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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Selic: o que esperar?

A comunicação do BC aponta para alta modesta da Selic para 2021, mesmo com a inevitável queda da prescrição futura no próximo ano. Para que esse cenário benigno se materialize, porém, será necessário manter o atual regime fiscal.

O BC publicou a Ata da reunião do Copom da semana passada, aclarando tanto as decisões de manter a meta para a taxa Selic em 2,00% ao ano e a prescrição futura sobre a trajetória dos juros, quanto, e principalmente, o prazo de validade da prescrição futura e o que virá depois dela.

 No que diz respeito aos dois primeiros tópicos, expectativas de mercado e previsões do BC justificam a manutenção da Selic em 2,00% ao ano e também a prescrição futura.

 Conforme mostra a tabela abaixo, apesar da forte surpresa negativa da inflação no último trimestre de 2020 (da qual trataremos logo mais), as previsões do BC e as expectativas de mercado para 2021, o horizonte relevante, seguem abaixo da meta.

Inflação esperada (valores em outubro entre colchetes)

 

2020

2021

2022

Expectativa Focus

4,2 [3,0]

3,3 [3,1]

3,5 [3,5]

Cenário básico

4,3 [3,1]

3,4 [3,1]

3,4 [3,2]

Cenário com Selic constante

4,3 [3,1]

3,5 [3,2]

4,0 [3,8]

 Não há, é verdade, como ignorar que a inflação subiu muito mais do que o previsto no último trimestre de 2020, em que deve atingir cerca de 3%, comparado a 1,3% nos primeiros 9 meses do ano. Mesmo assim, o BC acredita que se trata de um fenômeno temporário, impulsionado por um aumento inesperado dos preços dos alimentos e dos preços administrados, notadamente as tarifas de energia, refletindo a seca e, portanto, a necessidade de usar fontes térmicas mais caras para a geração de energia.

Tão importante quanto, analistas de mercado parecem compartilhar dessa visão, já que as expectativas para 2021 subiram apenas modestamente em relação ao nível observado em outubro (de 3,1% para 3,3%), enquanto as expectativas para 2022 não se moveram. Parece, pois, que – apesar do choque inflacionário – as expectativas continuam bem ancoradas e, como notado, ainda abaixo da meta no que se refere a 2021, em linha com as condições de prescrição futura. 

Fonte: BCB

Dito isso, o Copom reconhece ser improvável que essas condições permaneçam indefinidamente.

Por um lado, como também se vê na tabela, expectativas e projeções para 2022 já se encontram próximas à meta, 3,5% e 3,4%, respectivamente. Como em sabe, em meados do ano que vem o BC começará a mudar o foco da política monetária de 2021 para 2022, em função das defasagens usuais desse instrumento (de 12 a 18 meses). Nesse caso, a primeira condição de validade da prescrição futura, qual seja, a inflação esperada inferior à meta, desapareceria naturalmente.

Essa, porém, não é a única possibilidade para alteração da prescrição futura. As projeções de inflação para 2021 também podem aumentar, aproximando-se da meta de 3,75% para o ano, o que justificaria seu descarte. Ou ainda, as demais condições para a manutenção da prescrição futura – a permanência do regime fiscal e a ancoragem das expectativas de longo prazo – também podem deixar de existir.

Fato é que já se esperava a elevação da taxa Selic em 2021, independentemente da prescrição futura. Pouco antes da reunião de outubro, por exemplo, a pesquisa Focus apontava a primeira alta em outubro de 2021, prevendo a taxa Selic a 2,75% em dezembro daquele ano; já na véspera da reunião passada a expectativa de alta havia sido antecipada para agosto de 2021, enquanto para dezembro se esperava que atingisse 3%.

A verdade é que o timing do eventual aumento das taxas de juros depende crucialmente do cenário que prevalecerá em 2021.

Se fosse o primeiro caso, ou seja, o deslocamento normal do horizonte relevante para um período (2022) em que as expectativas e projeções já estão na meta, o BCB não teria urgência de elevar as taxas assim que a prescrição futura caísse.

Se, no entanto, estamos falando de deterioração das expectativas / projeções para 2021, ou pior, desdobramentos que levem ao fim do atual regime fiscal, então, apesar das afirmações em contrário do BC, parece mais provável que a alta da Selic se seguiria imediatamente ao fim da prescrição futura

Dito isso, minha própria opinião sobre o assunto.

Caso a inflação dependesse apenas do comportamento provável do desemprego, colocaria todas as minhas fichas num valor abaixo da meta em 2021. Apesar da recuperação econômica, a folga no mercado de trabalho continua enorme, sugerindo um hiato de produto negativo ainda maior (em valor absoluto) do que o estimado no final de 2019 e início de 2020.

