aprovada. A memória de cálculo destes números não está disponível, mas acredito ser possível ilustrar este ponto de maneira relativamente simples.

Na apresentação da reforma, o governo indicou que trabalha com a projeção de déficit de R$ 351 bilhões para este ano, notando que, ao contrário do exposto acima, aqui tratamos de uma versão mais ampla da previdência. Assim, as contribuições para o INSS (ou RGPS) chegariam a R$ 419 bilhões em 2019, enquanto as contribuições do funcionalismo (civil e militar) atingiriam R$ 39 bilhões, ou seja, R$ 458 bilhões no total.

Por outro lado, o pagamento de benefícios do RGPS chegaria a R$ 637 bilhões, enquanto o funcionalismo responderia por R$ 113 bilhões, totalizando R$ 750 bilhões. A este montante somamos R$ 59 bilhões referentes ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), que também é objeto da reforma, atingindo, pois, R$ 809 bilhões. Neste caso, o déficit (incluso o BPC) ficaria em R$ 351 bilhões em 2019.

Congelemos, como exercício, estes valores para os próximos 10 anos, ou seja, falamos de receitas de R$ 4,58 trilhões no período (a preços de hoje) e despesas de R$ 8,09 trilhões e, portanto, um déficit de R$ 3,51 trilhões (ver tabela abaixo)

Impacto da reforma – cenário 1 (R$ bilhões)

Sem reforma
Com reforma
Diferença
Contribuição
4.580
4.580
0
Benefícios
8.090
6.927
-1.163
  RGPS
6.370
5.655
-715
  RPPS
1.130
864
-266
  BPC
590
408
-182
Resultado
-3.510
-2.347
1.163

Caso apliquemos aos resultados acima os valores projetados para a redução de gastos no mesmo horizonte de 10 anos (de 2020 a 2029), ignorando as mudanças nas contribuições (seu efeito líquido é praticamente zero de acordo com os números divulgados pelo governo), teríamos uma redução de R$ 1,163 trilhão, mas o sistema continuaria a registrar déficit no período, no caso R$ 2,35 trilhões.

Em outras palavras, mesmo com a reforma, o regime ainda apresentaria déficits e, portanto, não ajudaria a contribuir para a redução do déficit da transição caso, simultaneamente à reforma da repartição, fôssemos implantar o regime de capitalização.

É bem verdade que neste cenário supusemos que tudo permanecesse congelado por 10 anos, replicando os resultados esperados para 2019, mas sabemos que não se trata do caso mais provável. Na ausência dos números oficiais projetados para o período fizemos um conjunto de hipóteses.

Em primeiro lugar notamos que a receita de contribuições (a preços de hoje) por emprego com carteira assinada tem ficado relativamente estável nos últimos anos, pouco inferior a R$ 11 mil/ano por emprego com carteira assinada. Notamos também (no caso com menor precisão) que esta modalidade de emprego (em que peses os últimos anos) se move no mesmo sentido, mas com menor intensidade que o PIB. Assim, supomos que a receita de contribuições cresça ao redor de 2% ao ano (nossa conclusão independe, em larga medida, desta hipótese).

No lado das despesas supusemos que o número de aposentados cresça ao ritmo de 2,3% ao ano, próximo ao observado na média dos últimos 3 anos, isto é, um ritmo algo inferior ao observado em anos anteriores (na casa de 3,5% ao ano), uma hipótese conservadora. Da mesma forma, presumimos que os recipientes de benefícios assistenciais cresçam ao passo de 2,6%, também a média dos últimos 3 anos, e também inferior ao ritmo registrado há alguns anos (quando ultrapassou 6%). Quanto ao funcionalismo, na falta de dados, supusemos manutenção do número de aposentados e pensionistas pouco superior a 1,1 milhão.

Por fim, mantivemos os valores dos benefícios per capita (por categoria, ou seja, RGPS, RPPS e BPC), indicando a ausência de ganhos reais para aposentadorias e pensões.

Com base nestes pressupostos calculamos um déficit pouco inferior a R$ 4 trilhões para os próximos anos, mesmo com o aumento das contribuições, como mostrado na tabela abaixo.

