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sexta-feira, 26 de março de 2021

Elemento surpresa

A surpresa do Copom implicou elevação dos juros curtos, mas queda dos juros longos refletindo uma visão algo mais otimista sobre a inflação esperada. Se houvesse ação no lado fiscal, esses desenvolvimentos poderiam ser mais positivos.

Mentiria se dissesse que não fui surpreendido pela magnitude da elevação da Selic na semana passada. Como a maioria dos economistas (o que, diga-se, não é desculpa alguma, muito pelo contrário), esperava um aumento de meio ponto percentual, não os 0,75% anunciados pelo Comitê de Política Monetária (Copom), que levaram a taxa básica para 2,75% ao ano até a próxima reunião em maio. Aliás, como indicado pelo Copom, naquele mês devemos esperar nova elevação da mesma magnitude, ou seja, a Selic a 3,50% ao ano.

A reação do mercado de renda fixa à decisão foi positiva em pelo menos duas dimensões importantes. Em primeiro lugar, os juros futuros cederam, aparentemente em resposta à percepção de um BC mais agressivo do que se esperava, o que é visível (pelo menos assim o espero) no par de gráficos logo abaixo.

 

Fontes: ANBIMA e cálculos do autor

À esquerda temos a famosa curva de juros (estimada pela ANBIMA), que mapeia a taxa de juros para cada maturidade, no caso de 6 meses a 5 anos. A linha preta mostra as taxas de juros vigentes no dia da reunião do Copom, 17 de março, enquanto a vermelha representa as taxas observadas no dia seguinte.

Como se vê, a linha vermelha se deslocou para cima da preta nos prazos de seis meses a dois anos e meio e para baixo dela nos períodos superiores a 3 anos.

Calculando a taxa de juros vigente para cada período de seis meses (a curva FRA, bem menos famosa, acima à direita), notamos que houve elevação nos primeiros 12 meses; a partir daí o mercado estimava que as taxas ficariam em média 0,15% ao ano abaixo do que se esperava no dia anterior.

No jargão de mercado, a curva de juros ficou mais “achatada”, isto é, a diferença entre os juros longos e os juros curtos caiu, em parte porque os últimos aumentaram, mas também porque os primeiros se reduziram. Ficou um pouco mais barata, por exemplo, a colocação de títulos mais longos do Tesouro.

A segunda dimensão positiva foi o comportamento das expectativas de inflação embutidas nas taxas de juros. Há, como se sabe, papéis do Tesouro cujas taxas são prefixadas assim como títulos indexados à inflação; a diferença de remuneração entre eles pode (com um pouco de boa vontade) ser pensada como a expectativa de inflação para o período (há, aviso, complicações, como prêmios de risco, liquidez e tributos que tornam essa medida menos precisa do que gostaríamos, principalmente para prazos mais longos).

Tais expectativas (“inflação implícita”) caíram ao longo de todos os prazos, de forma mais vigorosa para os primeiros seis meses, mas consistentes para o período acima de 3 anos, como ilustrada pelos gráficos abaixo.

 

Fontes: ANBIMA e cálculos do autor

Dito de outra forma, a resposta inicial de mercado foi reduzir os juros futuros porque passou a antecipar uma trajetória mais benigna para a inflação por conta da reação de política monetária mais rápida do que esperada.

Entendo que não se trata de medida para conter a evolução do dólar. Não será 0,25% ao ano a mais (ou 0,50%, se considerarmos o aumento encomendado para maio) que fará o dólar recuar acentuadamente e, de acordo com o mostrado logo acima, as taxas mais longas também recuaram em seguida à reunião, fator que diminui em algum grau a atratividade da moeda.

Como explorei há duas semanas, o aperto da política monetária tem como objetivo impedir (ou atenuar) o possível contágio sobre preços de serviços advindos da elevação de preços dos produtos afetados pelo dólar, notadamente as commodities. Esse efeito, dadas as defasagens de atuação da política monetária (o efeito máximo se materializa 5-6 trimestres depois da alteração da Selic), só deverá se manifestar, portanto, a partir do final de 2021 e atingir seu máximo em meados do próximo ano.

Resta saber quanto é necessário em termos de taxa de juros para cumprir a tarefa. Se as projeções do BC estiverem corretas, um ciclo de 3,5 pontos percentuais seria suficiente, já que o BC prevê inflação na meta em 2022 com a Selic a 5,5% ao ano.