Infelizmente, as coisas não são tão simples. O risco inflacionário também depende da manutenção do regime fiscal e, nesse aspecto, as coisas estão bem menos claras do que gostaríamos. Permanece um risco considerável de derrapagem, devido à inação do governo tanto na gestão do problema quanto em sua relação com o Congresso.

Em suma, caso o governo supere sua incapacidade de fazer as coisas, podemos contar com um aperto muito gradual das condições monetárias a partir do segundo semestre de 2021. Se não for esse o caso, todavia, podemos o risco de um tranco nos juros se tornará muito alto.

A bola segue na quadra do governo.

(Publicado 16/Dez/2020)


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Urgência

Retomando a coluna anterior, explico porque o desemprego-sombra me parece a medida mais adequada para avaliar o mercado de trabalho. Exploro também a relação entre a ancoragem das expectativas e o desempenho das contas públicas.

Encerrei minha coluna mais recente notando que o desemprego-sombra muito elevado – que estimei na casa de 21% em setembro – deve exercer pressão no sentido de redução da inflação, desde que as expectativas de inflação se mantenham próximas à trajetória de metas. Essa estimativa do desemprego, conforme expliquei, foi produzida sob a hipótese que a proporção daqueles em idade de trabalhar engajados nesse mercado (empregados, ou em busca de emprego) retornaria à sua média histórica, entre 61% e 62%, contra 55% observados em setembro.

Fonte: Autor com dados do IBGE

Dito isso, faz sentido tomar tal taxa de desemprego como a mais relevante para avaliar o tamanho da folga na economia, um dos principais determinantes da evolução da inflação?


Acredito que sim. Não necessariamente porque a taxa de participação deva voltar rapidamente à sua média histórica; mas porque há motivos para crer que um possível aumento da procura por trabalhadores nas atuais circunstâncias deve estar bastante correlacionado ao aumento dessa própria taxa.

Muito, senão a totalidade, da queda da participação no mercado de trabalho decorre da dinâmica da epidemia, que representou, como viemos a aprender, também forte redução inicialmente do consumo em geral, e, depois do auxílio emergencial, localizada no setor de serviços, o maior empregador da economia (responsável por pouco mais da ocupação no país antes da crise). Concretamente, ¾ da perda de empregos se concentrou nesse setor.

Por outro lado, qualquer recuperação da atividade econômica digna desse nome passa pela reativação do setor de serviços, que, por sua vez, depende crucialmente da melhora das condições sanitárias, como o próprio desempenho do setor, bem pior que os demais, atesta.

Dito de outra forma, apenas com a superação da epidemia, e, portanto, da necessidade de distanciamento social é que podemos esperar a volta mais vigorosa de demanda por serviços e, com ela, da procura por trabalhadores. Se o fizermos, pois, as pessoas que hoje se mantêm fora do mercado de trabalho devem retornar a ele.

Sob essa conjuntura bastante particular há, portanto, reserva considerável de trabalhadores para atender à demanda, sempre na hipótese de superação da crise sanitária. Nesse sentido, se queremos analisar o risco de pressões inflacionárias persistentes decorrentes de aquecimento do mercado de trabalho temos que olhar para o desemprego-sombra como termômetro mais apropriado do balanço entre demanda e oferta naquele mercado.

A segunda condição para a estabilidade da inflação, também notada na coluna anterior, diz respeito ao comportamento das expectativas. Tivemos, não faz muito tempo, a oportunidade de observar – graças ao trabalho desastroso de Alexandre Pombini e colegas – o que ocorre quando o BC perde o controle das expectativas. Mesmo com aumento considerável do desemprego então, que dobrou de 6,5% a 13,0%, a inflação atingiu dois dígitos, caindo muito lentamente até que uma nova diretoria assumisse a instituição.

Hoje as expectativas permanecem bem-comportados, mesmo em face de aumento considerável da inflação de curto prazo. O recente anúncio do aumento de tarifas de energia elétrica no final do ano elevou as previsões de inflação para 2020, mas levou à redução das projeções para 2021, indicação que não se espera repasse deste aumento para os demais preços. De fato, a redução da previsão de inflação para o ano que vem resulta tanto da projeção menor para preços administrados (já que o aumento da energia ocorrerá em 2020), quanto dos chamados preços livres.

Podemos contar com isso indefinidamente?

Não, e o relógio corre contra nós. As perspectivas de contas públicas seguem se deteriorando, fenômeno que pode ser agravado caso a segunda onda obrigue à prorrogação de medidas como o auxílio-emergencial e a ajuda aos estados, ainda que em escala menor.

Sem medidas de correção do desequilíbrio fiscal o espaço para uso da política monetária quando a economia se normalizar vai se tornar reduzido e, no limite, inexistente. Se chegarmos a tal situação – provável caso reformas permaneçam no limbo – perderemos o controle das expectativas.