Impacto da reforma – cenário 2 (R$ bilhões)

Sem reforma
Com reforma
Diferença
Contribuição
5.070
5.070
0
Benefícios
9.050
7.887
-1.163
  RGPS
7.237
6.522
-715
  RPPS
1.130
864
-266
  BPC
683
501
-182
Resultado
-3.980
-2.817
1.163

Neste caso, o efeito da reforma reduziria o déficit para R$ 2,8 trilhões, ainda superior ao que seria registrado no cenário de congelamento. De qualquer forma, mesmo com a reforma, teríamos ainda déficits nos próximos 10 anos, de sorte que a contribuição para a transição seguiria negativa.

Vale dizer, se o ministro da Economia espera que seu projeto de reforma abra espaço fiscal para a adoção de um regime de capitalização, é melhor não prender a respiração no aguardo.

Concretamente, se não for o caso de abandonar a ideia, talvez o melhor seja mesmo explicitar que não se trata de uma transição cold turkey, mas sim alguma coisa diferente, como a versão complementar de Paulo Tafner, ou mesmo uma versão de capitalização nocional, da qual prometo tratar em mais à frente.

De uma forma ou de outra, faltou uma lição de casa mais bem-feita e as consequências, inclusive para o futuro dos demais itens da reforma, podem ser para lá de negativas.





quarta-feira, 3 de abril de 2019

Muito barulho por nada


Como o  Samuel, fui ler o artigo de André Lara Resende que tem gerado considerável ruído e frequentes perguntas. Bem que queria escapar da velha piada, mas não dá: o texto tem coisas boas e coisas novas; infelizmente as novas não são boas e as boas não são novas.

Há tempos que Lara Resende está, justificadamente, incomodado com as altas taxas de juros vigentes no Brasil e tem proposto explicações e medidas para lidar com a óbvia discrepância entre o nível das taxas reais de juros brasileiras e as observadas em países semelhantes e também os não-semelhantes. Em 2004, por exemplo, publicou (com Pérsio Arida e Edmar Bacha) um ensaio em que atribuía a elevada taxa de juros à “incerteza jurisdicional”.

Sem entrar nos detalhes da tese, a verdade é que esta explicação não foi para a frente. Andrei Spacov (com Fernando Gonçalves e Marcio “ Maria Antonieta” Holland) testou empiricamente a hipótese da incerteza jurisdicional e concluiu que as taxas de juros no Brasil não guardam relação com esta variável; por outro lado, encontrou correlações estatisticamente significativas com a inflação e com a relação dívida-PIB, sugerindo que fatores monetários e fiscais tradicionais “são mais relevantes para explicar o nível da taxa de juros de curto prazo do que o binômio incerteza jurisdicional/inconversibilidade da moeda”.

Mais recentemente, em 2016, lançou outra tese inovadora, baseado em trabalho de John Cochrane a partir da equação de Fisher (que define a taxa real de juros como a diferença entre a taxa nominal de juros e a inflação, isto é, r = i - p): ao contrário da sabedoria “convencional”, segundo a qual a elevação da taxa de juros pelo BC reduziria a inflação, a ação correta por parte da autoridade monetária seria a redução do juro nominal. Dada a taxa real de juros, a redução da taxa nominal, pela equação de Fisher faria com que a inflação caísse, pois p = i – r.

À parte os comentários de Eduardo Loyo, que explicitam as condições muito particulares sob as quais a tese de Lara Resende seria válida (caso o BC não respeitasse a regra tradicional de política monetária), cumpre  notar que a evolução da inflação no Brasil daquele momento em diante desmentiu de forma cabal a ideia de que seria necessário reduzir a taxa de juros para baixar a inflação. O juro subiu e a inflação, como sugerido pela “sabedoria convencional”, caiu.

Registre-se como um aparte que, se a tese de Lara Resende fosse verdadeira, seus seguidores agora deveriam estar clamando pela elevação da Selic, já que a inflação se encontra abaixo da meta. Na ausência de tais clamores, se torna difícil evitar a conclusão que, mesmo entre os apóstolos iniciais de doutrina, ninguém parece muito disposto a defendê-las nas atuais circunstâncias.

A tese agora é outra. Baseado no que se convencionou chamar de Teoria Monetária Moderna (MMT, seu acrônimo em inglês), Lara Resende defende que o BC fixe a taxa nominal de juros (no caso, a Selic) abaixo da taxa de crescimento do PIB nominal (ou, de forma equivalente, que a taxa real de juros seja fixada abaixo da taxa real de crescimento do produto).