Sempre sob a hipótese (por vezes her          oica) que as previsões do modelo do BC sejam precisas, o aumento mais forte da taxa de juros agora não seria, portanto, sinal de taxa mais elevada ao final do ciclo de ajuste monetário, mas uma forma de acelerar o ajuste, que se encerraria, assim, no começo de 2022, ao invés de meados do ano que vem.

Há, é bom que se diga, incerteza quanto às projeções, como não poderia deixar de ser. Não temos como prever, por exemplo, o comportamento dos preços das commodities, que me surpreendeu no final do ano passado e começo desse ano, e deve ser o principal fator puxando a inflação para cima, somado, não nos esqueçamos, ao comportamento do dólar, por sua vez resultado da fraqueza da política econômica doméstica, em particular no campo das contas públicas.

Se tivéssemos condições de mudar o quadro de política doméstica, provavelmente o ciclo de aperto monetário seria menos intenso do que se afigura. O dólar recuaria e com ele algumas pressões inflacionárias. Não parece ser o caso, por tudo que tivemos condições de ver nos últimos meses, em particular com a aprovação da PEC Emergencial, que ficou bem aquém do que precisamos para recolocar as contas públicas em trajetória sustentável.




segunda-feira, 22 de março de 2021

The end

O país segue impávido para o desastre, incapaz de aprender com seus próprios erros, seja no campo sanitário, seja no campo fiscal, mas principalmente no campo político.

O Brasil hoje parece uma obra de arte. No caso, a épica abertura de Apocalypse Now: coqueiros explodindo em chamas enquanto o vozeirão de Jim Morrison declama “this is the end”.

Exagero? A cada dia a Covid mata mais de 2 mil pessoas e previsões indicam piora à frente, resultado da delicada combinação de incompetência, negligência e completa ausência de empatia. As preocupações do governo, face ao desafio, se resumem a tentar comprar o apoio do Centrão, irritado com a inaptidão na área da saúde, mas obviamente sem pensar em colocar em seu lugar qualquer pessoa disposta a lidar de fato com a tarefa, como ilustrado na tragicomédia que testemunhamos nos últimos dias.

O desastre sanitário tem, como aprendemos da pior (e mais didática) maneira possível, consequências não menos calamitosas para o desempenho econômico. O risco concreto (que, a bem da verdade, já se converteu em certeza) de esgotamento da capacidade das UTIs força novas medidas de distanciamento social, cujo impacto é negativo para a atividade, não só pela perda de renda (a ser atenuada pela renovação, afinal, do auxílio-emergencial), mas porque o medo da doença leva à redução do contato interpessoal, crucial para a vasta maioria das atividades de serviços, principal origem de emprego no país.

Um ano depois, enquanto países mais previdentes e organizados, se preparam para a volta a uma certa normalidade, contemplamos uma nova rodada de recessão e aumento do desemprego.

Não há indicações que o duro aprendizado pelo qual a população passou tenha chegado à elite governante. Não há nada de errado, como princípio, na extensão do auxílio-emergencial, que cansei de defender nesse espaço, devidamente compensado num futuro de preferência não muito distante, por medidas que permitam interromper a tendência crescente do gasto obrigatório. Deveria esse ser o sentido, como também já argumentei, da PEC aprovada na semana passada.

Todavia, como explorado com detalhe por pessoas mais bem qualificadas, em particular Felipe Salto e Marcos Mendes, o efeito líquido da aprovação na trajetória dos gastos é pequeno, se é que existe (e, não, não é verdade, infelizmente, que tenha congelado salários de servidores por 15 anos). No caso do governo federal, talvez apareça em 2025, se nada ocorrer no meio do caminho que inviabilize também essa proposta.

Evitou-se, é bom que se diga, um desastre ainda maior, como a incipiente discussão (com o aparente apoio do presidente da República) acerca da retirada do Bolsa-Família do teto de gastos, mas impedir um gol contra de pouco adianta quando a defesa é incapaz de segurar o ataque adversário. As perspectivas, portanto, são que o retorno a saldos positivos nas contas primárias ficou ainda mais longínquo, se é que um dia haverá de ocorrer.

O resultado do descontrole fiscal é maior pressão sobre o dólar e sobre os juros. Como explorado na minha última coluna, o dólar mais caro, acoplado a preços mais altos de commodities (uma combinação rara), tem feito a inflação se acelerar, se manifestando em particular na elevação persistente de preços de alimentos.