É preocupante, pois, a paralisia nessa área. Tanto Executivo quanto Legislativo só têm olhos para a sucessão das mesas diretoras das casas do Congresso, enquanto a dívida não para de crescer. Se, e quando, nos movermos, pode ser pouco demais e tarde demais para lidar com o problema. Acima de tudo, precisamos urgentemente de um forte sentido de urgência.


(Publicado 9/Dez/2020)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Ainda 21%

Os dados mais recentes apontam para melhora no mercado de trabalho, mas o desemprego pela métrica que parece mais adequada segue na casa de 21%. A enorme folga no mercado de trabalho é uma poderosa força desinflacionária, mas não nos livra de manter as expectativas de inflação devidamente ancoradas.

Os sinais da recuperação modesta do mercado de trabalho se tornaram mais nítidos quando o IBGE divulgou a PNAD referente a setembro e também deram uma ideia clara do longo caminho a percorrer.

Começando pelas boas notícias, a ocupação sazonalmente ajustada voltou a subir em setembro depois de seis meses consecutivos de queda. No entanto, conforme já alertei, o IBGE divulga a média de três meses, menos volátil que o número bruto, porém mais lenta para capturar eventuais alterações de tendência. Já a estimativa do número para o mês de setembro revela a ocupação na casa de 84 milhões de postos de trabalho contra 80 milhões em julho e 82 milhões em agosto.

Isso dito, apesar do ganho expressivo nos dois últimos meses, o nível dessazonalizado ainda se encontra muito abaixo do registrado logo antes da crise, quando a ocupação se encontrava no nível mais elevado da história, pouco acima de 94 milhões, equivalente a 55% da população em idade de trabalhar (hoje essa proporção se encontra próxima a 48%).

Observada pela ótica da situação no emprego, a melhora se ampara nos trabalhadores “informais”, categoria que inclui tanto aqueles sem carteira de trabalho, como os que trabalham por conta própria e empregadores (sem CNPJ, no caso dessas duas categorias), os mais atingidos pela epidemia.

A taxa de desemprego, todavia, seguiu em alta, atingindo perto de 15% em setembro, em aparente contradição com o ganho de emprego. O motivo por trás desse comportamento é o aumento daqueles em busca de emprego.

A proporção dos engajados no mercado de trabalho, seja trabalhando, seja buscando emprego (conhecida como “taxa de participação”), havia caído de níveis próximos à sua média histórica (61,5% entre 2012 e 2019) para um mínimo de 54,7% em julho e agosto, antes de voltar a se elevar moderadamente para 55% em setembro, correspondente a cerca de 800 mil pessoas a mais buscando trabalho no período.

Obviamente, a forte queda da taxa de participação entre fevereiro e julho atuou no sentido oposto, qual seja, reduzindo a taxa de desemprego, já que mais de 12 milhões de pessoas abandonaram o mercado por força da crise.

Nesse sentido, o melhor termômetro do desemprego não me parece ser a taxa de desemprego como normalmente calculada, mas a taxa de desemprego que teria se materializado caso a taxa de participação tivesse se mantido inalterada na média de 2012 a 2019, do início da PNAD até o fim do ano passado. Essa métrica (“desemprego sombra”) sugere que a desocupação, que caíra para 9,5% no final de 2019 e começo de 2020, atingiu inacreditáveis 23% em julho, antes de recuar para 21% em setembro, muito acima dos 15% registrados pelo IBGE, conforme ilustrado logo abaixo.

Fonte: Autor com dados do IBGE

Em suma, apesar da melhora nos dois últimos meses, ainda temos um mercado de trabalho extraordinariamente deprimido. Sua recuperação, sempre pensando em termos da taxa de “desemprego sombra”, deverá ser lenta.

De fato, dos 12 milhões de postos perdidos entre fevereiro e julho, perto de 9 milhões foram no setor de serviços. Dado que este representava 53% do emprego logo antes da crise, não é difícil concluir que foi desproporcionalmente atingido pela epidemia, muito em função da necessidade de distanciamento social.

Essa necessidade persiste, ainda que atenuada, e é a principal responsável pelo fraco desempenho dos serviços comparado à produção industrial e às vendas no varejo. Não é por outro motivo que as últimas já se encontravam em setembro acima dos níveis observados em fevereiro, enquanto aquele permanecia ainda 8% abaixo do registrado naquele mês.

A enorme folga no mercado de trabalho representa um forte componente desinflacionário, desde que expectativas de inflação se mantenham próximas às metas. Nesse sentido, muito embora haja um choque de preços considerável em curso, em parte por força do encarecimento simultâneo do dólar e das commodities, em parte pela recomposição parcial de preços de serviços, há ainda razões para crer que tal fenômeno seja temporário.

