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terça-feira, 25 de agosto de 2020

O teto e a raça: o que dizem os números

Argumenta-se que o teto de gastos seria racista por limitar o gasto social, prejudicando a população negra. Mostramos, porém, que houve forte aumento do gasto social a partir de 2016. Por outro lado, a elevação das despesas com o funcionalismo agrava a desigualdade racial, justificando reformas que reduzam seu impacto.

Pegando carona no movimento que justificadamente se formou na esteira do assassinato de George Floyd, em Minneapolis, a última investida contra o controle de gastos públicos no Brasil tenta associar tal política ao racismo. Afirma-se que as medidas de contenção das despesas, expressas em particular no teto constitucional, limitam os gastos sociais; logo, afetam os mais pobres.

Como nada menos do que 10,1 milhões dentre os 13,5 milhões de pobres no país em 2018 são pretos ou pardos (ou seja, 75% da população pobre, bem mais do que a participação de pretos e pardos na população em geral, 55,8%), segue-se que a limitação de gastos sociais oriunda do teto afeta mais este grupo. Portanto, o teto de gastos é racista, QED.

O silogismo é impecável; já a hipótese central – a saber, a limitação dos gastos sociais – não se sustenta à luz da evidência existente.

A tabela abaixo apresenta o conjunto das despesas do governo central calculado segundo metodologia do Manual de Estatísticas de Finanças Públicas do FMI, mas por uma ótica distinta daquela que normalmente apresento neste espaço (voltarei a ela mais à  frente), destacando no caso a despesa por função de governo, e não pela natureza do gasto. Os dados são apresentados para os anos de 2010 (início da série), 2016 (ano de adoção do teto de gastos) e 2019 (o mais recente), a preços constantes de 2019, usando o deflator implícito do PIB.

Despesa por função de governo – R$ bilhões de 2019

 

2010

2016

2019

% total

2016-19

DESPESA TOTAL

2.035,0

2.408,7

2.384,5

100,0

-24,2

Serviços públicos gerais *

793,1

997,2

873,7

36,6

-123,5

Transações da dívida pública

481,2

676,7

517,5

21,7

-159,1

Transferências entre diferentes níveis de governo

230,5

250,5

284,9

11,9

34,5

Defesa

54,0

47,8

51,4

2,2

3,6

Ordem pública e segurança

75,5

80,4

82,6

3,5

2,2

Assuntos econômicos

94,2

83,0

99,3

4,2

16,3

Proteção ambiental

15,0

6,9

6,7

0,3

-0,2

Habitação e serviços comunitários

10,3

7,1

9,1

0,4

2,0

Saúde

123,7

143,3

153,3

6,4

10,0

Lazer, cultura e religião

5,6

5,2

4,0

0,2

-1,3

Educação

140,7

166,3

166,2

7,0

-0,1

Proteção social

722,9

871,4

938,2

39,3

66,8

Memo:

 

 

 

 

 

Despesa total (-) transações da dívida pública

1.553,8

1.732,1

1.867,0

78,3

134,9

* Há outras rubricas nesta conta, não apresentadas por questão de espaço e relevância

Fonte: STN

Houve, como se nota, redução visível da despesa total entre 2016 e 2019, expressa em queda de R$ 24 bilhões no período. Tal diminuição, porém, resulta essencialmente da forte contração de gastos com juros brutos (nesta terminologia apresentados como “transações da dívida pública”), de R$ 677 bilhões em 2016 para R$ 518 bilhões em 2019, corte de quase R$ 160 bilhões no período.

Já os gastos primários aumentaram R$ 135 bilhões entre 2016 e 2019. Metade disso foi direcionado à rubrica de “proteção social”, que engloba desde previdência à assistência social. Em 2019 esta rubrica representou 39,3% dos gastos do governo central; em 2016 equivalia a 36,2% do total.

Outros gastos tipicamente descritos como “sociais” aumentaram no período, como “saúde” (aumento de R$ 10 bilhões), “habitação e serviços comunitários” (R$ 2 bilhões a mais), ou ficaram virtualmente estáveis, como no caso de “educação” (queda de R$ 80 milhões).

