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terça-feira, 28 de abril de 2020

Sísifo


Apesar de, sob certos aspectos, a crise atual se assemelhar àquelas resultantes de desastres naturais, a saída dela – ao contrário daqueles casos – deverá ser lenta, entre outros motivos pela fraqueza da demanda quando a quarentena acabar. Será necessário reduzir ainda mais a taxa de juros.

Economistas apreciam “fatos estilizados”, isto é, padrões que parecem emergir de certos fenômenos. Um deles, talvez dentre os mais bem documentados, refere-se à conhecida persistência do nível de atividade: numa economia em expansão o mais provável é que o trimestre seguinte continue a mostrar crescimento; da mesma forma, numa economia em recessão, as chances de continuidade no trimestre seguinte são maiores do que em condições normais.

É precisamente por esse motivo que podemos falar em “ciclos” de expansão e contração da atividade econômica, ao invés de episódios curtos e aleatórios de crescimento e retração. Todavia, a atual recessão não teve uma origem econômica; pelo contrário, resultou de um problema sanitário severo, cujos impactos se manifestaram tanto sobre a capacidade produtiva de diferentes países, sua oferta, como dos gastos, de locais e de não-residentes, a demanda.

Adicionalmente sabemos (ou, ao menos, esperamos) que o fenômeno original deverá ser temporário. De uma forma (vacina/medicação) ou de outra (imunidade de rebanho) a pandemia acabará e com ela um conjunto de restrições sobre a atividade, notadamente a oferta de trabalho, hoje fortemente reduzida pelas medidas de distanciamento social e, não esqueçamos, pelos riscos associados à doença.

Nesse sentido, a recessão se assemelha àquelas produzidas por desastres naturais. De fato, recentemente dois economistas do Federal Reserve Bank of New York, Jason Bran e Richard Deitz, publicaram uma nota curta (The Coronavirus Shock Looks More like a Natural Disaster than a Cyclical Downturn,” Federal Reserve Bank of New York, Liberty Street Economics, April 10, 2020) traçando precisamente esse paralelo, em particular no que se refere à reação imediata do mercado de trabalho como a capturada, por exemplo, pelo pedidos iniciais de seguro-desemprego, que saltaram de 200 mil por semana 5,5-6,0 milhões nas últimas duas semanas, padrão bem distinto do que o indicado pela persistência do ciclo econômico em geral.

Assim sendo, será que poderíamos esperar uma recuperação rápida da atividade uma vez que as restrições à oferta fossem removidas?

Creio que não. Em parte, porque há elementos de persistência do próprio desastre. Não se trata, como em casos de terremotos, ou inundações, da destruição física de infraestrutura e capacidade produtiva, mas sim da possibilidade de perda do capital intangível (ou organizacional) de empresas que não sobrevivam à crise. Concretamente, se o restaurante da Dona Maria não chegar ao fim da quarentena, os cozinheiros não terão sequer para onde voltar, até que alguém resolva montar um novo boteco, processo tipicamente demorado, ainda mais nessas plagas.

Há, adicionalmente, efeitos pelo lado da demanda (Macroeconomic Implications of COVID-19: can negative supply shocks cause demand shortages?), notadamente a perda de renda dos setores sujeitos à restrição, que – sob condições plausíveis – são ainda maiores do que a retração da oferta, levando à queda não só da atividade, como de preços, padrão que observamos hoje tanto no Brasil como em boa parte do mundo.

Tais efeitos também jogarão contra a recuperação mesmo quando as restrições de oferta forem retiradas, sugerindo que, apesar da origem distinta da recessão, há motivos para crer que o processo recessivo seja persistente.

Nesse contexto, a melhor combinação de política econômica pelo lado da demanda consiste em afrouxar a política monetária combinada com a extensão da rede de proteção social, em conjunto com medidas que, pelo lado da oferta, ajudem a preservar o capital organizacional das empresas afetadas pela quarentena.