Há, todavia, ao menos duas questões importantes, que explorarei com mais detalhes em outra coluna. Em primeiro lugar, se a taxa de desemprego sombra será relevante para o processo inflacionário à frente (creio que sim, mas com ressalvas) e, em segundo lugar, se há motivos para que expectativas de inflação permaneçam ao redor da trajetória, ponto sobre o qual as dúvidas são mais intensas.

Em suma, enquanto persistir a epidemia e com ela o distanciamento social, dificilmente o setor de serviços retornará aos níveis pré-crise, com implicações claras para o mercado de trabalho. Embora o desemprego sombra deva continuar em queda lenta, não voltará para perto de onde estava no começo do ano antes de um longo intervalo, possivelmente até o terceiro (ou quarto) trimestre de 2021, a menos de vacinação bem mais intensa do que hoje parece factível.

(Publicado 2/Dez/2020)

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Uma não-solução

Vender reservas para pagar a dívida não é solução. Embora elevadas, são ainda insuficientes para mudar o jogo. Além disso, seu efeito é temporário: sem medidas de ajuste, a dívida voltaria a crescer. É uma discussão acessória, enquanto o problema principal segue se deteriorando.

Entra mês, sai mês e – como a dívida do governo não para de crescer – a mesma ideia ressurge, pelo menos desde a campanha presidencial: a venda de reservas internacionais para abater um pedaço da dívida.

Parece fazer sentido. Como o rendimento sobre as reservas (em moeda estrangeira) é baixo, por força das reduzidas taxas de juros no mundo desenvolvido e, mesmo com a Selic em seu menor patamar da história, o custo da dívida doméstica é bem mais alto, a venda das reservas poderia dar certo alívio para o endividamento. Mal comparando, é como se pudéssemos vender os dólares que sobraram da última viagem ao exterior (faz tempo!) para, com o reais assim obtidos, pagar um pedaço do que devemos no crediário.

Apesar das aparências, eu vejo ao menos dois problemas com a proposição. O mais imediato é que o efeito de medidas nesse campo é bem menor do que uma olhada rápida poderia sugerir.

A começar porque, muito embora o volume total de reservas atinja algo como US$ 355 bilhões segundo os dados mais recentes (relativos a novembro), já houve um adiantamento do ponto de vista de venda de reservas para abater a dívida.

Com efeito, o Banco Central vendeu US$ 59 bilhões de “swaps” cambiais. A operação de “swap” representa uma troca: no caso o BC paga ao seu detentor o equivalente à variação cambial, enquanto aquele paga ao BC o CDI acumulado no período (na prática, quase a Selic). Assim, tudo se passa como se o BC já tivesse vendido reservas (abrindo mão, portanto, da variação cambial) e reduzindo suas operações compromissadas, deixando de pagar (aproximadamente) a Selic sobre elas.

Temos, portanto, que descontar os “swaps” das reservas, o que nos deixa com um volume ainda expressivo de US$ 296 bilhões de reservas líquidas desses instrumentos, que, convertidos em reais, representam perto de R$ 1,7 trilhão, um bocado de dinheiro.

Ocorre que a dívida do governo é um bocado bem maior: em setembro, quase um par de meses atrás, equivalia a R$ R$ 6,5 trilhões. Naquele momento as reservas líquidas (US$ 298 bilhões no mês) representavam, portanto, pouco mais de um quarto da dívida do governo.

Há, além disso, que levar em conta que, obviamente, não é boa política “queimar” as reservas, ainda mais em tempo de enorme volatilidade em mercados internacionais. É necessário manter reservas num nível que proteja o país em caso de paradas súbitas nos fluxos de capitais, como observamos no período de março a maio desse ano, por exemplo, quando houve saídas expressivas de investimentos externos: perto de US$ 12 bilhões no mercado acionário, US$ 20 bilhões em títulos negociados no mercado doméstico e US$ 8,5 bilhões em títulos de curto prazo negociados no mercado internacional.

Note-se que as saídas teriam sido provavelmente ainda maiores do que os US$ 40 bilhões registrados no período caso as reservas fossem muito baixas, porque o receio de falta de dólares realimentaria o processo.

Não está claro ainda qual o nível “ótimo” de reservas. O FMI estima em torno de US$ 240 bilhões para o Brasil (a Instituição Fiscal Independente tem estimativa similar), mas, mesmo que pudéssemos passar com algo menos, digamos, US$ 200 bilhões, o espaço para venda de reservas seria algo inferior a US$ 100 bilhões hoje, ou seja, pouco menos de 10% da dívida bruta, conforme ilustrado no gráfico abaixo.