Ao contrário do que eu imaginava no final do ano passado e começo desse ano, o IPCA deve superar consideravelmente a meta de inflação talvez pela margem mais alta desde 2016. Muito embora o efeito do atual aumento dos alimentos deva ficar restrito a 2021 (desde que dólar e commodities não sigam subindo), cabe agora ao BC evitar que esse impacto seja repassado aos preços dos demais produtos, notadamente serviços, o que parece ser o motivo para o início do processo de normalização da taxa de juros que devemos testemunhar essa semana.

Não há como evitar o desconforto de observar a elevação da Selic com a economia prestes a uma recaída recessiva, mas, dados os demais erros de política, sanitária e econômica, não parece haver alternativa para lidar com o problema, ainda mais depois do fiasco da aprovação da PEC.

Em outubro de 2018, às vésperas do primeiro turno da eleição, em entrevista aqui mesmo no InfoMoney, eu dizia que, independentemente do resultado, não tínhamos a menor chance de dar certo. Não escrevo isso para me gabar (na verdade, sim, mas só um pouquinho); apenas para confessar que meu pessimismo (realismo?) naquele momento não chegou perto de antecipar a obra de arte que hoje contemplamos.

Não foi por acaso. Desde antes daquele momento o país, incapaz de forjar um consenso político, é campo de batalha de grupos de interesse, cuja luta incessante por nacos da renda nacional conseguiu nos fazer marchar impávidos rumo ao desastre.

 

This is the end

My only friend, the end

Of our elaborate plans, the end

Of everything that stands, the end

No safety or surprise, the end




(Publicado 17/Mar/2021)

terça-feira, 16 de março de 2021

A conta

 Semana que vem o Copom deve iniciar um ciclo de elevação da Selic. A aceleração recente da inflação decorre de uma quebra na relação inversa entre preços de commodities e o dólar por força da piora de nossos fundamentos. A conta já chegou e há outros boletos no correio.

O Copom se reúne na próxima semana e se dá de barato que a meta para a taxa de juros básica, a Selic, será elevada de 2,00% para 2,50% ao ano, apenas o primeiro movimento de novo ciclo de alta. Muito embora a atividade econômica siga ainda deprimida, como capturado pelo comportamento do mercado de trabalho, a inflação desenvolveu uma nova feição nos últimos meses, requerendo uma resposta do BC.

Uma forma de entender o fenômeno é analisar o comportamento de diferentes grupos de produtos no IPCA, em particular o que tem acontecido com os preços dos produtos ditos “comercializáveis”, isto é, aqueles que são comumente transacionados com o exterior (ou seja, cujos preços refletem similares internacionais devidamente convertidos em moeda doméstica), dos produtos “não-comercializáveis”, cujo consumo (e formação de preço) é eminentemente local. O gráfico abaixo resume o comportamento desses grupos de 2016 para cá.

 

Fonte: Autor com dados do IBGE
Como se vê, a partir de meados do ano passado os preços de produtos comercializáveis não apenas reverteram a tendência de queda que prevalecia desde o final de 2019 (e que se aprofundou nos primeiros momentos da pandemia), mas também se aceleraram visivelmente em comparação aos não-comercializáveis, cuja variação em 12 meses permanece próxima a 3%, superando 9% em janeiro de 2021.

Trata-se de fenômeno relativamente raro: de 1996 a 2020 (ou seja, 25 observações) houve apenas 7 anos em que a variação de preços comercializáveis superou a de não-comercializáveis, dos quais 4 entre 1999-2003, nos primórdios do regime de metas. Vale dizer, tipicamente a inflação brasileira não foi pressionada pelos produtos cujo preços estivessem mais ligados ao dólar e às cotações internacionais, refletindo principalmente a dinâmica interna da economia, isto é, o balanço doméstico entre oferta e demanda.

O motivo para isso parece ter sido uma característica que o Brasil em geral compartilha com países exportadores de commodities: a elevação de seus preços internacionais tipicamente fortalece a moeda desses países, atenuando seu impacto sobre os preços domésticos.

Isto é claramente visível no gráfico abaixo, que compara a evolução do índice de preços de commodities do FMI medidos em dólares e reais: até recentemente, a medida em reais dos preços de commodities era mais “bem-comportada” do que sua contrapartida em dólares. Momentos de forte alta de preços internacionais, como por exemplo entre 2006 e 2008, quando as cotações em dólares subiram mais que 75%, se traduziam em elevação das cotações locais pouco inferiores a 30%; da mesma forma, a queda de preços internacionais entre 2013 e 2015, superior 45%, atingiu perto de 11% medida em reais.