No que se refere à política monetária, em particular, o motivo é claro. A queda da demanda relativamente à oferta pode ser pensada como redução da taxa “neutra” (ou “estrutural”) da taxa de juros, aquela que precisamente equilibra essas grandezas. Em resposta a isso, bancos centrais que ainda possam reduzir a taxa de juros devem fazê-lo, o que é certamente verdade no caso brasileiro, assim como foi no caso americano (ao contrário de Eurozona ou Japão).

De qualquer forma, contudo, a recuperação dificilmente será imediata. Muito embora o nível de atividade deva se recuperar em algum grau quando a restrição de oferta for removida, não retornaremos rapidamente para os níveis que prevaleciam antes da crise. Assim, a inflação, mesmo com a forte valorização do dólar, permanecerá bem abaixo da meta ao longo do horizonte relevante, o que – dentro da lógica do regime de metas – deve requerer redução da Selic, hoje em 3,75% ao ano, para níveis bem inferiores.

Ainda não temos como saber com segurança até onde a taxa de juros pode cair. A mediana dos analistas (Focus) aponta hoje para 3,00% ao ano, mas acredito que podemos buscar algo entre 2,0-2,5% ao ano, mantendo a inflação de 2021 ainda próxima à meta, já que a de 2020 deve atingir perto de 2% e há pouco que se possa fazer para impedir isso.

Penaremos no Hades para colocar a pedra novamente a “um milímetro do Paraíso” ...




(Publicado 22/Abr/2020)

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Alea iacta est?


Muito embora a resposta fiscal à crise seja essencialmente correta, suas consequências para o retorno a algum equilíbrio fiscal à frente requerem esforço de correção de rumos ainda maior do que imaginávamos há pouco. A lógica do conflito que guia hoje a relação entre os poderes não nos permite antever uma solução para esse problema.

Nos meus momentos fatalistas me pergunto se nossa sorte já foi lançada. Tenho certeza que não estávamos a um milímetro do Paraíso no começo do ano, mesmo porque o cenário de reformas permanecia, no mínimo, nublado, mas, ao mesmo tempo, tudo convergia para um desempenho econômico mais sólido, que, com um tanto de sorte e outro ainda maior de trabalho, poderia redundar numa trajetória de reequilíbrio fiscal e expansão mais rápida num futuro não tão distante. Jamais saberemos.

A crise sanitária e suas decorrências econômicas, porém, podem ter fechado esse caminho. Como escrevi na semana passada, muito embora as medidas adotadas apontem para a direção correta (a magnitude deverá ser calibrada à luz de nova informação), suas implicações pela ótica fiscal são consideráveis. A dívida do governo, que fechou o ano passado na casa de 76% do PIB e se esperava subir modestamente para 78% do PIB no final de 2020, pode atingir cerca de 90% do PIB nesse horizonte, talvez até mais a depender do que sair dos escombros do Plano Mansueto.

Ao mesmo tempo as chances de avançarmos com temas como a PEC emergencial, a PEC do pacto federativo, a reforma administrativa e a reforma tributária caíram consideravelmente. Em parte porque as energias do Congresso e da parcela pensante do governo estão, justificadamente, focalizadas em problema ainda mais urgente, mas também porque, ao invés de aproveitar a crise para unir o país, o presidente dobrou a aposta no conflito.

Há paralelos desconfortáveis com a situação vivida por Dilma Rousseff no começo de seu segundo mandato, seja no que se refere à incompetência pessoal, seja pela dificuldade de relacionamento com o Congresso.

Mantenho a crença que a intensidade inédita da recessão vivida a partir de 2015 (embora tenha se iniciado ainda em 2014) pode ser atribuída em grande medida à percepção generalizada que a administração não teria, como não teve, condições de avançar na agenda que revertesse o desastre gerado pela Nova Matriz, tanto no campo fiscal, como por conta de suas intervenções avassaladoras no domínio econômico (a devastação no setor elétrico, a ruína da Petrobras, o desperdício de recursos no fomento a campeões nacionais, para ficar apenas nos tópicos mais visíveis).

