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quinta-feira, 26 de março de 2020

Hoje e amanhã


Há uma guerra em curso e para vencê-la teremos que passar por uma recessão inédita. Para evitar que dure muito mais que o necessário e para salvar vidas teremos que aumentar substancialmente o endividamento público. Quando emergirmos, espero, da crise, a tarefa de estabilização se tornará ainda mais difícil do que já era.

Normalmente escrevo minha coluna na segunda, logo cedo; excepcionalmente, dado que terá que ser publicada na quarta, a preparo na terça à tarde, quase uma violência para um CDF assumido, que sempre entregou trabalhos e lições com antecedência (menos minha tese de doutorado: um dia conto a história). Não é por acaso, mas sim porque a situação é incrivelmente fluida e novas informações surgem a cada minuto. Mesmo assim, sinto que a coluna estará irremediavelmente datada ao ser publicada.

Sabemos algumas coisas, mas nada, ou quase nada, sobre várias outras.

Está claro que a estratégia mais adequada no momento para conter a pandemia envolve uma quarentena generalizada, mantendo uns poucos setores essenciais (saúde, por óbvio, segurança, supermercados e farmácias, etc.). Parece ter funcionado em Hubei e há sinais, ainda incipientes, que pode reverter o quadro de infecção e mortalidade na Itália. Há cada vez mais países adotando medidas nesse sentido, mais recentemente o Reino Unido e a Índia e, se não quisermos problemas ainda maiores, também devemos enveredar por esse caminho.

Obviamente os custos econômicos são gigantescos. Mesmo com minhas restrições pessoais aos PMIs (índices de difusão que tentam medir a atividade quase em tempo real), não há como não se espantar com a divulgação do índice para a Zona do Euro, que caiu de 51,6 em fevereiro (leituras acima de 50 indicam expansão da atividade; abaixo, contração) para 31,4 em março. Em particular, no setor de serviços, mais fortemente atingido, a queda foi ainda mais marcante: de 52,6 para 28,4, o menor da história.

Nos EUA a queda não foi (ainda) tão pronunciada (de 49,6 para 40,5 entre fevereiro e março), mas já indica contração considerável e mais por vir.

Tal retração é necessária, ainda que dolorosa. Sem ela os riscos de os hospitais não darem conta dos infectados que necessitam de tratamento mais específico sobem demais e a taxa de mortalidade se torna ainda maior. Os números estão longe de ser definitivos, mas, até onde consigo entender, com o tratamento adequado a mortalidade ficaria próxima a 0,2% dos infectados; sem o tratamento, ao redor de 4%, inaceitável no século XXI.

Há, claro, os custos, inclusive em vidas humanas, da recessão por força das medidas de distanciamento social, mas a este respeito cito trabalho recente de Robert Barro, José Ursua e Joanna Weng sobre a “Gripe Espanhola” de 1918-19 que tenta estimar os efeitos da influenza sobre a atividade, chegando a um impacto ao redor de 6% de queda no PIB per capita (e 8% para o consumo per capita) para mortalidade ao redor de 2%. Se corretos, tais números sugerem que não combater a infecção por meio da quarentena terá resultados econômicos mais severos e por motivos ainda piores.


A questão passa a ser então mitigar os efeitos econômicos da recessão, tentando evitar que o impacto, esperamos, temporário da pandemia sobre a atividade se prolongue.

Há, ao menos, dois canais. Um deles é o aumento do desemprego, que tira renda de parcela substancial da população, reduzindo, portanto, seu consumo muito além do período de quarentena. O outro é a parada e possível, se não provável, destruição de empresas, principalmente de pequeno e médio portes, que podem não sobreviver no período pela restrição de caixa e dificuldade de obter o capital de giro para se manter em dia com despesas, em particular sua folha de pagamento.

Do lado do desemprego, as políticas mais bem sucedidas foram as empregadas pela Alemanha nos meses seguintes à Grande Recessão (embora existam bem antes disso): a redução de jornada e salários, mas com o Tesouro bancando parcela dos salários, com foco naqueles com renda mais baixa. Para o caso do Brasil, trabalho de Carlos Góes e Ricardo Dahis (que recebi recentemente) estima, com base na RAIS, em R$ 29 bilhões/mês o custo para o Tesouro no caso de compensação integral para quem receba até 1 salário-mínimo (SM), 93% para quem recebe até 2SM e 83% para quem ganha até 4SM.

Noto, assim como os autores, que tal proposta só atende o mercado formal de trabalho, que, pelos dados da PNAD, é algo como 3 vezes maior, em termos de massa salarial, que o mercado informal (incluindo nessa conta os trabalhadores por conta própria sem CNPJ), mas com prevalência de salários mais baixos, portanto uma ajuda proporcionalmente maior. Numa primeira aproximação, falamos, assim, de algo na casa de R$ 45 bilhões/mês (da ordem de 20% da massa salarial mensal), ou R$ 135 bilhões presumindo (por enquanto) que este esquema dure um trimestre.

Estimo, ao mesmo tempo, contração do PIB no ano ao redor de 5% (a certeza quanto a este número é baixa, mas os resultados que apresentarei não são tão sensíveis a esta suposição), o que pode reduzir a arrecadação em R$ 130 bilhões. Somados à meta fiscal para 2020 (déficit primário de R$ 124 bilhões), teríamos um resultado primário negativo ao redor de R$ 390 bilhões (5,3% do PIB, o maior da história).

Por outro lado, a taxa de juros deve cair além do já definido pelo Copom, de modo a reduzir a conta de juros para R$ 145 bilhões, portanto um déficit total de R$ 520 bilhões (7,3% do PIB, longe do nosso recorde, 8,5% do PIB em 2015).