Fonte: FMI e autor

O dólar funcionava assim como amortecedor das variações dos preços internacionais de commodities, parcialmente isolando a inflação doméstica da inflação global. Esse padrão, contudo, deixou de existir no período mais recente. De dezembro de 2019 a dezembro de 2020 preços de commodities em dólares subiram 4,5%; em reais, 31%, discrepância que continuou no início de 2021, mais aparente, claro, no preço de combustíveis, mas não limitada a eles. Em particular, as pressões sobre preços de alimentos derivam primordialmente dessa nova dinâmica.

Posto de outra forma, a mudança do comportamento da inflação capturado pelo nosso primeiro gráfico é resultado da “quebra” da relação histórica entre preços de commodities e o valor do dólar no país.

 

Resta saber o motivo da quebra. A hipótese mais promissora aponta para a piora dos “fundamentos” do país, ou seja, das condições domésticas, desde a evolução da epidemia, que ameaça descarrilar a recuperação (incompleta) da economia, até as péssimas perspectivas das contas públicas, menos por força do auxílio-emergencial e mais pela sinalização de nossa persistente incapacidade para resolver o problema em prazo minimamente razoável. Sem progresso nessa frente, será difícil produzir um dólar significativamente mais barato.

Ao BC restou a alternativa de retirar parte dos estímulos monetários introduzidos durante a epidemia. Note-se que a elevação da Selic não deve ter como objetivo primeiro a valorização da moeda nacional, não só porque isso requereria um aumento muito mais vigoroso da taxa de juros, possivelmente insustentável dadas as condições das contas públicas, como incongruente com o próprio regime de metas para a inflação. A ideia, sempre, é fazer a inflação convergir para a meta, não manter a taxa de câmbio em torno de algum nível “ideal”.

Concretamente, significa que o papel da política monetária será garantir que o aumento dos preços de produtos comercializáveis não “contamine” os preços de não-comercializáveis. Isso requer, por um lado, que o BC mantenha as expectativas inflacionárias próximas à meta, ao menos em 2022, mas significa também que a demanda interna terá que se recuperar mais lentamente no ano que vem, para compensar o crescimento mais vigoroso da demanda externa resultado do aumento das exportações (menos importações) de commodities.

A conclusão é que não precisamos de um choque de juros, mas da remoção gradual dos estímulos monetários, mais cedo, confesso, do que imaginava ser necessário.

Alternativamente, poderíamos embarcar num ciclo vigoroso de reformas para colocar as contas públicas em ordem nos próximos anos, mas adultos não têm direito de crer em fantasias fora da esfera artística. A conta da inação já chegou e novos boletos estão a caminho.



(Publicado 10/Mar/2021)

terça-feira, 2 de março de 2021

Quando o sólido se desmancha no ar

Propostas de reviver o auxílio emergencial nos mesmos moldes do ano passado com financiamento monetário do gasto adicional implicam risco de aceleração considerável da inflação. Foco é essencial.

Como já tive oportunidade de explorar aqui, defendo a extensão do auxílio emergencial, menor e mais bem focado, para os grupos mais vulneráveis, notando que a PNAD mais recente, referente ao trimestre terminado em dezembro do ano passado, estimava que o nível de emprego naquele momento ainda se encontrava cerca de 8 milhões abaixo do registrado em fevereiro (dados dessazonalizados).

Há também necessidade de medidas compensatórias para a expansão de gastos decorrentes do auxílio, que, inclusive, sequer precisariam se materializar necessariamente em 2021. Se conseguíssemos apontar com boa dose de certeza que as contas públicas se reequilibrariam num horizonte razoável, iniciando, digamos, no ano que vem, mas com componentes que tornassem possível a manutenção do teto de gastos ao longo dos próximos 5 a 6 anos, seria possível evitar uma trajetória de expansão descontrolada da dívida pública.

Muitos “ses”, reconheço, a começar pela presunção de comprometimento com o controle dos gastos públicos ao longo de um horizonte extenso, factível, ainda que improvável.

Dito isso, quando vejo economistas defendendo a manutenção do auxílio emergencial no mesmo montante observado no segundo e terceiro trimestres do ano passado, uma conta de aproximadamente R$ 50 bilhões/mês, tenho a nítida convicção que vivem numa dimensão à parte. Ainda mais considerando que preferem que “o auxílio emergencial não seja financiado através da venda de títulos públicos ao mercado, para evitar o aumento da dívida pública mantida por agentes privados”, mas que, ao contrário, seja financiado por expansão monetária, isto é, pela compra de títulos do Tesouro pelo Banco Central.