Tenho hoje visão semelhante. Se, de fato, a dívida chegar a patamares próximos ao mencionado acima, não é difícil concluir que o esforço fiscal para conter o endividamento deverá se materializar na forma de um superávit primário na casa de 1% do PIB em termos permanentes, possivelmente até mais.

Mesmo que consigamos retornar, em 2021 e 2022, aos níveis que atingimos, com sacrifícios, no ano passado (um déficit primário recorrente próximo a 2%, como mostrado na tabela abaixo), o que não está de forma alguma garantido, ainda precisaríamos cobrir uma distância equivalente a 3% do PIB, algo como R$ 220 bilhões em dinheiro de hoje.

Resultado do governo geral – % PIB (anos selecionados)

2010
2014
2015
2016
2019
Receita
39,0
38,5
40,4
41,2
42,4
Despesa
40,6
43,4
49,1
48,8
48,2
Remuneração de empregados
11,9
12,3
12,9
13,0
13,3
Uso de bens e serviços
5,4
5,3
5,1
5,3
5,3
Consumo de capital fixo
1,3
1,4
1,5
1,5
1,6
Juros
7,0
7,5
11,9
10,0
7,3
Subsídios
0,2
0,5
0,4
0,5
0,2
Transferências / Doações
0,0
0,1
0,0
0,1
0,0
Benefícios sociais
13,7
14,8
15,6
16,9
18,4
Outras despesas
1,1
1,5
1,6
1,7
2,0
Investimento líquido em ativos não financeiros
1,4
0,9
0,1
(0,1)
(0,4)
Superávit (+)/Déficit (-)
(3,0)
(5,8)
(8,8)
(7,5)
(5,5)
Superávit (+)/Déficit (-) primário
2,1
(0,4)
(0,4)
(1,5)
(0,5)
Superávit (+)/Déficit (-) primário recorrente
0,9
(1,5)
(1,7)
(3,9)
(2,0)
Fonte: STN (estimativa do resultado recorrente do autor)

Trabalho recente da Instituição Fiscal Independente (IFI), uma referência no tema, ilustra o problema. Em novembro do ano passado, o cenário-base da IFI projetava estabilização da dívida entre 80-81% por volta de 2022-2014; à luz, porém, dos desenvolvimentos recentes, a dívida seguiria crescendo mais rapidamente que o PIB pelo menos até 2030, quando atingiria 100% do PIB, não tanto pelo nível em si, mas pela persistente elevação do endividamento num horizonte de 10 anos.

Não é necessário tomar tais projeções ao pé da letra, nem é, acredito, o cerne da mensagem, mas sim que o cenário se tornou imensamente mais desafiador do que esperávamos há pouco.

Nesse sentido, o crucial é sabermos se nossas instituições políticas se encontram à altura do desafio. Hoje, estou convicto que não: a lógica de conflito dificulta demais a construção de maiorias sólidas em matérias complexas como as reformas fiscais, em contraste com o quase consenso agora existente quanto às mudanças constitucionais para enfrentar a crise sanitário-econômica.

Se meu entendimento estiver correto, já cruzamos o Rubicão da sustentabilidade fiscal.




(Publicado 15/Abr/2020)

segunda-feira, 13 de abril de 2020

O que tem para hoje

Apesar da obsessão do ministro da economia com a cifra de R$ 1 trilhão, estimo o impacto fiscal das medidas anunciadas até agora em cerca de R$ 200 bilhões. Ainda assim, a dívida pode se aproximar de 90% do PIB no final do ano, um desafio que requer liderança política da qual não dispomos.

Paulo Guedes, é sabido, tem certa obsessão com R$ 1 trilhão. Durante a campanha jurava obter tal quantia por meio de um agressivo programa de privatizações, tão agressivo que permanece até hoje enjaulado.

Também R$ 1 trilhão era a economia que obteria com a reforma da Previdência, valor que, segundo o ministro, seria usado para financiar a transição para um regime de capitalização, muito embora muitos economistas apontassem que a reforma permitiria apenas manter o crescimento do gasto previdenciário em linha com a expansão econômica, ao invés de superá-la por larga margem.

