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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Parou por quê?


O desapontamento quanto à aceleração do crescimento no final do ano passado não parece resultar do baixo potencial de expansão do país. Pelo contrário, o comportamento da inflação indica elevado grau de ociosidade, que deve permitir aumento mais forte da atividade em 2020 em resposta à queda da taxa de juros. Para horizontes mais longos isso não será suficiente.

Os números de atividade relativos a dezembro desapontaram, com a notável exceção do comportamento do emprego (e do desemprego), que seguiu sua trajetória de recuperação, inclusive mostrando pequeno avanço do emprego formal. Ainda assim, com base nesses dados, projeto expansão do PIB próxima a 0,5% sobre o terceiro trimestre, já ajustada à sazonalidade, um pouco aquém do observado no período anterior, 0,6% (desde que não haja revisões).

Se estiver correto, 2019 registrará crescimento de 1,1%, um tanto mais fraco que os dados (revisados) de 2017 e 2018, ambos na casa de 1,3%. Por outro lado, implicaria “carregamento estatístico” ao redor de 0,9% para 2020, o maior dos últimos anos (0,4% em 2018 e 0,3% em 2019), o que facilita atingirmos um ritmo mais vigoroso este ano.

Ainda assim, o cheiro de desapontamento permanece. Não foi o suficiente para alterar minha projeção para 2020 (2,3%, agora um pouco acima da mediana dos analistas, 2,2%), mas é inegável que a segurança quanto à previsão se reduziu.

Há uma visão que interpreta a fraqueza da atividade como resultado do baixo potencial de crescimento do país, na linha de “é o que temos para hoje”. A expansão da produtividade é minúscula, senão nula, investimentos no período 2010-14 foram direcionado a atividades com reduzido impacto para o crescimento potencial (estádios de futebol, “renascimento” da indústria naval, compra de caminhões em excesso ao seu uso, empresas de “amigos do rei”, etc.), enquanto a infraestrutura se deteriorou, sem esquecer que  os resultados da educação no país mostram repetidos 7x1 por anos a fio.

À luz destas considerações, não há mesmo como ser otimista acerca de crescimento sustentável e acelerado. Apesar disto, insisto que o baixo desempenho até agora não decorre deste problema, por mais real que seja.

Já tive aqui a oportunidade de expor minhas estimativas de crescimento potencial, notando que o ritmo de expansão desde 2016 (pouco acima de 1% ao ano, conforme mencionado) produziu modesta, porém visível, queda do desemprego sazonalmente ajustado, de 13% no primeiro trimestre de 2017 para 11,8% no trimestre final de 2019 (mesmo com aumento da proporção da população engajada no mercado de trabalho, fenômeno que atua na direção oposta).

De forma mais limitada, no caso a indústria de transformação, observamos desenvolvimento semelhante: apesar de o crescimento do setor alcançar apenas 1,6% ao ano desde outubro de 2016, o nível de ocupação da capacidade instalada aumentou de forma modesta no período, de 76,6% para 77,9%, segundo dados da CNI. Isso também sugere que mesmo a expansão pífia de 2016 para cá supera o potencial do setor.

Se o baixo crescimento potencial parece ser uma realidade, qual o motivo da minha relutância em aceitar que o também baixo crescimento observado seja decorrência disso?

Simples: porque, seja no caso da indústria de transformação, seja no caso do mercado de trabalho, há também fortes indicações de elevado nível de ociosidade. Já havia mencionado em outra coluna minha estimativa sobre a “taxa natural de desemprego” (ou NAIRU, a taxa de desemprego que não acelera a inflação) na casa de 9-9,5%, bastante inferior aos 11,8% registrados no último trimestre de 2018. No que se refere à indústria de transformação, procedimento semelhante aponta para o “nível natural de ocupação de capacidade” ao redor de 80,5%, também distante do observado no final de 2019.

Obviamente, minhas estimativas podem estar erradas. Uma das conjecturas reveladas na versão mais recente da Ata do Copom se refere precisamente à possibilidade das transformações recentes da economia se traduzirem em níveis de ociosidade bem menores do que o sugerido por dados que não conseguem ainda capturar tais mudanças.

Ocorre, porém, que há outras formas de aferir este fato. O comportamento da inflação, em particular das medidas de inflação livres de fenômenos acidentais e pontuais, como foi o caso dos preços de carnes em dezembro do ano passado, tende a refletir precisamente o grau de ociosidade da economia quando as expectativas de inflação se encontram próximas à meta. Em particular, sob tal condição, elevados níveis de ociosidade convivem com inflação bem abaixo da meta.

Isso posto, desde meados de 2018 a inflação subjacente tem oscilado ao redor de 3,2% ao ano, indicando a existência de ociosidade considerável.