 

Fonte: Autor (com dados do BC)

É verdade que um dólar mais caro faria aumentar as proporções acima calculadas. Ainda assim, cabe a pergunta: qual o nível do dólar que permitiria ao governo “zerar” sua dívida por meio da venda (total) das reservas líquidas? A conta não é difícil e sugere que precisaríamos do dólar na casa de R$ 21-22 para zerar a dívida; se o objetivo for reduzi-la à metade, então algo na casa de R$ 10-11 faria o truque. Usando apenas a parcela excedente das reservas sobre o “ótimo” os números são ainda maiores. Em outras palavras, trata-se de mato de onde dificilmente sairá qualquer coelho.

Vale dizer, a venda de reservas como estratégia de redução da dívida, embora possível, dificilmente mudaria dramaticamente o jogo.

Já o segundo problema refere-se à natureza finita das reservas. Só podemos fazer a “mágica” uma única vez; isto é, mesmo que fosse possível abater parcela significativa da dívida (contrariamente ao indicado pela análise anterior), se não mudarmos a dinâmica de endividamento por meio de um ajuste fiscal considerável, cedo ou tarde voltaríamos à mesma posição em que estamos hoje, mas sem reservas excedentes.

Não há “bala de prata” para a trajetória de endividamento crescente do país. Só sairemos dela de forma saudável se fizermos os esforços necessários, aprovando reformas que reduzam o peso dos gastos obrigatórios sobre o orçamento e dotando as administrações federal, estadual e municipal de instrumentos que permitam conter a tendência de elevação persistente desses gastos que vem de décadas.

Sem isso, toda e qualquer mágica que se possa cogitar conseguirá, no máximo, ganhar tempo, o mesmo tempo que desperdiçamos discutindo o acessório enquanto o essencial continua a se deteriorar a olhos vistos.



(Publicado 25/11/2020)

terça-feira, 24 de novembro de 2020

A inflação da Covid

Calculamos uma medida alternativa de inflação levando em conta mudanças no padrão de consumo durante a epidemia. Nossa medida mostra inflação mais elevada no período mais agudo da epidemia, mas ainda consistente com a trajetória de metas.

São comuns reclamações sobre o IPCA, a medida oficial de inflação, em parte por desconhecimento do que ele mede, em parte por dificuldades envolvidas na própria construção do índice. No que se refere ao primeiro tema, há uma confusão permanente que de maneira geral se reflete na pergunta: “como dizem que a inflação está em queda se estive ontem na feira/supermercado/padaria e os preços estavam mais altos?”.

A confusão, no caso, se refere à própria definição de inflação, que normalmente é expressa como um (a) aumento (b) persistente do (c) nível geral de preços. A primeira parte da definição distingue preços altos de preços em elevação. Se os preços subiram 10% em dado ano e 5% no ano seguinte, é correto dizer que a inflação caiu, embora os preços tenham ainda aumentado: apenas aumentaram menos do que no ano anterior.

O segundo componente requer que o aumento seja persistente, o que tem sido o caso brasileiro há décadas (embora a inflação, repitamos, tenha caído nos últimos anos – e nas últimas décadas também!). Ou seja, se todos os preços subirem em determinado período (um mês, digamos) e fiquem parados daí em diante, não seria considerado inflação, embora, deixemos claro, na prática não me lembro de nada remotamente parecido.

O terceiro componente se refere ao “nível geral de preços”, definição – como ocorre frequentemente em Economia – bem mais fácil em teoria do que na prática. O IPCA, por exemplo, acompanha 377 produtos (bens e serviços), alguns dos quais sobem e outros caem num dado período.

O número divulgado como a variação do nível geral de preços de um certo mês é na verdade uma média ponderada das variações de preços dos 377 produtos do IPCA, sendo o peso de cada um desses produtos fruto de uma pesquisa (Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF) realizada periodicamente pelo IBGE, de forma a atualizar o perfil de consumo das famílias brasileiras cujo rendimento vai de 1 a 40 salários mínimos, isto é, pessoas muito diferentes.

Obviamente, nenhuma família em particular é perfeitamente retratada pela POF e exatamente por este motivo a inflação divulgada pelo IBGE não é a inflação de cada família, mas da média das famílias.

Esse problema foi agravado durante a epidemia. Vários dos produtos (ou grupo de produtos) incluídos na POF não foram consumidos pela maior parte das pessoas ao longo de 2020. Exemplos abundam: alimentação fora do domicílio (bares e restaurantes), serviços pessoais (costura, manicure, barbearia, etc.), transporte aéreo, cinema, casa noturna, sem, é claro, esgotar a lista.

No caso de alguns desses produtos, como passagem aérea, houve queda expressiva de preços (quase 60% de janeiro a agosto), mas a verdade é que praticamente ninguém se beneficiou disso, já que poucos viajaram durante a epidemia (eu, por exemplo, não entro num avião nem carregado!).