Já no que se refere a empresas, Armínio Fraga, Vinícius Carrasco e José Alexandre Scheinkman propõem um programa de crédito de R$ 120 bilhões, bancado também pelo Tesouro (remeto os interessados nos detalhes ao artigo original).

Somados o déficit fiscal e a linha de crédito (cuja contrapartida, não esqueçamos, é aumento da dívida do governo), a dívida bruta saltaria de R$ 5,5 trilhões (75,8% do PIB) no final do ano passado para R$ 6,2 trilhões (86,7% do PIB) em 2020.

Não é um aumento trivial. Em particular, com 10 pontos percentuais de PIB a mais de dívida as condições para sua redução nos próximos anos ficam ainda mais complicadas, isto é, os resultados primários requeridos para conter a dívida se tornam tipicamente maiores.

Não é, reitero, motivo para deixar de fazer o que está sendo proposto. A questão agora não é estabilizar a dívida, mas vencer o vírus e manter vivas pessoas e empresas ao longo de um período dificílimo. Independentemente de tais méritos, porém, quando retornarmos (se retornarmos) a um certo grau de normalidade, nossa tarefa vai ser ainda mais árdua do que era antes da pandemia.

Passada a crise, as reformas serão ainda mais necessárias do já eram e os riscos à estabilidade bem maiores. Façamos, então, tudo que deve ser feito para preservar vidas, mas não se esqueçam que há tarefas também hercúleas quando o pior tiver sido (como espero) superado.




(Publicado 25Mar/2020)

sábado, 21 de março de 2020

Sem adultos na sala

A natureza do impacto econômico da pandemia está se transformando no exterior e no Brasil: o efeito mais importante deverá ser a restrição à oferta de trabalho, com reflexos negativos no produto. Muito embora seja temporário, há mecanismos de propagação que – se não combatidos – podem causar contração ainda mais séria. Medidas de proteção social e adiamento de recolhimento de impostos podem ajudar e são compatíveis com o arcabouço legal do país. A bola está com os políticos, o que não me anima em nada.

A natureza econômica da crise do Covid-19 está mudando nos países ocidentais, inclusive no Brasil. Até há pouco o impacto da pandemia sobre a atividade nos países desenvolvidos se dava principalmente por meio dos problemas nas cadeias de suprimentos. Como se originou na China, responsável por parcela considerável dessas cadeias, indústrias nos EUA, Europa e Japão, principalmente, passaram a ter dificuldades de abastecimento de componentes e peças.

Assim, os efeitos da crise nesses países se manifestaram inicialmente no setor industrial, como ficou aparente na queda mais expressiva deste setor comparativamente ao setor de serviços naquele momento. À medida, porém, que vários países começaram, corretamente, diga-se, a impor restrições sobre a aglomeração de pessoas, seja no trabalho, seja nos transportes públicos, o problema maior deixou de ser a cadeia de suprimentos e passou a ser a queda do número de horas trabalhadas, tanto na indústria, como, de maneira ainda mais séria, no setor de serviços.

Houve (e continua a existir) um corte descontínuo na oferta do insumo trabalho, cuja manifestação mais óbvia é a queda, também descontínua, da produção. Posto de outra forma, a restrição à produção do lado da oferta se tornou muito mais severa. Há também, é bom deixar claro, impactos sobre a demanda, mas o fator mais sério no momento é a menor capacidade de produção derivada do corte da mão-de-obra disponível.

Já no Brasil, apesar de algum impacto em termos de abastecimento, a manifestação inicial da crise se deu principalmente pelo lado da demanda, pela queda direta das exportações para a China, destino de quase 30% das vendas externas, bem como pela queda expressiva dos preços das commodities (exportadas também para outros países).

À luz, porém, do agravamento da epidemia em território nacional, há iniciativas similares às adotadas nos países mais atingidos pela crise (também corretas). Apesar da completa irresponsabilidade do Presidente da República, os adultos remanescentes no governo federal, bem como outras autoridades, já começam a discutir medidas para atrasar a difusão do coronavírus, como a paralisação de aulas, fechamento de cinemas, etc.

Em breve teremos muito provavelmente que adotar também medidas de restrição à circulação de pessoas se não quisermos causar uma sobrecarga boçal sobre o nosso sistema de saúde (talvez já tenhamos passado do ponto de não-retorno, mas não tenho condições de aferir esta possibilidade). Quando isso acontecer, também nossa economia sofrerá efeitos primordialmente por restrições de oferta, sem, é claro que tenham desaparecido os problemas pelo lado da demanda.

Se houver um mínimo de competência na gestão da crise de saúde pública (uma hipótese que me parece pouco provável agora, confesso), haverá forte baque na produção, no setor industrial e no de serviços, em particular nesse último, mais intensivo em mão-de-obra, mas o impacto deverá ser temporário. Passado o pico da epidemia, a restrição de mão-de-obra gradualmente desaparecerá.

Contudo, mesmo que o choque negativo seja temporário, há mecanismos de propagação cujos efeitos são mais duradouros. Muito embora trabalhadores formais (cerca de 48% dos empregados no Brasil, entre os com carteira de trabalho e funcionários públicos estatutários e militares) disponham de certo colchão de proteção, os informais e os empregados por conta própria não se beneficiarão desse seguro.

Já empresas que perderem receitas, com baixas perspectivas de recuperação dessas perdas nos próximos trimestres (em particular no setor de serviços, como, por exemplo, restaurantes), também se descapitalizarão. O risco, no caso, é que a perda de receita, mesmo por um período limitado, possa levar a problemas de crédito, cujas repercussões agravariam o choque inicial.