Essa proposta só pode levar a dois resultados: (a) uma deterioração significativa do perfil da dívida pública; ou (b) uma aceleração extraordinária da inflação, provavelmente ambos.

Para entender o motivo consideremos em primeiro lugar a mecânica da coisa. Digamos que o Tesouro emita R$ 50 bilhões em títulos em determinado mês, devidamente adquiridos pelo BC, aumentando o montante da conta única do Tesouro no BC em R$ 50 bilhões, que serão então gastos para bancar o auxílio emergencial.

Concretamente, se a Caixa Econômica Federal (CEF) for o agente dos pagamentos, os R$ 50 bilhões se tornam reserva bancária da CEF. Só para ilustrar a magnitude da proposta, o total de reservas bancárias no dia 19/02/21 era R$ 32,7 bilhões (a média em fevereiro até aquele dia registrava R$ 40 bilhões, de acordo com dados do BC), ou seja, em apenas um mês, sem medidas compensatórias, o montante de reservas mais do que dobraria.

Notem que a taxa básica de juros no Brasil, a Selic, é a taxa cobrada para a troca de reservas bancárias: bancos com reservas abaixo do necessário tomam emprestado (de outros bancos, ou, mais comumente, do BC) pagando a Selic, enquanto aqueles com excesso de reservas emprestam recursos à taxa Selic. Numa situação como a descrita acima, com reservas mais do que dobrando de patamar, deve ser óbvio que falamos de um gigantesco excesso de reservas, cenário em que duas coisas podem acontecer.

Num primeiro caso, o BC toma esses recursos do mercado por meio da venda (com compromisso de recompra) de títulos públicos federais de sua carteira, garantindo que a taxa Selic fique próxima ao valor definido pelo Copom com o objetivo de manter a inflação na trajetória de metas. Nesse caso, a dívida aumenta no mesmo montante inicialmente adquirido pelo BC (R$ 50 bilhões); apenas, ao invés de aparecer como dívida mobiliária, aparece como operação compromissada.

Note-se, contudo, que isso implica piora do perfil da dívida pública, já que as operações compromissadas tipicamente são feitas por prazos bastante inferiores aos observados no caso de venda desses títulos no mercado. Sem considerar as compromissadas, pouco mais de ¼ da dívida vence nos próximos 12 meses; se as incluirmos na conta, algo como 40% da dívida vence nos próximos 12 meses.

Alternativamente, o BC pode não tomar o excesso de reservas. Nesse caso, ele não consegue garantir que a Selic permaneça no patamar definido pelo Copom como apropriado para manter a inflação na meta; no caso, a Selic ficará bem abaixo do valor considerado adequado. O resultado é que a inflação deve se acelerar em comparação à trajetória prevista sob a Selic “correta”.

Agora imaginem isso ocorrendo repetidamente ao longo do ano, ao ritmo de R$ 50 bilhões por mês... Inflação em alta com Selic perto de zero: o que poderia dar errado?

O mais provável face a essas alternativas seria a opção do BC pela manutenção da Selic no nível que determina a cada reunião do Copom e, portanto, reverter o aumento das reservas bancárias por meio da colocação de compromissadas, o primeiro caso que analisamos acima. Isso, contudo, implica expansão da dívida a R$ 50 bilhões/mês, ou seja, R$ 600 bilhões/ano sem considerar a incidência de juros sobre este montante, perto de 8% do PIB além do crescimento já contratado (que já coloca a dívida bruta na casa de 90% do PIB ao final de 2021).

Sim, é verdade que não há um patamar mágico e preciso além do qual tudo que até então era sólido se desmancharia no ar, mas não é menos verdade que o crescimento descontrolado da dívida pública levará em algum momento à percepção que não poderá ser honrada nas condições originalmente contratadas.

Com parcela considerável da dívida sob a forma de operações compromissadas, ou seja, com seu prazo bastante encurtado, não é difícil imaginar as pressões que podem ocorrer no dólar, nos preços de imóveis, etc., de uma enorme massa de liquidez buscando proteção. Dito de outra forma, cedo ou tarde o BC perderá a capacidade de controlar a inflação, que então fará o serviço sujo de ajustar o nível de endividamento do país pela corrosão do valor da dívida.

Vamos estender o auxílio emergencial, sim, mas sem perder de vista os custos dessa abordagem, mantendo o foco nos mais vulneráveis (portanto um programa menor em termos de valor mensal, escopo e duração) e trabalhando para compensar seus impactos sobre a dívida. O resto é lacração barata, em busca de aplausos da bolha.



(Publicado 3/Mar/2021)