Vale dizer, não há qualquer evidência que o teto de gastos tenha implicado redução das despesas sociais no país; ao contrário, os dados registram aumento considerável desde a adoção do mecanismo.

Já a tabela abaixo mostra as despesas do governo central por natureza, como “remuneração de empregados”, “uso de bens e serviços”, etc., já apresentadas ao leitor em colunas anteriores (lembrando que “aquisição de ativos não financeiros” é um nome complicado para o investimento público).

 Despesa do governo central – R$ bilhões de 2019

 

2010

2016

2019

% total

2016-19

DESPESA TOTAL

2.035,0

2.408,7

2.384,5

100,0

-24,2

Remuneração de empregados

286,0

280,5

305,8

12,8

25,3

Uso de bens e serviços

66,4

63,5

57,0

2,4

-6,5

Juros

481,2

676,7

517,5

21,7

-159,1

Subsídios

10,8

30,3

16,4

0,7

-13,9

Transferências / Doações

429,8

449,9

484,1

20,3

34,2

Benefícios sociais

690,1

848,1

922,1

38,7

74,0

Outras despesas

18,5

37,3

64,9

2,7

27,6

Aquisição de ativos não financeiros

52,3

22,4

16,6

0,7

-5,8

Memo:

 

 

 

 

 

Despesa total (-) juros

1.553,8

1.732,1

1.867,0

78,3

134,9

Fonte: STN

 Há, é claro, forte sobreposição mesmo sob óticas distintas: o aumento de R$ 74 bilhões em benefícios sociais, por exemplo, é quase todo destinado à proteção social. Já outros casos revelam dinâmicas interessantes, com apelo social bem mais baixo.

Por exemplo, do aumento de R$ 25 bilhões em remuneração de empregados, R$ 10,7 bilhões foram destinados à educação, enquanto o total das despesas em educação ficou – como vimos – praticamente estável, indicando que provavelmente os prestadores de serviços se beneficiaram mais do que seus usuários. Já no que se refere à saúde, a remuneração de empregados respondeu por 40% do aumento do gasto, enquanto proporções ainda maiores são observadas no caso de defesa e ordem pública.

Como deve ficar claro a partir dessas observações, o teto de gastos não impediu a expansão das despesas de proteção social, muito pelo contrário. Não evitou, todavia, que grupos mais bem localizados junto aos centros de poder conseguissem aumentar a extração de renda do restante da sociedade, em particular o funcionalismo.

De fato, segundo dados da PNAD, o rendimento médio real dos estatutários nos últimos 12 meses é próximo a R$ 4,3 mil/mês, mais de duas vezes maior que o de todas as demais categorias, pouco superior a R$ 2 mil/mês.

Curiosamente, porém, a resistência a reformas que reduzam os gastos com o funcionalismo sempre foi forte nos grupos autodenominados progressistas, como no caso da previdenciária e, mais recentemente, a administrativa.

 Segundo trabalho de Tatiana Silva e Josenilton Marques da Silva, negros compunham apenas 40% do funcionalismo federal em 2012. Houvesse, portanto, preocupação real com políticas que prejudicam a população negra, os “progressistas” deveriam estar na linha de frente pela reforma, mas ainda não tive a chance de vê-los lá.

Em resumo, além do impacto da instabilidade macroeconômica sobre os mais pobres, tema já explorado por outros analistas, o exame dos dados disponíveis não indica que o teto de gastos tenha impedido o avanço dos gastos sociais. Ao mesmo tempo, propostas de reformas para conter gastos obrigatórios, principalmente no que se refere ao funcionalismo, reduziriam também a desigualdade racial no país.



(Publicado 19/Ago/2020)

2 comentários:

brilhante ! nesses tempos de derrocada do witzel , tiro na cabecinha !

Promova um concurso: quem consegue decifrar a intervençao de Woodford em J.Hole?