O desafio de política econômica então é limitar os efeitos “secundários” da possível parada na produção por força da pandemia. Ao contrário de propostas de suspensão, ou eliminação, do teto dos gastos para projetos de infraestrutura (que só ficarão prontos a tempo da próxima pandemia), há outras que permitem resposta muito mais eficiente para lidar com isto dentro do arcabouço institucional vigente.

Cito, dentre elas, o adiamento do pagamento de tributos federais durante um período limitado, mas suficiente para diminuir a pressão sobre o caixa das empresas. Na mesma toada, alguma forma, também temporária, de extensão de seguro-desemprego pode ajudar famílias a transporem um intervalo de alguns meses com um tanto de renda.

A propósito, as medidas anunciadas pelo governo federal, antecipando pagamentos a aposentados e o abono salarial ajudam em algum grau, mas não são tão focadas quanto o necessário. Aposentados e pensionistas já têm renda garantida, enquanto o abono é pago a trabalhadores formais; quem não pertence a essas categorias, justamente os mais fragilizados, seguem expostos. Por outro lado, como se trata apenas de uma antecipação de um gasto que ocorreria mais tarde no ano, não afeta o resultado anual.

Isso dito, eventuais gastos podem ser acomodados dentro do teto porque a Constituição Federal (CF), em seu artigo 167, §3º, permite a abertura de créditos extraordinários em caso de “guerra, comoção interna ou calamidade pública”. E mais: o texto constitucional remete ao artigo 52 da CF, que trata das medidas provisórias. Em particular, em tal artigo, §1º, inciso I, alínea d, é ressaltada a possibilidade de abertura dessa modalidade de crédito extraordinário por medida provisória. Há, portanto, do ponto de vista legal e institucional amplo espaço para a ação do governo sem necessidade de alterar o teto dos gastos.

Do ponto de vista fiscal não resta dúvida que tais medidas, se adotadas, elevarão o déficit do governo, portanto sua dívida. Todavia, desde que limitadas no tempo (pensamos num horizonte de alguns meses) e em reação à calamidade pública, dificilmente teriam um efeito negativo sobre a percepção de risco-país e taxas longas de juros como as resultantes de alterações profundas no arcabouço legal do país.

De resto, se bem focalizadas, teriam impacto bem mais poderoso no sentido de conter os efeitos secundários da crise de saúde do que a ideia ingênua de um programa mágico de investimentos em infraestrutura sem projetos prontos e dependentes de aprovações regulatórias que demandariam meses antes de seu início.

Isso dito, não há como dourar a pílula. Caso o desenvolvimento da epidemia nos leve, como creio, a um cenário de quase quarentena (ou quarentena propriamente dita) não haverá como escapar de um, talvez dois, trimestres de contração severa da atividade.

Noto ademais que a resposta adequada, da forma como entendo o problema, requer um grau de competência política que, à luz do relacionamento recente entre Executivo e Legislativo, parece estar a parsecs de distância. A ausência de adultos na sala, em particular no Executivo, gera um risco considerável de inação, ou ainda de respostas equivocadas, comuns quando falta comando ao processo de articulação política.

Nesse contexto, o afrouxamento adicional da política monetária (bem como medidas de facilitação do crédito) é correto, mas certamente insuficiente para lidar com um problema de amplitude bem maior. Para o mal, ou para o bem, a bola está com as lideranças políticas do país, de quem se aguarda – sem muita esperança no meu caso – a estatura requerida para lidar com uma crise seríssima.




(Publicado 18/Mar/2020)

segunda-feira, 16 de março de 2020

Uma proposta modesta


A ideia de suspender ou eliminar o teto de gastos para aumentar o investimento público é uma das piores já propostas. Começa por ignorar a necessidade de aprovação orçamentária, licitação e licenciamento ambiental, que implicam prazo de resposta muito superior ao da vigência da crise. Ignora também que 70% da queda do investimento público resultou de estados e municípios, não sujeitos ao teto. Deixa, por fim, de considerar as consequências do fim do teto sobre a taxa de juros. Ao contrário de países desenvolvidos, aqui ainda temos espaço para reduzir consideravelmente a taxa de juros.

Entre as muitas ideias sem sentido na atual conjuntura se destaca, pelos piores motivos possíveis, a de suspender (ou eliminar) o teto de gastos públicos para aumentar os investimentos do governo de modo a evitar, ou mitigar, os riscos recessivos decorrentes dos impactos da pandemia de Covid-19.

A começar pelo assombroso distanciamento da realidade de como a política de gastos (fiscal) é praticada em condições normais de temperatura e pressão. Ao contrário do mundo dos livros-texto, em que o governo decide monocraticamente sobre suas despesas, qualquer programa de investimento precisa – e trata-se de desenvolvimento positivo em nome da democracia – de aprovação parlamentar.

Não é bando de tecnocratas iluminados  que determina o melhor projeto de investimento possível, seja no que respeita ao destino da aplicação (transporte? energia? saneamento?), onde será feita e em que momento. O resultado do jogo, democrático, repito, é bem mais complicado, fruto de negociações complexas, geralmente demorado e bem diferente do que sairia da mente do tecnocrata bem interessado. Não seria impossível, mas bastante provável, que tais programas, quando prontos, já tenham se tornado desnecessários do ponto de vista de política anticíclica

Diga-se, aliás, que mesmo que não houvesse interferência parlamentar, também não há garantia que eventuais projetos de investimento fossem gerados apenas com o bem-estar comum como norte. Se assim fosse, ditaduras mundo afora seriam modelos de crescimento, algo consistentemente negado pelas evidências.