Sob essas condições, o crescimento não é limitado pelo nosso (baixo) potencial: é possível crescer a um ritmo mais rápido por algum tempo, pela incorporação de trabalhadores desempregados, capacidade instalada ociosa, armazéns vazios e espaço comercial subocupado.  Não é possível, claro, se expandir indefinidamente acima do potencial, pois cedo ou tarde a ociosidade desaparecerá e as pressões inflacionárias ressurgirão. Nesse sentido preciso, portanto, a expansão além do potencial não é sustentável, mas, insisto, nada proíbe que cresçamos temporariamente (2 ou 3 anos?) a um ritmo mais vigoroso.

A taxa de juros de um ano, deflacionada pela inflação esperada, caiu de patamares próximos a 2,5% ao ano no primeiro e segundo trimestres de 2019 para 1,7% ao ano no terceiro trimestre e 0,9% ao ano no quarto trimestre, tendo permanecido relativamente estável até agora em 2020.

É bem verdade que seus efeitos não são imediatos: os modelos estatísticos sugerem uma defasagem de dois trimestres pelo menos para que o impacto da taxa de juros se materialize sobre a demanda interna. Se for esse o caso, boa parte da queda do juro real não se manifestou nos números do final de ano, mas deve fazê-lo no começo de 2020.

A política monetária pode, portanto, ajudar nas atuais circunstâncias, ou seja, elevada ociosidade e inflação bem abaixo da meta. Ainda assim, falamos de impulso temporário; a aceleração do crescimento sustentável requer reformas que elevem a produtividade, previnam o direcionamento do investimento a setores menos eficientes por força de distorções muitas vezes criadas pelo próprio governo, elevem a competição e melhorem a educação, para ficar em poucos tópicos.

Mal começamos a nos mexer nessa frente e as indecisões quanto à pauta reformista se tornam mais cara a cada dia. Tem alguém ouvindo?

* * *
A fala do ministro Paulo Guedes sobre empregadas domésticas viajando para a Disney foi lamentável. Em ordem crescente de impropriedade: (a) não é verdadeira (uma pena: seria ótimo se tivesse ocorrido); (b) politicamente ajudou a consolidar a versão (falsa) sobre a abordagem liberal ser anti-pobre; (c) é de uma grosseria ímpar; e, finalmente, (d) revela preconceito arraigado. Já passou (e muito) o tempo de o ministro entender que não está num palco entretendo os conversos.


(Publicado 19/Fev/2020)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Águas de março


A deterioração da infraestrutura municipal não resulta de austeridade fiscal, mas de prioridades que pouco têm a ver com o bem-estar da população.

Escrevo esta coluna sem energia, tanto no meu escritório quanto em casa, cortesia da chuva, que derrubou árvores e castigou a já sofrida infraestrutura da cidade. São Paulo hoje é Belo Horizonte de algumas semanas atrás e outras cidades de porte, sem dúvida, assumirão o papel até as águas de março fecharem o verão.

Não é novidade a chuva intensa nesta época do ano, muito menos que, submetida a temporais, a cidade alaga. Não houve vítimas fatais, mas há relatos de destruição severa, inclusive na zona oeste, onde moro, dentre eles o da a biblioteca do Santa Cruz, cujas imagens me recusei a ver.

Não é a exceção; ao contrário, a regra, seja quanto a municípios, estados, ou a União, é a percepção – acertada, diga-se – que a contrapartida dos nossos impostos em termos de serviços públicos e qualidade da infraestrutura é pouca, quando não inexistente. Isto não ocorre por acaso, mas reflete prioridades bastante particulares do poder público ao longo de muitos anos.

Quase sempre quando escrevo a este respeito o foco acaba se encaminhando para o governo central, seja por seu porte maior, seja pela relativa riqueza estatística a respeito, resultado de anos de trabalho da Secretaria do Tesouro. Hoje, porém, vamos ver os números municipais, justamente aqueles mais próximos de nossa experiência cotidiana.

Receitas, despesas e investimentos municipais - % PIB


2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
Transações que afetam o patrimônio líquido