Nesse sentido, o IPCA perdeu um tanto da sua capacidade de medir a evolução do “custo de vida” das pessoas, ponto já levantado por outros economistas (se a memória me serve, o primeiro que vi foi Eduardo Zilberman, da PUC-RJ).

Reestimei, assim, o IPCA levando em conta esse fenômeno, retirando do índice bens e serviços pouco (ou nada) consumidos durante a pandemia. O resultado me deixou com um conjunto de produtos cujos pesos equivalem a cerca de 75% do peso original do IPCA, devidamente recalculados para que o novo total somasse 100%. Com a nova estrutura de pesos é possível estimar (ainda que de forma imperfeita) a “inflação” da Covid, índice que denominei IPCA-C. Os resultados estão resumidos na tabela abaixo.

IPCA-C vs. IPCA – %

 

jan/20

fev/20

mar/20

abr/20

mai/20

jun/20

jul/20

ago/20

set/20

out/20

2020

IPCA-C

0,14

0,14

0,32

0,28

-0,06

0,24

0,34

0,20

0,51

0,60

2,74

IPCA

0,21

0,25

0,07

-0,31

-0,38

0,26

0,36

0,24

0,64

0,86

2,22

Diferença

-0,07

-0,11

0,25

0,59

0,32

-0,02

-0,02

-0,04

-0,13

-0,26

0,51

Fonte: Autor com dados do IBGE

 Como se vê, de março a julho o IPCA-C superou consistentemente o IPCA, isto é, a inflação sentida (em média) pelas famílias no período mais agudo da epidemia foi mais alta do que a calculada pelo IBGE, acumulando 1,33% nesses 6 meses contra 0,24%, diferença de mais de um ponto percentual. O padrão se inverteu em setembro e outubro, de modo que nos 10 primeiros meses do ano, como mostrado acima, a diferença ficou um tanto menor: 0,51% (2,74% medido pelo IPCA-C e 2,22% pelo IPCA).

Não se trata, quero deixar claro, de crítica ao trabalho do IBGE, que segue com cuidado a metodologia para a estimativa da inflação, mas do uso desses dados para compreender melhor o impacto econômico da epidemia sobre a população. No que diz respeito ao BC, mesmo considerando o IPCA-C, a inflação ainda deve ficar abaixo da meta para o ano (4%).

Dito isso, como notado brevemente acima, o padrão parece ter se invertido nos dois últimos meses (a amostra, porém, é reduzidíssima), já que o IPCA-C ficou abaixo do IPCA em setembro e outubro, apesar da forte alta da alimentação no domicílio, cujo peso no IPCA-C (em torno de 18,5%) é mais alto do que no IPCA (perto de 14,5%). Isso revela que os preços ausentes do IPCA-C (dos produtos em tese não-consumidos durante a epidemia) subiram mais fortemente no período mais recente.

Esse movimento, contudo, até agora me parece mais um realinhamento de preços depois de superada a fase mais aguda da crise sanitária (sigo, porém, preocupado com o aumento das infecções nos últimos dias) do que uma pressão inflacionária que, para recuperar o tema do início da coluna, seja persistente e generalizada, pelo menos não por ora.

A combinação de desemprego elevado com expectativas de inflação ao redor da meta no horizonte relevante (2021 e 2022) deve manter a inflação ainda controlada ao longo do ano que vem. A principal ameaça segue vindo do lado fiscal, dada a ausência de medidas para recolocar a dívida em trajetória sustentável. Se nada fizermos, em algum momento, hoje difícil de precisar, não poderemos mais contar com as expectativas ancoradas, como ocorreu em 2015 e boa parte de 2016. Caso cheguemos a isso, mesmo com desemprego elevado, o risco inflacionário irá ressurgir.


(Publicado 18/Nov/2020)


terça-feira, 17 de novembro de 2020

A próxima pedalada

A criação de depósitos remunerados no BC para controle de liquidez abre perigosa brecha contábil no que se refere às estatísticas fiscais, permitindo que desequilíbrios orçamentários não apareçam na dívida. Para evitar novas “pedaladas”, devem ser devidamente contabilizados na dívida bruta.

Além da autonomia do Banco Central, o Senado aprovou na semana passada projeto de lei de autoria do líder do PT na casa, senador Rogério Carvalho, que cria um novo instrumento para a regulação da liquidez na economia: os depósitos remunerados no BC. Mesmo reconhecendo seus méritos, noto que há risco considerável de “maquiagem” das estatísticas referentes à dívida pública, bastante subestimado no presente contexto.

Para entender a relevância e os riscos associados a essa nova ferramenta precisamos antes entender como e por que o BC controla a liquidez no quadro atual.