Em particular, no Brasil o processo é adicionalmente complicado em pelo menos dois outros aspectos. A lei 8666, que regula licitações, impõe condições severas para gastos como os propostos, com o objetivo de evitar corrupção, sem muito sucesso, como se vê. De qualquer forma, quem tem um mínimo de entendimento de como funciona a máquina pública sabe que até a licitação de um projeto ser aprovada, a pandemia já terá chegado ao fim.

Isso para não falar do licenciamento ambiental, que – ao menos – pode ficar pronto para quando a próxima pandemia nos atingir.

O distanciamento da realidade também impera no diagnóstico quanto à queda recente dos investimentos públicos, atribuindo-a ao teto de gastos.

Noto que o teto de gastos se aplica única e exclusivamente ao governo federal, e que a queda do investimento público afeta todas as esferas de governo. Em particular, como mostrado na tabela abaixo, a redução do investimento federal representa perto de 30% da redução total; estados e municípios, que não estão sujeitos ao teto de gastos, respondem por 70% da queda. Governos estaduais são responsáveis por metade da queda do investimento público entre 2014 e 2019.

Demonstrativo do Governo Geral – R$ bilhões de 3T2019

2010
2014
2019 b
RECEITAS a
2.654,8
2.876,7
2.976,0
Governo central
1.971,9
2.044,1
2.053,0
Governos estaduais
833,1
894,0
901,8
Governos municipais
552,8
627,5
669,3
DESPESAS a
2.764,1
3.235,0
3.396,4
Governo central
2.097,6
2.314,7
2.473,9
Governos estaduais
855,1
929,7
926,9
Governos municipais
514,3
602,6
643,6
RESULTADO OPERACIONAL LÍQUIDO
-109,2
-358,3
-420,4
Governo central
-125,7
-270,6
-421,0
Governos estaduais
-22,0
-35,7
-25,1
Governos municipais
38,5
24,9
25,7
INVESTIMENTOS
185,4
182,3
92,3
Governo central
54,5
52,9
25,7
Governos estaduais
70,3
73,9
27,6
Governos municipais
60,5
55,5
38,9
a Devido a transferências intergovernamentais as linhas totais de receita e despesa são distintas da soma de cada linha individual
b Quatro trimestres até setembro de 2019
Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional

Não foi por falta de receita, que no conjunto do governo geral aumentou perto de R$ 100 bilhões no período. Por outro lado, as despesas dos três níveis de governo aumentaram pouco mais de R$ 160 bilhões, principalmente por conta de benefícios sociais (aposentadorias e pensões majoritariamente), que cresceram R$ 173 bilhões, bem como o funcionalismo, R$ 39 bilhões, apenas parcialmente compensadas por quedas em outras rubricas.

Repetindo descaradamente o que escrevi em várias colunas, esse padrão, sobretudo no que se refere aos governos locais, reflete prioridades distorcidas, assim como a rigidez dos gastos, que poderia ser reduzida por meio de reformas, especialmente a PEC emergencial, aquelas mesmas que alguns dizem ser não prioritárias.

Além do assustador distanciamento da realidade, os proponentes da suspensão (ou eliminação) do teto também ignoram as consequências da medida.

A primeira é o impacto do teto sobre a taxa de juros. Por força de alguma esquizofrenia ainda não totalmente diagnosticada, os defensores da eliminação do teto o fazem em nome de elevar a demanda interna, mas, curiosamente, não consideram qualquer efeito da demanda mais elevada sobre a taxa de juros.

Independentemente de crenças esquizofrênicas, porém, a taxa de juros que vigora com uma política fiscal mais frouxa tem que ser mais elevada do que a que vigora sob política fiscal mais apertada por uma razão simples: para manter a mesma velocidade do carro (ie, a inflação), teremos que pisar mais forte no freio (taxa de juros) se pisarmos mais forte no acelerador (gastos). Tão simples quanto isso.

Outra consequência, mais sutil, mas não menos importante diz respeito à fragilidade institucional. O teto não foi colocado na Constituição por acaso. Percebeu-se que mesmo leis complementares, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, podem ser contornadas, ou mesmo facilmente modificadas, caso o governo de plantão esteja realmente disposto a enfiar o pé na jaca fiscal, como amplamente demonstrado no período Dilma.

A ideia de suspender um mandamento constitucional por um motivo supostamente “nobre” depende fundamentalmente do que consideramos ‘nobre”, o que abre as porta para toda espécie de “pedaladas” sempre com a melhor das intenções (a Bolsa Família e o Programa de Sustentação de Investimento foram alguns dos fins “nobres” das pedaladas fiscais). Depois de aberta a caixa de Pandora, porém, os males se espalham e no fundo só fica a esperança.

Por fim, um argumento recentemente utilizado refere-se à queda recente da taxa real de juros, que melhorou a dinâmica da dívida. Sabemos, em particular, que o superávit primário necessário para estabilizar a relação dívida-PIB pode ser aproximado como a diferença entre taxa real de juros e a taxa de crescimento do PIB multiplicada pela relação dívida-PIB.

Assim, se a relação dívida-PIB é de 80%, com taxa real de juros a 4% e PIB crescendo 1%, o superávit primário requerido é (0,04-0,01) x 0,8 = 2,4% do PIB. Caso, porém, o juro caia a zero, como pode ocorrer em 2020 (sem impulso fiscal, diga-se, mas deixemos para lá), mesmo com o crescimento de 1% o superávit requerido seria (0,00-0,01) x 0,8 = -0,8% do PIB, isto é, até um déficit primário daria conta do recado.

O pequeno problema é que o déficit primário estimado para este ano se encontra na casa de 1,5% do PIB, ainda maior do que seria necessário para estabilizar a dívida. Adicionalmente, o déficit recorrente, sem receitas e despesa extraordinárias será ainda maior, possivelmente ao redor de 2% do PIB. Vale dizer, mesmo a queda da taxa de juros não abre nenhum espaço hoje para elevação do gasto sem comprometer a dinâmica da dívida pública.

