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terça-feira, 27 de agosto de 2019

Hermanos


Há fortes laços econômicos entre Brasil e Argentina, principalmente por meio das exportações de manufaturas. A recessão lá tem (e terá) repercussões importantes sobre nosso desempenho.



Ao comentar a crise argentina e seus efeitos sobre a economia nacional o ministro Paulo Guedes fez uma pergunta retórica: “e desde quando o Brasil precisa da Argentina para crescer? ”, dando a entender que o país estaria razoavelmente protegido contra as ondas de choque que vêm do vizinho. A prepotência desconsidera os laços entre os dois países.

É verdade que a economia brasileira é inacreditavelmente fechada, com exportações e importações representando, cada uma, algo como 12% do nosso produto na média dos últimos 10 anos. Trata-se, para bem ou para mal, de uma economia cuja dinâmica, do lado da demanda, sempre dependeu muito mais do mercado interno do que do comércio internacional. Aliás, da forma como encaro a questão, esta baixa exposição à competição externa tem sido bastante prejudicial ao aumento da produtividade no país, com impactos negativos para o crescimento de longo prazo do país.

Embora esta continue a ser uma questão premente, do ponto de vista da recuperação cíclica da economia o obstáculo maior não é o lamentável desempenho da nossa produtividade, que tive oportunidade de comentar em coluna recente.

Todas as indicações que temos sugerem que país trabalha hoje com considerável ociosidade, expressa de forma pungente na taxa de desemprego (sazonalmente ajustada) ainda próxima a 12% (contra uma estimativa de “taxa natural de desemprego” na casa de 9%). Já no que se refere à indústria de transformação, seu grau de utilização de capacidade se encontra ao redor de 77%, comparado a estimativas de um nível “natural” entre 80%-81%.

Não são, portanto, restrições do lado da oferta que impedem o crescimento mais rápido neste momento, ainda que sejam preponderantes quando analisamos o baixo ritmo de expansão do país em horizontes mais longos. Nas atuais circunstâncias, a dificuldade vem da perda de dinamismo da demanda, principalmente no que se refere ao investimento.

Neste contexto, o desempenho das exportações líquidas adquire mais importância do que o usual, em particular no caso das vendas ao vizinho. Nem tanto pelo seu volume em si, que, embora representasse respeitáveis 8% das nossas exportações totais há um ano, não teria normalmente tração sobre a economia como um todo.

Ocorre, porém, que as exportações para a Argentina são um animal muito distinto da nossa exportação média. Se pensarmos no total vendido ao exterior somos, é claro, um grande exportador de commodities, como soja, minério, carne, aço, papel e celulose e outros produtos semelhantes (notando que o rótulo “manufaturados” se aplica a várias das commodities exportadas pelo país).

Já no caso das vendas para a Argentina, tipicamente mais de 90% do valor se refere a manufaturas e, dentro das manufaturas, aos produtos mais elaborados, notadamente automóveis e autopeças. Em particular, a Argentina representava, há pouco mais de um ano, o destino de 20% das exportações de produtos manufaturados nacionais (hoje sua participação caiu para 12%). Seu valor em 12 meses caiu de US$ 17 bilhões em meados do ano passado para menos de US$ 10 bilhões um ano depois, redução de 40%.

O valor adicionado pela produção local da indústria de transformação nos 12 meses terminados em junho do ano passado era US$ 204 bilhões. A queda das exportações para a Argentina equivaleu, portanto, numa primeira aproximação, a pouco mais de 3% do PIB do setor, valor nada trivial para um segmento que declina desde 2013.

Não aconteceu por acaso, portanto, o descasamento entre as vendas no varejo (grosso modo, o consumo de bens) e a produção industrial. De fato, depois de seguir (a alguma distância) o desempenho do varejo do final de 2016 ao começo de 2018, a indústria de transformação perdeu dinamismo de forma dramática: até o primeiro trimestre de 2018 crescia a uma velocidade média pouco superior a 5% na comparação com o fundo do poço, em outubro de 2016; de lá para cá registra queda de 1%, sempre em termos dessazonalizados; já as vendas no varejo cresciam a 7,5% ao ano entre outubro de 2016 e março de 2018 e, de lá para cá ainda aumentaram 4,2%.