Era, portanto, questão de tempo para que o número mágico reaparecesse no contexto da guerra à Covid-19. Segundo o ministro, “os programas já passaram dos R$ 800 bilhões e possivelmente vão chegar a quase R$ 1 trilhão ao longo das próximas semanas ou meses”. Muita gente, à luz disso, deve estar se perguntando como seria possível gastar tanto dado o péssimo estado das contas públicas no país.

A resposta é que o número ministerial mistura coisas que devem ser contadas à parte, além de contabilizar despesas que ocorreriam de qualquer forma ao longo do ano, mas que foram antecipadas. Minha estimativa é que o impacto fiscal das medidas anunciadas é grande, mas bem menor do que dado a entender pelo ministro, na casa de R$ 200 bilhões, cujas consequências examinarei mais à frente.

É preciso distinguir, em primeiro lugar, as medidas anunciadas pelo Banco Central, valor, de fato, elevado, mas cujo impacto se dá na oferta de liquidez aos bancos, na esperança que tais recursos venham a se tornar empréstimos que possam sustentar as empresas nos próximos meses.

Nesse sentido o BC reduziu o montante que os bancos têm que manter depositado junto à autoridade monetária (“compulsórios”), criou novas modalidades de créditos aos bancos, bem como lhes permitiu captar adicionalmente com garantias, o que deve facilitar a vida dos bancos pequenos e médios. Além disso reduziu requerimentos de capital, o que permite que a expansão do crédito, se houver, não seja impedida pelo mínimo de capital que bancos precisam manter (quanto maior a relação entre capital e empréstimos, mais sólido é o banco, ao mesmo tempo que sua capacidade de emprestar se torna menor).

Tais medidas não têm qualquer impacto sobre as contas públicas, ao menos não impactos diretos. Em tese estimulariam a oferta de empréstimos, mas, como se diz, levar o cavalo à água é uma coisa; fazê-lo beber é algo bem diferente. De qualquer forma, são medidas corretas e as possíveis no atual marco legal, que não permite que o BC ofereça crédito a instituições não-financeiras. Com a aprovação de emenda constitucional, já em discussão no Congresso, o BC poderá desempenhar papel mais ativo nessa frente.

Já outro conjunto de iniciativas, resumido na tabela abaixo, transita, de alguma forma, pelo orçamento público, representando aumento de gastos ou redução de tributos, quando não linhas de crédito bancadas pelo Tesouro Nacional. Algumas delas, porém, como alertado acima, não representam novos gastos, nem redução de tributos, apenas antecipações de gastos que seriam realizados mais tarde no ano (como a antecipação do 13º salário aos beneficiários do INSS, R$ 26 bilhões), ou diferimento de impostos.

Medidas Fiscais

R$ bilhões
Impacto fiscal?
R$ bilhões
CoronaVoucher
         59,8
S
         59,8
Antecipação de seguro desemprego
         51,8
S
         51,8
Antecipação 13o INSS
         46,0
N
             -  
Linha financiamento folha PMEs
         40,0
S
         40,0
Adiamento FGTS
         30,0
N
             -  
Diferimento SIMPLES
         22,2
N
             -  
Transferência PIS/PASEP para FGTS
         21,5
N
             -  
Manutenção FPE/FPM
         16,0
S
         16,0
Antecipação abono
         12,8
N
             -  
Adiamento dívidas estaduais
         12,6
S
         12,6
Ações emergenciais de saúde E&M
           8,0
S
           8,0
Crédito FAT para PMEs
           5,0
N
             -  
Transferência DPVAT para SUS
           4,5
S
           4,5
Aumento beneficiados B. Família
           3,1
S
           3,1
Transferência Censo para Saúde
           2,3
N
             -  
Redução contribuições do sistema S
           2,2
S
           2,2
Total
        337,8

        198,0

Isso não significa que não sejam medidas adequadas. Pelo contrário, devem ajudar famílias e empresas em momentos difíceis como o que vivemos, mas não representam “dinheiro novo”. Assim, muito embora tais iniciativas montem a quase R$ 340 bilhões, minha estimativa de impacto fiscal adicional (não é perfeita: estou aberto a sugestões e correções) sugere um número pouco inferior a R$ 200 bilhões, que, reforço, não é nada trivial.