Tendo dito isto, noto que despesas derivadas de problemas como uma epidemia de coronavírus podem, sim, ser tratados dentro do arcabouço institucional do teto de gastos. Como notado por Letícia Dias (Créditos extraordinários no novo regime fiscal da EC 95/2016), a legislação permite abertura de créditos extraordinários em casos de calamidade pública. Não falamos, é claro, de investimentos em infraestrutura, mas da possibilidade de mobilizar recursos caso a epidemia se instale no país, hipótese na qual precisaremos de munição fiscal seca para usar, devidamente enquadrada nas regras constitucionais.

À luz de toda discussão acima, e considerando que – ao contrário de países desenvolvidos – o Brasil ainda apresenta taxas nominais de juros positivas, deveria ser claro que o melhor instrumento para lidar com a consequências do Covid-19 sobre o crescimento é a redução adicional da Selic. Quem diria que autodenominados progressistas se oporiam a essa ideia?



(Publicado 12/Mar/2020)

O PIB infantil


A divisão entre “PIB privado” e “PIB público” faz tanto sentido quanto chamar os gastos da mesada dos filhos de “PIB infantil”. Embora o componente privado da demanda tenha de fato predominado, trata-se de padrão que vigora na maior parte do tempo fora de períodos recessivos.

Tabela publicada pela Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) sobre o resultado do PIB do ano passado causou polêmica, em particular, como não poderia deixar de ser, nas redes sociais. Segundo o material divulgado, apesar de o crescimento do PIB ter atingido apenas 1,1% no ano passado, o “PIB público” teria caído 2,25%, enquanto o “PIB privado” teria crescido 2,75%.

Tal cálculo foi baseado em metodologia divulgada pela Secretaria de Política Econômica (SPE), publicada por meio de nota técnica (“Retomada Via Setor Privado”) em 19 de novembro de 2019. Em tal nota, a SPE lembra que a abertura usual do PIB pela ótica da demanda normalmente desagrega o resultado em seis componentes: (1) o consumo das famílias; (2) o consumo do governo; (3) a formação bruta de capital fixo (conhecida como investimento); (4) exportações; (5) importações; e, finalmente, (6) a variação dos estoques.

Por definição, o segundo componente acima captura a contribuição dos gastos do governo para a demanda total; já no caso do terceiro componente, o investimento, não é possível fazer tal atribuição apenas com os dados das contas nacionais trimestrais. Com efeito, dentro da formação bruta de capital fixo há investimentos realizados pelo setor privado (fábricas, armazéns, casas, máquinas) e pelo governo (estradas, viadutos, postos de saúde, escolas); não podemos, pois, saber a distribuição deste gasto sem outra fonte de informação.

Há, contudo, outra fonte: as Contas Econômicas Integradas, também calculadas pelo IBGE, que, no entanto, só são apresentadas em frequência anual (ou seja, não há dados trimestrais) e com grande defasagem. O último número disponível, por exemplo, refere-se a 2017.

Isto dito, desde 2015 o Tesouro Nacional tem estimado e divulgado números em bases trimestrais harmonizados com o Sistema de Contas Nacionais (os leitores já foram apresentados a eles algumas vezes nos últimos meses), dentre os quais a estimativa de investimentos do governo, devidamente apelidada de Aquisição de Ativos Não-Financeiros, nome que afasta imediatamente qualquer interessado. Torna-se possível, assim, estimar dentro do investimento total (a Formação Bruta de Capital Fixo) a parcela governamental (Aquisição de Ativos Não-Financeiros).

A soma do consumo do governo com o investimento governamental consiste no que a SPE chama de “PIB público”, enquanto a restante se enquadraria na categoria “PIB privado”.

Noto, porém, para começar que o último dado disponível para a série de investimento governamental se refere ao terceiro trimestre de 2019, ou seja, não é possível calcular a contribuição dos setores público e privado para a demanda agregada no ano passado. Os dados divulgados pela Secom, descobrimos, referem-se ao terceiro trimestre de 2019, e, no caso, cotejando apenas esse trimestre com igual período de 2018, ou seja, não passível de comparação com o crescimento de 2019, que reflete a média dos quatro trimestres do ano sobre os quatro do ano anterior.

O gráfico abaixo apresenta minhas estimativas desses componentes da demanda, que, embora semelhantes, não são iguais às da SPE, no caso medidos ao longo de quatro trimestres sobre os quatro imediatamente anteriores.

Fonte: Autor (com dados do IBGE e STN)



Ressalto também que o predomínio do componente privado não representa exatamente uma novidade: em 20 dos 31 trimestres de nosso período amostral ele superou o do governo. A maior exceção ocorreu durante os 11 trimestres de recessão, quando o componente privado superou o público em apenas 3 deles. Vale dizer, fora de períodos recessivos – quando o componente privado da demanda costuma cair mais fortemente – a normalidade, ao menos no período para o qual dispomos de dados, é exatamente a predominância do setor privado.

Por fim, mas não menos relevante, não é correto tratar tais variáveis como “PIB privado” e “PIB público”.

O PIB, como aprendemos em contabilidade nacional, é a soma do valor dos bens e serviços finais produzidos na economia. Também aprendemos que o PIB pode ser analisado pela ótica da demanda, exatamente os seis componentes que destacamos acima. Todavia, não há como atribuir por tal perspectiva cada pedaço do que é produzido aos setores público e privado, ao menos não como dá a entender a metodologia da SPE.