1
Receita
8,1
8,3
8,5
8,2
8,4
8,6
9,0
8,8
9,1
9,3
11
Impostos
1,5
1,6
1,6
1,6
1,7
1,8
1,7
1,8
1,9
2,0
113
Impostos sobre a propriedade
0,6
0,6
0,6
0,7
0,7
0,7
0,7
0,7
0,8
0,8
114
Impostos sobre bens e serviços
0,9
1,0
1,0
1,0
1,0
1,1
1,0
1,0
1,1
1,1
12
Contribuições sociais
0,4
0,5
0,5
0,5
0,6
0,6
0,7
0,8
0,9
0,9
13
Transferências / Doações
5,2
5,3
5,4
5,2
5,3
5,2
5,4
4,9
5,2
5,2
14
Outras receitas
0,9
0,9
1,0
0,8
0,9
1,0
1,1
1,2
1,1
1,3
141
Juros
0,2
0,2
0,3
0,1
0,2
0,2
0,3
0,2
0,2
0,2
142
Outros
0,7
0,7
0,7
0,7
0,7
0,8
0,9
1,0
1,0
1,1
2
Despesa
7,6
7,6
7,9
7,7
8,1
8,5
8,7
8,5
8,8
8,9
21
Remuneração de empregados
3,5
3,5
3,7
3,8
3,9
4,0
4,2
4,2
4,2
4,3
22
Uso de bens e serviços
2,7
2,7
2,7
2,5
2,7
2,6
2,7
2,5
2,7
2,8
23
Consumo de capital fixo
0,4
0,4
0,4
0,4
0,4
0,5
0,5
0,5
0,5
0,5
24
Juros
0,3
0,2
0,2
0,2
0,2
0,3
0,2
0,1
0,1
0,1
25
Subsídios
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
26
Transferências / Doações
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
27
Benefícios sociais
0,4
0,4
0,5
0,5
0,5
0,6
0,6
0,7
0,7
0,7
28
Outras despesas
0,4
0,4
0,4
0,4
0,4
0,5
0,5
0,5
0,5
0,5

Resultado operacional bruto - ROB (1-2+23)
0,9
1,1
1,0
0,8
0,7
0,6
0,8
0,8
0,8
0,9

Resultado operacional líquido - ROL (1-2)
0,5
0,7
0,6
0,4
0,3
0,1
0,3
0,3
0,3
0,3
Transações com ativos não financeiros










31
Investimento líquido em ativos não financeiros
0,5
0,4
0,5
0,2
0,3
0,2
0,1
-0,1
0,0
0,0
31.1
Aquisição de ativos não financeiros
0,9
0,9
0,9
0,6
0,7
0,7
0,7
0,4
0,5
0,5
31.2
Alienação de ativos não financeiros
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
31.3
Consumo de capital fixo
0,4
0,4
0,4
0,4
0,4
0,5
0,5
0,5
0,5
0,5

Balanço total (1-2-31)
0,0
0,2
0,1
0,2
0,0
-0,1
0,1
0,4
0,4
0,3

Balanço primário ((1-141)-(2-24)-31)
0,1
0,2
0,1
0,3
0,0
0,0
0,0
0,3
0,3
0,2
Fonte: Tesouro Nacional (2019: quatro trimestres até setembro)

A tabela acima resume o resultado fiscal dos municípios brasileiros de 2010 ao terceiro trimestre de 2019, o último dado disponível. Alguns padrões saltam aos olhos.

A primeira conclusão derivada dos números desmente a tese de “falta de dinheiro”. As receitas municipais, soma da arrecadação própria e transferências de outras esferas de governo, subiram persistentemente de 2010 para cá. Aliás, mesmo durante o período pós-2013, marcado pela recessão 2014-16 e fraca recuperação desde então, as receitas municipais aumentaram pouco mais de 1 ponto percentual do PIB, equivalente a quase R$ 63 bilhões medidos a preços do terceiro trimestre de 2019. O problema não se localiza, portanto, no desempenho das receitas.

Por outro lado, as despesas seguiram trajetória virtualmente ininterrupta de elevação, de 7,6% do PIB (R$ 514 bilhões) em 2010 para quase 9% do PIB (R$ 643 bilhões) em 2019. Em particular, de 2017 para cá, as despesas municipais aumentaram mais de R$ 40 bilhões acima da inflação do período. Destes, cerca de 2/3 se destinaram à remuneração dos empregados municipais e pagamentos de aposentadorias e pensões. Houve, portanto, piora do resultado operacional líquido dos governos municipais.

O terceiro resultado importante é a queda do investimento público, aparente na linha “aquisição de ativos não-financeiros”, de uma média pouco inferior a R$ 60 bilhões/ano (0,8% do PIB) entre 2010-13 para pouco mais de R$ 40 bilhões /ano (0,6% do PIB) no período subsequente. Nos últimos três anos, inclusive, o investimento tem sido insuficiente para repor o desgaste do capital (“consumo de capital fixo”): R$ 100 bilhões contra R$ 107 bilhões, ou seja, houve redução do capital público neste período.

Este padrão não caiu do céu, nem nos foi imposto por alienígenas malignos, neoliberais perversos, ou economistas ortodoxos. Ele resulta, repito, de escolhas do poder público que refletem suas prioridades, dentre as quais, deve ficar claro, não se inclui o bem-estar da população, mas o dos grupos a quem se destina a parcela crescente do gasto.

Não chegamos a mais de 5,5 mil municípios no país pela preocupação em bem servir.