Neste caso, o crescimento da dívida pelo efeito da taxa real de juros seria inferior ao crescimento do PIB e o governo não precisaria gerar um resultado primário positivo para impedir que a relação dívida-PIB cresça indefinidamente.

Com efeito, numa primeira aproximação, o resultado primário necessário (h*) para estabilizar a relação dívida-PIB (d) seria dado por

h* ≈ (r-g)d

onde r é, como antes, a taxa real de juros e g a taxa de crescimento real do produto.

De fato, quando r > g, o governo precisa gerar um superávit primário; quando, porém, r < g, até mesmo um déficit primário pode ser consistente com a estabilização da dívida. Dois exemplos podem ajudar.

Suponhamos que a dívida seja 80% do PIB e que este último possa crescer a um ritmo sustentável de 2% ao ano. Caso a taxa real de juros seja 4% ao ano, o superávit necessário para manter a dívida estável ao redor de 80% seria:

h* = (4%-2%)*80% = 1,6% do PIB

Caso, porém, a taxa real de juros seja 1%, o superávit primário requerido para estabilizar a relação dívida-PIB seria:

h* = (1%-2%)*80% = -0,8% do PIB

Daí Lara Resende conclui que “se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento, a dívida não tem custo fiscal, pois não há necessidade de aumento de impostos para seu carregamento”. A conclusão, diga-se, não é verdadeira em geral, pois se o déficit primário observado for superior ao nível crítico (-h>-h*), tanto a elevação de impostos quanto a redução de gastos seriam necessárias para estabilizar a dívida, mesmo quando r < g. Não é este, porém, o ponto principal.

Lara Resende reconhece que, ao fixar a taxa de juros num nível inferior ao ritmo de crescimento do PIB, o BC pode perder o controle da demanda, e, portanto, da inflação. Sua recomendação, no caso, é que se use a política fiscal. Em suas palavras

A visão Cartalista da MMT compreende que o excesso de demanda deve ser necessariamente controlado através da política fiscal. A política monetária, além de pouco eficiente, como indica o desaparecimento da Curva da Phillips [grifo meu], quando eleva a taxa de juros acima do crescimento, tem altos custos fiscais e bem-estar”.

Antes de entrar na recomendação propriamente dita, cumpre assinalar que o “desaparecimento da Curva de Phillips”, se real, afeta tanto a política fiscal quanto a monetária. Concretamente, para uma dada expectativa de inflação, a curva de Phillips mapeia para cada nível de hiato do produto (a distância entre o PIB observado e o potencial) determinado nível de inflação.

O nível do hiato depende, dentre outras variáveis, tanto da política fiscal como da política monetária. Todavia, se variações do hiato não afetam a inflação (o tal “desaparecimento” da curva de Phillips), a conclusão inescapável é que tanto a política monetária quanto a fiscal seriam pouco eficientes; não há razão para concluir que apenas uma delas, no caso a monetária, teria perdido a eficácia.

Feita a correção, o cerne do argumento traz pouco de realmente novo.

A mera inspeção do modelo utilizado pelo BC brasileiro para projetar a inflação (e não falo aqui de nada tão sofisticado quanto as versões DGSM, mas sua versão de pequeno porte), como, por exemplo, descrito pelo Relatório de Inflação publicado em junho de 2017, revela que a curva de demanda agregada da economia (a curva IS) “descreve a dinâmica do hiato de produto como função de suas defasagens, da taxa real de juros ex-ante, de variáveis fiscais e externas e de variáveis de controle” [grifo meu].

Posto de outra forma, a modelagem da demanda agregada na abordagem tradicional reconhece a existência de infinitas combinações entre taxa real de juros e resultado fiscal que produzem o mesmo nível de hiato do produto. Caso a política fiscal seja mais apertada, menos será exigido da política monetária e vice-versa, ou seja, o que Lara Resende propõe como inovação nada mais é do que a já conhecida troca (trade-off) entre política monetária e política fiscal. Trata-se uma coisa boa da proposta de Lara Resende, mas que dificilmente poderia ser classificada como coisa nova.