De fato, a meta original para o resultado primário, isto é, sem o pagamento de juros, para 2020 era pouco inferior a R$ 125 bilhões negativo, ou seja, déficit primário. Somado à estimativa acima (da qual deduzimos a linha de crédito do Tesouro, R$ 40 bilhões, depois adicionada à dívida pública) e perda de receitas tributárias da União na casa de R$ 150 bilhões por força da queda da atividade econômica teríamos déficit primário ao redor de R$ 430 bilhões. Já o déficit total deve superar R$ 700 bilhões, sem considerar a possível queda das receitas tributárias de estados e municípios, que podem adicionar algo como R$ 50-60 bilhões.

Dado que a dívida bruta do governo geral alcançava R$ 5,5 trilhões no ano passado (pouco mais de 75% do PIB), é bem possível que, ao final desse ano, se encontre próxima a R$ 6,3 trilhões, 89% do PIB. Em contraste, segundo o Prisma Fiscal, a mediana do valor esperado para a dívida bruta em 2020 no começo do ano apontava para 78% do PIB, 11 pontos percentuais inferior à nossa projeção.

Noto que esses números estão sujeitos a mudanças à medida que o cenário clareie, mas acredito que dão uma noção razoável da magnitude do problema que enfrentaremos quando a crise sanitária for, como esperamos e torcemos, superada. Não se trata, repito, de motivo para não fazer o que se afigura necessário para vencer a guerra, mas de entender que haverá consequências a serem enfrentadas num futuro nada distante.

Mais do que nunca precisaremos de uma liderança política capaz para conduzir o país; desnecessário dizer, não é o que temos no menu para hoje...





(Publicado 8/Abr/2020)

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Pandemia vs. recessão


Há quem acredite haver escolha entre o controle da pandemia e a recessão, notadamente o presidente da República. Estudo recente sugere, porém, que a mortalidade resultante da pandemia tem efeitos recessivos e que medidas de distanciamento social, ao mitigar o problema, levam a resultados melhores em seguida. Nos é dada a escolha entre a pandemia e a recessão; se escolhermos a pandemia, teremos também a recessão.

Há quem creia haver uma troca entre a queda da atividade econômica resultante das medidas de distanciamento social (e, claro, todas as consequências sociais de uma recessão de grandes proporções) e a mortalidade decorrente da pandemia. Ter menos de uma implicaria ter mais da outra, terreno em que economistas, por formação, se sentem mais à vontade (como a troca entre renda e lazer, ou entre consumo hoje e consumo amanhã, etc.).

Não é, reafirmo, o caso de hoje: engana-se quem acredita haver a possibilidade de reduzir as medidas de distanciamento social nesse momento em troca de atividade econômica mais forte, mesmo à custa de uma mortalidade maior.

Não temos, é verdade, muita evidência acerca das diferentes escolhas de como lidar com a crise atual. À parte o sucesso relativo de países como Taiwan e Singapura, cuja resposta oportuna à epidemia possibilitou medidas mais bem focalizadas (uma impossibilidade a essa altura dos acontecimentos), observamos quase todas as nações impondo restrições à mobilidade das pessoas e à atividade econômica em nome da contenção da pandemia, exceção feita à Suécia, cuja abordagem permanece distinta. De qualquer forma, precisaríamos de tempo para avaliar tais opções, talvez a mercadoria mais escassa nessa época de crise.