A ótica da demanda apenas destaca o destino que foi dado a cada parcela da produção. No caso em questão, quanto do produto foi usado para bancar o consumo do governo, como funcionalismo e manutenção da máquina pública (19,5% do PIB em média nos últimos 10 anos, bem mais do que em países de renda per capita semelhante à nossa) e quanto foi destinado para os investimentos públicos (1,9% do PIB e cadente de 2014 em diante). Diga-se, aliás, que a queda do investimento público – conforme exploramos em colunas anteriores – não decorre de falta de recursos, mas da priorização da manutenção da máquina de governo sobre os serviços prestados à população.

Não se trata, portanto, do “PIB do governo” (que certamente não é responsável por mais de 20% da produção nacional), nem, por consequência, de “PIB privado”, daí a insistência ao longo da coluna de denominá-los de contribuição pública e privada para a demanda agregada.

Se tal ponto ainda não ficou claro, pensem numa família com crianças fora da idade produtiva. O “PIB” familiar é resultado do trabalho de adultos, embora presumivelmente as crianças representem parcela do gasto (bancado por sua mesada). Nesse contexto faz tanto sentido definir o gasto realizado pelos filhos como o “PIB infantil” quanto chamar o conjunto de gastos do governo (em consumo e investimento) de “PIB público”.

No final das contas, o desafio do governo não é, ou não deveria ser, energizar suas bases em redes sociais com comunicados sem sentido da Secom. A verdade é que, depois da bem sucedida mudança na previdência, o processo de reforma está travado. Medidas importantes, como a PEC emergencial, esperam um mínimo de impulso por parte do Executivo, que se omitiu depois de enviá-las ao Congresso.

Já outras reformas, como a administrativa e a tributária, são sempre remetidas à “próxima quinta-feira”, enquanto o presidente resmunga que o Congresso não quer aumentar o número necessário de pontos para suspender a carteira de habilitação de motoristas incapazes de seguir as regras. Enquanto forem essas as prioridades da atual administração não podemos esperar nada muito melhor do que observamos no ano passado.




(Publicado 11/Mar/2020)

terça-feira, 10 de março de 2020

O vírus e os juros


A epidemia global mudou o cenário econômico e as perspectivas de taxas de juros, mesmo com restrições à sua efetividade. No Brasil deve se traduzir em afrouxamento adicional das condições financeiras.

Segundo a tradição judaica o feto não é considerado viável até se formar em medicina (discute-se no Talmud se tocar violino como o Itzhak Perlman também tem esta propriedade, mas divago...). Já no meu caso, o mais próximo que posso chegar a esse estágio é pela discussão sobre o impacto do coronavírus na economia global em geral e no Brasil em particular.

Houve uma mudança inesperada de política monetária nos EUA: muito embora os futuros de juros já indicassem 100% de chance de corte de 50 pontos-base na taxa de juros na reunião de 18/março, o Federal Reserve se antecipou a reduziu a Fed Funds rate de 1,50-1,75% ao ano para 1,00-1,25% ao ano. Estes mesmos futuros indicam boa chance de nova redução para 0,75-1,00% ao ano em abril.

Em linha com esse desenvolvimento, a taxa de juros de 10 anos nos EUA se encontra agora próxima a 1,0% ao ano, contra 1,7% ao ano há cerca de um mês. Mercados de renda fixa, portanto, voltaram a se preocupar com um cenário de recessão, esperando que o Federal Reserve reaja de acordo, isto é, reduzindo de forma tão agressiva quanto possível as taxas de juros de curto, notando, é claro, que o espaço para isto não é tão grande. Resta saber se tal reação será, ou não, eficaz.

A resposta depende crucialmente da identificação da natureza do choque a que foi submetida a economia: trata-se de um problema de insuficiência de demanda, ou de restrições de oferta? Como sempre, a resposta é difícil.

Não há dúvida que muitos dos problemas enfrentados no momento pela economia americana apresentam características de restrições de oferta. Há muitos anos as empresas americanas estenderam suas cadeias de suprimentos para fora do país, com forte ênfase na China, o epicentro da epidemia. Além disso, graças à modernização da logística, também reduziram significativamente o nível de estoques de partes e componentes, operando de forma “just in time” para reduzir custos.

A produção chinesa, todavia, sofreu um baque sem precedentes. Embora eu tenha cá minhas restrições aos Índices de Gerentes de Compras (PMI, na sigla inglesa), a informação que vem da China não pode ser ignorada. Tais índices definem a medida 50 como estabilidade, de modo que leituras acima de 50 indicam expansão e contração abaixo desse nível.

Pois bem, em fevereiro o PMI da indústria chinesa registrou 37,5 (contra 50 em janeiro), simplesmente o mais baixo desde o início da série em 2005, inferior inclusive à marca observada no auge da crise financeira (38,8 em novembro de 2008). Há receio que, pela primeira vez desde a Revolução Cultural, o PIB trimestral possa se contrair. Aparentemente só um vírus altamente contagioso conseguiu fazer o mesmo estrago na economia chinesa que as políticas de Mao Tsé-Tung.

Com isso, foram rompidas várias cadeias de suprimentos: há relatos, por exemplo, que a Apple teria que adiar o lançamento do novo modelo do iPhone devido a problemas com as fabricas da FoxConn na China. Tal efeito não se limita a uma única empresa ou mesmo país, dado que a China responde hoje por cerca de 12% das exportações globais e perto de 28% do produto industrial mundial.

Contra esse fenômeno a redução de taxa de juros terá pouca, se alguma, eficácia. Juros mais baixos não recomporão as cadeias de suprimentos, nem farão os trabalhadores chineses retornarem ao trabalho sem receio da epidemia.