Nos termos muito bem colocados pelo Samuel, o atual arranjo atribui à política monetária a tarefa de controlar a inflação, enquanto a política fiscal lida com a sustentabilidade da dívida; Lara Resende propõe inverter as atribuições, dando à política fiscal o encargo de controlar a demanda (portanto a inflação), enquanto a política monetária ficaria responsável por garantir a solvência da dívida.

A este respeito, porém, como assinalado pelo Samuel “[a] experiência do pós-guerra nos ensinou que a política fiscal é muito lenta, pois depende essencialmente do tempo da política, enquanto a política monetária tem a agilidade necessária para manter a inflação controlada”. Complemento notando que a inflação é tipicamente um problema de curto prazo, enquanto a (in)sustentabilidade da dívida é um fenômeno que se manifesta ao longo de vários anos, o que permite resposta mais lentas do que no caso inflacionário.

Caso, porém, reste alguma dúvida a respeito, basta notar que entre 2015 e 2018 o déficit primário no Brasil caiu de 1,9% para 1,6% do PIB (o resultado recorrente, mais relevante para aferir o efeito da política fiscal sobre a demanda, mostra queda ainda mais lenta, de 2,6% do PIB em 2015/16 para 2,3% do PIB no ano passado), requerendo, entre outras coisas a aprovação de emenda constitucional estabelecendo um teto para o gasto público. Neste meio tempo a Selic subiu de 11,75% aa para 14,25% aa antes de ser reduzida a 6,5% aa, o que ilustra muito claramente a diferença em termos de capacidade de reação de uma e outra.

Neste caso temos uma coisa nova, que, porém, não é boa.

Isto dito, é curioso que Lara Resende invoque a MMT para embasar algo tão corriqueiro como a troca entre política monetária e fiscal para fins de controle da demanda. De fato, como argumenta Paul Krugman em artigo recente, os defensores da doutrina não aceitam esta possibilidade.

Krugman nota que, em condições “normais” (quando a taxa de juros não está sujeita à restrição de não-negatividade), a visão convencional é exatamente a descrita acima, ou seja, “desde que a política monetária esteja disponível, há um intervalo de déficits fiscais consistente com o objetivo [pleno emprego]. A questão então se torna uma de trocas: as coisas que o governo conseguiria comprar com um déficit mais elevado valeriam mais do que o investimento privado perdido devido à taxa de juros mais alta? Frequentemente a resposta será sim. Mas há uma troca”.

Esta, porém, não é a visão da MMT, que parece afirmar que há apenas um nível de déficit consistente com o pleno-emprego, o que só seria verdade quando a política monetária estivesse constrangida por não conseguir reduzir a taxa de juros (muito) abaixo de zero.

Em suma, não há nada de revolucionário, do ponto de vista teórico, nas prescrições de Lara Resende. Sim, a MMT se desvia consideravelmente da teoria macroeconômica tradicional, mas sua sugestão não parece amparada na MMT e sim na abordagem que admite a possibilidade de troca entre a política monetária e a fiscal no que se refere ao controle da demanda agregada.

Por outro lado, a mudança de atribuições dos instrumentos de política parece para lá de problemática. Nossa própria experiência recente revela as dificuldades de ajuste da política fiscal, o que já é um problema quando enfrentamos a questão de sustentabilidade da dívida. Concretamente, há certo consenso que, na ausência de reforma da previdência, o teto de gastos se tornará insustentável ainda antes de levar à estabilização da dívida. Imagine-se, portanto, se fosse necessário ajustar a política fiscal para lidar com as vicissitudes do ciclo econômico.

Neste aspecto não há muito o que discutir: a experiência também mostra que a política monetária não é apenas mais ágil que a fiscal, como também os resultados mostram sua eficiência, pois a inflação caiu. O modelo de médio porte do BC sugere, ademais, que a resposta a uma elevação de 1 ponto percentual na Selic reduz a inflação em cerca de meio ponto percentual ao fim de 4 trimestres, enquanto o efeito (negativo) sobre o hiato de produto tem seu máximo 2 trimestres após a elevação da taxa de juros. Em contraste, com boa vontade, se espera que a reforma da previdência, apresentada em fevereiro, seja aprovada no segundo semestre do ano...

É mesmo muito barulho por nada...