A alternativa que nos resta é voltar ao passado, em busca de experiências semelhantes que possam servir como guia, ainda que imperfeito, para a situação atual. Temos, portanto, que recuar pouco mais de 100 anos no tempo para avaliar os efeitos da Gripe Espanhola no final da segunda década do século XX. Até onde sabemos (os números são ainda objeto de debate), aquela pandemia infectou algo como 500 milhões de pessoas (pouco mais de um quarto da população global, então estimada na casa de 1,8 bilhão de pessoas), matando talvez 50 milhões (interessados podem checar os dados em https://ourworldindata.org/spanish-flu-largest-influenza-pandemic-in-history).

Trabalho recente de Sergio Correia, Stephan Luck e Emil Verner (CLV daqui em diante) explora os impactos dessa pandemia nos diferentes estados e cidades dos EUA, abordagem que conta com a vantagem de examinar o caso de um país que, ao contrário dos europeus, devastados pela I Guerra, com boa parte de sua juventude, infraestrutura e capital destruídos, emergiram daquele evento relativamente intactos.

De fato, estimativas indicam que os EUA perderam 0,13% de sua população no conflito, contra números ao redor de 3-4% no caso dos países da Europa continental e perto de 2% no caso do Reino Unido (e então colônias). Isso facilita o trabalho separar os efeitos daquela carnificina dos originários da doença em si.

CLV estudam dados de estados e cidades americanas tentando aferir tanto o impacto da mortalidade sobre a atividade, como o das Intervenções Não-Farmacêuticas (NPIs no original), isto é, medidas de distanciamento social, tanto do ponto de vista da tempestividade de sua adoção (mais ou menos cedo), quanto de seu tempo de duração.

Duas conclusões emergem do trabalho.

A primeira é o impacto negativo da mortalidade sobre a atividade econômica. Segundo os autores, a pandemia levou à queda de 18% da atividade industrial para o estado médio em termos de mortalidade e há também indicações de que o efeito seria persistente, como expresso em menor atividade nas áreas mais afetadas até 1923.

As estimativas apontam que o aumento equivalente a um desvio-padrão da mortalidade em 1918 implica 8% de queda do emprego industrial e 6% de redução do produto. Como os dados são estaduais, ou seja, menos sensíveis à demanda local (apenas parte da produção é consumida no estado de origem), o canal mais relevante para explicar a retração da atividade parece estar ligado mesmo à oferta, isto é, disponibilidade de mão-de-obra, principalmente.

A outra conclusão diz respeito aos efeitos das NPIs, seja em termos da rapidez de sua adoção, seja em termos de sua duração, sobre a atividade. De acordo com as estimativas de CLV, a adoção mais célere de medidas de distanciamento social se traduz em elevação da atividade em seguida à pandemia: o aumento de um desvio-padrão na velocidade de adoção de NPIs leva a um aumento da produção próximo a 5%, enquanto o aumento também de um desvio-padrão em termos da duração das NPIs eleva o produto cerca de 7% no período pós-pandemia.

Posto de outra forma, não parece haver de fato uma troca entre a controle da epidemia e atividade. Caso a mortalidade se eleve por falta de políticas restritivas ao contato social, a atividade se contrairá por força da mortalidade em si, mesmo na ausência de tais medidas. Afora isso, os efeitos de longo prazo da mortalidade também são elevados; nesse sentido, reduzi-la em seus momentos iniciais parece contribuir para a recuperação mais vigorosa à frente.

Isso dito, há, é claro, limitações: a Covid-19 não é igual à Gripe Espanhola (esta última afetava mais fortemente gerações mais novas, por exemplo) e as condições dos EUA no início de século XX não são exatamente as vividas pelo Brasil um século depois (se bem que nossas condições sanitárias estejam mais próximas daquela era do que seria ideal), para citar apenas duas das complicações.

Todavia, à luz das dificuldades de acharmos paralelos em termos de crises de saúde pública, o estudo certamente nos oferece uma visão bem mais informada do que o “achismo” que parece orientar a alta cúpula do governo, a começar pelo presidente da República.

Parafraseando mais uma vez Winston Churchill, nos é dada a escolha entre a pandemia e a recessão; se escolhermos a pandemia, teremos também a recessão.




(Publicado 1/Abr/2020)