Fosse esse, portanto, o único motivo de receio para a recessão global, não haveria porque imaginar qualquer papel para os bancos centrais e a política monetária. No entanto, não é o caso.

A epidemia trouxe um aumento brutal de incerteza, incluindo a sobrevivência de cada um. Já nós, como espécie, somos evolucionariamente mal adaptados para lidar com incerteza: o australopiteco que, ao ouvir um ruído de galho seco na savana, ficou fazendo contas para ver se valia a pena ainda procurar pelo alimento ao invés de fugir a toda velocidade provavelmente virou comida de leopardo sem deixar descendentes.

Quando o atual predador, no caso o coronavírus, ataca, nossa resposta programada é deixar que o medo prevaleça sobre a cobiça. Assim, bolsas mundiais despencam, talvez mais do que seria de se esperar em face de restrições de oferta que, embora severas, podem ter duração reduzida na comparação com o horizonte no qual empresas operam.

As implicações da queda dos preços das ações alcançam muito além dos eventuais especuladores. Seus detentores se tornam mais pobres, reduzindo gastos com consumo; empresas veem seu custo de capital (que se relaciona de maneira inversa ao preço das ações) aumentar, diminuindo o apetite por investimento.

Menores taxas de juros amenizam, em algum grau, tais desenvolvimentos e podem, portanto, mitigar os riscos de recessão. Posto de outra forma, há espaço para ação dos bancos centrais, embora limitado ao lado da demanda; não resolverão o problema, mas provavelmente será melhor ter a reação de política monetária no que não a ter.

Especificamente no caso do Brasil, espero que o componente de demanda seja mais relevante que o de oferta. Em que pesem os relatos de falta de componentes para a indústria nacional, levando inclusive a férias coletivas, o principal efeito sobre o país deve se dar pela queda dos preços internacionais de commodities. Tomando preços médios (em dólares) de fevereiro, observamos redução na casa de 5% do complexo soja, 8,5% do minério de ferro e por volta de 13% no caso do petróleo, notando que esses produtos representam praticamente 40% das exportações nacionais.

É verdade que a depreciação da moeda permite que nem todo o impacto seja transmitido diretamente ao produtor, mas, ainda assim, falamos de piora visível das relações de troca (preços exportação versus preços de importação), cujo efeito costuma deprimir a atividade.

Há, por certo, discussão relevante sobre possíveis efeitos sobre a inflação associadas ao enfraquecimento do real, mas o consenso que parece se formar – e do qual faço parte – sugere que a recuperação ainda modesta e a queda dos preços de commodities devam limitar o potencial inflacionário. De fato, a expectativa de inflação para 2020 segue em queda e há sinais incipientes de redução das expectativas referentes a 2021 também.

Em tal contexto, é natural que volte também ao debate a possibilidade de redução da Selic. Apesar do alerta do BC no mês passado, a mudança das condições internacionais deve levar a uma discussão mais intensa no comitê. De qualquer forma, mesmo que não se materialize agora novo corte da Selic, sua estabilidade deve perdurar mais do que esperado antes dos últimos desenvolvimentos, o que traduz em queda nas taxas de juros no horizonte dos próximos dois anos, sem, é claro, eliminar a possibilidade de novo afrouxamento monetário caso fique claro que o cenário de epidemia tende a reduzir adicionalmente a inflação.

Será que o Talmud abre exceção para economistas?




(Publicado 03/Mar/2020)

segunda-feira, 2 de março de 2020

A extinção das espécies


Notícias recentes mostram que governos estaduais estão se curvando às pressões das corporações, mesmo com finanças em pandarecos. Nos últimos anos houve deterioração visível de seu desempenho fiscal, por força de elevação de despesas, principalmente com o funcionalismo, levando ao sacrifício do investimento. Há cada vez menos dirigentes que destoem desse padrão.

Em Minas Gerais o governador Romeu Zema enviou projeto de lei determinando aumento salarial de quase 42% para policiais, bombeiros e agentes penitenciários. Já no Ceará a polícia militar se amotinou, insatisfeita com reajuste proposto pelo governo, o que levou o senador licenciado Cid Gomes a tentar invadir o quartel do batalhão da PM em Sobral, sofrendo ferimentos a bala (não fatais, ainda bem!). Outros estados temem movimentos semelhantes e há governadores prontos para ceder antes mesmo de serem pressionados.

Segundo estudo do Tesouro Nacional, que busca equiparar as diferentes metodologias de aferição dos gastos com o funcionalismo, Minas gasta quase 80% de sua receita corrente líquida com o pagamento de funcionários ativos e inativos, ultrapassando em muito o limite estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (60%); já no Ceará o gasto, por tal métrica é menor, mas, ainda assim, próximo ao limite. A bem da verdade, se a metodologia do Tesouro fosse aplicada para esses fins, nada menos do que 14 dos 25 entes federativos (estados e o Distrito Federal) estariam desenquadrados da LRF.

Não deveria ser surpresa, portanto, concluir que o conjunto dos governos estaduais apresente sérios problemas na área fiscal, conforme resumido na tabela abaixo, também cortesia da Secretaria do Tesouro Nacional (STN).