A cada seis semanas o Comitê de Política Monetária se reúne e define uma meta para a taxa de juros básica, a Selic, sua principal ferramenta de política, atualmente 2% ao ano. Para garantir que a taxa Selic praticada fique próxima à meta, o BC se compromete a dar ou tomar emprestadas reservas bancária ao redor daquele valor.

Assim, se faltam reservas no sistema e a Selic tende a ficar acima da meta, o BC doará recursos ao sistema, tomando como garantias títulos públicos federais, situação muito rara hoje, mas que ocorria no início do século. Se, caso contrário, houver excesso de reservas bancárias e, portanto, a taxa Selic tender para baixo da meta, o BC toma recursos do sistema, também dando como garantia títulos públicos de sua carteira.

No primeiro caso o BC compra títulos com compromisso de revenda em determinada data; no segundo, vende títulos com compromisso de recompra. Por esse motivo, tais operações são denominadas de “compromissadas”. Como se destinam a manter a taxa de juros ao redor da meta Selic, o custo dessas operações fica normalmente ao redor dela: um pouco acima se o BC for doador de recursos; um tanto abaixo se for tomador de recursos.

Considere, por exemplo, o que ocorre quando o BC adquire dólares do mercado. Bancos entregam a moeda estrangeira ao BC que, em troca, os paga creditando as contas de reservas bancárias. Isso cria um excesso de liquidez que levaria, como vimos, à queda da Selic em relação à sua meta, contrabalançada, contudo, pelas operações compromissadas.

Sob a nova sistemática, o BC poderia conseguir o mesmo resultado utilizando-se de depósitos remunerados. O excesso de reservas bancárias poderia ser depositado junto ao BC, mantendo a Selic próxima à meta. A remuneração dos depósitos, dada pela Selic (menos uma margem), seria assim igual à remuneração das compromissadas, o que, do ponto de vista da política monetária, representaria a conhecida troca de seis por meia dúzia. Pela perspectiva do controle da liquidez, a nova sistemática é uma opção adicional.

Do ponto de vista de política fiscal, contudo, há uma diferença importante, cujas consequências são potencialmente danosas.

Note-se em primeiro lugar que o Brasil adota contabilidade própria no que diz respeito à dívida pública. O critério do FMI requer que todos os títulos públicos sejam incluídos na dívida, mas o Brasil não inclui os títulos em poder do BC; apenas aqueles usados nas operações compromissadas.

Imagine agora que o Tesouro tenha déficits recorrentes (como de hábito) e que não consiga colocar títulos (ou não queira, porque investidores demandam taxas altas para comprar papéis mais longos). Nesse caso, ele saca recursos de sua conta no BC (Conta Única) e os usa para pagar o excesso de gastos sobre receitas, bem como as dívidas que estão vencendo, elevando as reservas bancárias.

Assim, como no episódio da compra de dólares, o BC ajusta o nível de reservas por meio das compromissadas e, ao final das contas, títulos que o Tesouro não conseguiu vender para pagar o excesso de gastos e a dívida vincenda acabam aparecendo sob a forma das operações compromissadas, devidamente registradas na dívida bruta. O desequilíbrio fiscal é, portanto, corretamente capturado.

Se, porém, a adequação das reservas bancárias for feita por meio de depósitos remunerados, isso deixará de ser verdade, porque depósitos não são contabilizados como dívida. O Tesouro poderia, pois, incorrer em déficits (usando recursos da Conta Única) sem que as estatísticas de endividamento captassem o fenômeno.

Note-se que o BC pagará juros sobre os depósitos, o que reduz seus lucros e, portanto, o valor que transfere ao Tesouro. Em outras palavras, embora o BC faça o desembolso dos juros, o pagador em última instância ainda será o Tesouro, usando, na frase  imortal de Armínio Fraga, “o meu, o seu, o nosso dinheiro”. Desse ponto de vista, depósitos remunerados são, na prática, dívida, tanto quanto as compromissadas.

Dado que estas atingiram pouco mais de R$ 1,6 trilhão em outubro (equivalente a um quarto da dívida bruta, contra R$ 951 bilhões em dezembro do ano passado), principalmente por força da combinação de déficits e dificuldade de rolagem da dívida, fica claro que o potencial para distorção das estatísticas fiscais é gigantesco.

As “pedaladas” do governo Dilma ocorreram precisamente porque brechas contábeis permitiram ocultar desequilíbrios orçamentários; se não quisermos repetir a experiência, será necessário garantir que novas brechas não irão aparecer.

Concretamente, os depósitos remunerados no BC devem ser incluídos nas estatísticas de dívida pública. Com isso afastaríamos o risco de uso desse instrumento para fins para os quais não foi desenhado, mantendo, porém, sua utilidade para a regulagem da liquidez na economia. Sem isso, cedo ou tarde, testemunharemos pedaladas inesquecíveis.