Resultado fiscal dos governos estaduais - % PIB


2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
Transações que afetam o patrimônio líquido










1
Receita
12,2
12,1
11,9
12,1
12,0
12,2
12,2
12,2
12,5
12,5
11
Impostos
7,8
7,7
7,7
7,7
7,6
7,6
7,6
7,8
8,0
8,1
113
Impostos sobre a propriedade
0,6
0,6
0,6
0,6
0,7
0,7
0,8
0,7
0,8
0,8
114
Impostos sobre bens e serviços
7,1
7,0
7,0
7,1
6,9
6,8
6,9
7,1
7,3
7,3
12
Contribuições sociais
0,6
0,6
0,6
0,8
0,8
0,9
0,8
0,6
0,6
0,7
13
Transferências / Doações
3,3
3,1
3,1
2,9
3,0
2,9
3,1
3,3
3,4
3,3
14
Outras receitas
0,6
0,7
0,6
0,7
0,7
0,9
0,7
0,5
0,4
0,5
2
Despesa
12,6
11,9
12,2
12,4
12,5
13,4
13,3
12,8
13,1
12,9

Despesa primária (ex-consumo de capital fixo e ex-juro)
10,5
10,3
10,6
10,9
11,0
11,3
11,5
11,5
11,6
11,6
21
Remuneração de empregados
4,3
4,3
4,3
4,6
4,6
4,9
4,8
4,8
4,8
4,8
22
Uso de bens e serviços
1,7
1,6
1,7
1,8
1,7
1,6
1,6
1,6
1,7
1,7
23
Consumo de capital fixo
0,5
0,5
0,5
0,5
0,5
0,5
0,6
0,5
0,6
0,6
24
Juros
1,6
1,1
1,2
1,0
0,9
1,5
1,3
0,8
0,9
0,7
25
Subsídios
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
26
Transferências / Doações
2,2
2,1
2,2
2,1
2,2
2,1
2,1
2,1
2,2
2,2
27
Benefícios sociais
1,8
1,8
1,9
2,0
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,5
28
Outras despesas
0,5
0,4
0,4
0,5
0,5
0,5
0,6
0,5
0,4
0,4

Resultado operacional bruto - ROB (1-2+23)
0,1
0,6
0,2
0,1
0,0
-0,6
-0,5
-0,1
0,0
0,2

Resultado operacional líquido - ROL (1-2)
-0,3
0,2
-0,3
-0,3
-0,5
-1,2
-1,1
-0,7
-0,6
-0,4
Transações com ativos não financeiros










31
Investimento líquido em ativos não financeiros
0,6
0,2
0,2
0,4
0,5
0,0
-0,1
-0,1
0,0
-0,2
31.1
Aquisição de ativos não financeiros
1,0
0,7
0,7
0,9
1,0
0,6
0,5
0,5
0,5
0,4
31.2
Alienação de ativos não financeiros
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
31.3
Consumo de capital fixo
0,5
0,5
0,5
0,5
0,5
0,5
0,6
0,5
0,6
0,6

Capacidade (+)/Necessidade(-) líquida de financiamento (1-2-31)
-0,9
-0,1
-0,5
-0,8
-1,0
-1,2
-1,0
-0,6
-0,5
-0,2

Capacidade (+)/Necessidade(-) líquida de financiamento primária ((1-141)-(2-24)-31)
0,6
0,9
0,6
0,1
-0,2
0,2
0,2
0,1
0,3
0,5
Fonte: Tesouro Nacional (dados para 2019 são os quatro trimestres acumulados até setembro)

Os dados da STN indicam que os estados se encontram em situação mais do que delicada no que diz respeito ao desempenho de suas contas. Seu resultado operacional bruto, positivo em média de 2010 a 2014, tornou-se negativo nos 5 anos seguintes (no caso tomamos os quatro trimestres até setembro de 2019 como resultado do ano fechado). Tal piora não se deve, é bom destacar, ao desempenho das receitas, que cresceram no período, atingindo seu máximo em 2019, mas sim ao crescimento persistente de suas despesas.

Esse resultado também não é decorrência do pagamento de juros, que caíram no período, mas do total de despesas primárias (também excluída, no caso, a depreciação do capital público), cujo aumento nos últimos cinco anos ficou na casa de 0,8% do PIB. Na verdade, as despesas primárias também atingiram seu pico histórico em 2019, R$ 835 bilhões, bem acima da média observada entre 2010 e 2014, R$ 770 bilhões (a preços constantes do terceiro trimestre de 2019).

A remuneração de empregados (ativos) somada aos benefícios sociais (aposentadorias e pensões), que representava 58% da despesa primária em 2010 e 60,5% em 2014, atingiu quase 63% em 2019, por força principalmente do gasto crescente com funcionários inativos, cuja participação na despesa primária saltou de 17,5% em 2010 para 21,7% em 2019. Medidas em reais ajustados à inflação do período, falamos de aumento de R$ 110 bilhões (0,7% do PIB) em nove anos.

O resultado da crise fiscal dos estados é a forte queda de seus investimentos, que – líquidos da depreciação – despencaram de 0,4% do PIB em 2010-14 para menos 0,2% entre 2015 e 2019, isto é, na média dos últimos cinco anos sequer repuseram o que foi depreciado no período.

O padrão que emerge é claríssimo: a chamada máquina pública estadual cada vez menos existe para prover serviços à população e cada vez mais a si mesma. Houve, é verdade, casos heróicos, como o protagonizado por Paulo Hartung em 2017, quando enfrentou a PM com mais galhardia que Romeu Zema e menos espalhafato do que Cid Gomes, postura que colocou seu estado entre os mais sólidos no que se refere às contas públicas (o Espírito Santo aparece como o segundo menor gasto com pessoal como proporção da receitas corrente líquida, à frente apenas de São Paulo).

Tal exceção não comprova regra alguma, apenas que dirigentes com firmeza de propósito no que tange à boa administração das contas públicas e que não se vergam às pressões corporativistas conseguem resultados melhores em termos de prestações de serviços à população, o real motivo para que existam governos. Infelizmente, como indicado pelos números do Tesouro, trata-se de espécie dentre as mais raras e infelizmente ameaçada de extinção.



(Publicado 26/Fev/2020)