(Publicado 11/Nov/2020)

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Escalada

Há indicações que o mercado de trabalho pode ter virado de julho para agosto. Todavia, o tamanho da devastação sugere que a recuperação será muito demorada.

O IBGE divulgou a pesquisa do mercado de trabalho (PNAD) com dados relativos a agosto, ou melhor, ao período de 3 meses encerrado naquele mês, revelando que o emprego caiu para 81,7 milhões ante 82,0 milhões em julho, o que, em termos dessazonalizados, significaria redução de 82,0 milhões para 81,6 milhões. A leitura crua dos números sugeriria, portanto, que o mercado de trabalho continuou afundando em agosto, mas creio que isso não seja verdade.

Aprendemos recentemente que há maneiras de estimar os valores mensais originais da série da PNAD, que podem jogar uma luz distinta nos movimentos de curtíssimo prazo do mercado de trabalho.

Fonte: IBGE (dessazonalizado pelo autor)

O gráfico acima apresenta as séries suavizadas (média de três meses), enquanto abaixo mostramos a estimativa das séries mensais. Como se vê, os dados mensais são muito mais voláteis do que a média móvel; no entanto, o uso desta implica risco de perder possíveis pontos de inflexão, como parece ser o caso na transição de julho a agosto.

Fonte: Estimativa do autor


As estimativas da série mensal sugerem que o emprego havia caído a 80,5 milhões em julho (80,1 milhões com ajuste sazonal), passando para 82,4 milhões em agosto (82,1 milhões com ajuste sazonal), ganho de 2 milhões que não aparece nos dados suavizados.

À luz de outras informações também indicando recuperação da atividade econômica ao longo do terceiro trimestre, há boa chance que, do ponto de vista da criação de empregos, julho tenha sido de fato o último mês de uma forte queda em termos de emprego total, desde o pico de 94,3 milhões (dessazonalizados)  em fevereiro

O desemprego, por outro lado, mesmo calculado com as estimativas dos dados mensais, não apresentou melhora, mas precisamos reconhecer que a métrica habitual também perdeu relevância no atual cenário.

O distanciamento social reduziu drasticamente a taxa de participação, ou seja, a relação entre a força de trabalho (empregados ou procurando emprego) e a população em idade ativa, de uma média em torno de 61-62%, que prevaleceu de 2012 ao começo deste ano, para apenas 54,6% nos últimos dois meses. Com isso, o desemprego medido subestima o impacto real da crise no mercado de trabalho, revelando alta relativamente moderada de 11,5% para 14,5% (série mensal com ajuste sazonal) entre fevereiro e agosto.

Nossas estimativas de como seria o desemprego caso a taxa de participação tivesse permanecido em sua média histórica (“desemprego sombra”), no entanto, indicam quadro bem pior. Como não temos estimativas da taxa de participação mensal usamos a série suavizada, concluindo que o “desemprego sombra” saltou de 11% em fevereiro para 23,2% em julho, antes de cair levemente para 22,6% em agosto, o que reforça a tese da inflexão em julho.

Fontes: IBGE e estimativas do autor (dados dessazonalizados pelo autor)

Ao mesmo tempo, alertamos – por mais óbvio que pareça – que a recuperação, se verdadeira, é extraordinariamente modesta comparada às perdas ocorridas desde fevereiro. Houve destruição, segundo nossas estimativas, de cerca de 14 milhões de empregos, enquanto a taxa de “desemprego sombra” praticamente dobrou.

Isso indica que, por qualquer medida razoável, apesar dos sinais de recuperação ao longo do terceiro trimestre, o hiato do produto, capturado por medidas de folga no mercado de trabalho, continua muito negativo.

Outra medida mais ampla de folga nesse mercado, que leva em consideração a força de trabalho potencial (pessoas que não buscaram emprego, mas estariam disponíveis para trabalhar), os desalentados, e os que trabalham menos do que gostariam, permanece perto de 30%, ante 23% no início do ano. Da mesma forma, mesmo com dados do Caged sugerindo o contrário, o IBGE ainda não captou sinais de vida no mercado de trabalho formal.

Em suma, o mercado de trabalho pode mesmo ter atingido o fundo do poço em julho, mas não devemos perder de vista a devastação observada nos últimos seis meses, muito menos o tamanho do hiato negativo do produto a ela associado. Assim, enquanto as expectativas de inflação permanecerem controladas, o risco de retomada da inflação permanecerá pequeno, apesar do forte soluço no final deste ano.

Dito isso, se a deterioração fiscal chegar a um ponto em que percamos o controle das expectativas de inflação, nem o hiato negativo haverá de segurar a inflação, como ficou claro no período 2015-16.

Ainda não chegamos lá, mas temos nos esforçado um bocado.



(Publicado 4/Nov/2020)