Parte disto resultou da greve dos caminhoneiros em maio do ano passado, mas tudo indica que este efeito já se dissipou. Muito do mau desempenho do setor nos últimos 3-4 trimestres parece provir precisamente da queda das exportações para a Argentina.

Em retrospecto, talvez o Mercosul tenha sido a aposta errada, pelo menos da forma como se deu a relativamente forte integração intrabloco em comparação com sua baixa inserção nas cadeias globais. Todavia, a aposta foi feita e vivemos hoje suas consequências. Não é possível ignorar o efeito da recessão argentina, e a consequente retração das suas importações, sobre a indústria brasileira, em especial o segmento automotivo, cujo volume exportado em 12 meses caiu de quase 800 mil veículos em abril de 2018 para menos de 480 mil em julho de 2019.

Respondendo ao ministro, desde quando o Brasil depende da Argentina para crescer? Desde os anos 90, pelo menos, e teremos que fazer muita força para escapar desta peculiar dependência num prazo minimamente razoável.




(Publicado 21/Ago/2019)

terça-feira, 20 de agosto de 2019

A caixa de ferramentas


O anúncio da intervenção no mercado de câmbio por meio de vendas de reservas é apenas uma adição bem-vinda aos instrumentos hoje disponíveis, que não deve ter impacto na tendência da taxa de câmbio



Tenho recebido muitas consultas acerca do anúncio da “nova” modalidade de intervenção cambial do BC, que consiste na oferta de US$ 3,8 bilhões das reservas, a serem compensados pela colocação de “swaps reversos” (que, ao contrário dos swaps normais, equivalentes à venda de dólares no mercado futuro, representam compra de dólares no mercado futuro). O principal ponto é que esta modalidade deve ter – por desenho – impacto muito modesto, se algum, na cotação do dólar. Representa, a bem da verdade, apenas mais um instrumento na caixa de ferramentas do BC no que diz respeito ao mercado de câmbio.

Adiantada a conclusão, resta entender o porquê.

O BC detém hoje US$ 388 bilhões em reservas prontamente disponíveis. Foram adquiridas por meio de emissão de moeda, depois “enxugada” (o termo técnico é “esterilizada”) pela colocação de títulos públicos, tipicamente sob a forma de operações compromissadas. Assim, o custo destas reservas corresponde, numa primeira aproximação, à taxa Selic (que seria o custo da dívida pública emitida para esterilizar a compra de reservas), menos a taxa de juros dos títulos que correspondem às aplicações do BC no exterior), menos a desvalorização do Real face ao dólar (quando o Real se aprecia, o BC perde dinheiro).

Ao mesmo tempo, o BC vendeu cerca de US$ 68 bilhões de swaps. Estes swaps representam uma troca: o BC recebe a taxa Selic sobre seu valor (em Reais) e paga uma taxa de juros em dólar (o cupom cambial) mais a depreciação cambial. Assim, a desvalorização da moeda representa uma perda para o BC, enquanto a valorização do real representa um ganho. Posto de outra forma, do ponto de vista do custo, os swaps são a versão espelhada das reservas.

Custo das reservas = Selic (-) Juro externo (-) Desvalorização

Custo dos swaps = Juro externo (+) Desvalorização (-) Selic

Do ponto de vista do custo total, portanto, o que interessa é a posição de reservas internacionais líquidas dos swaps, ou seja, US$ 388 bilhões menos US$ 68 bilhões, ou seja, US$ 320 bilhões (existem outras modalidades que ignoramos para manter a explicação simples e cujo efeito nos números é bastante pequeno). Isto dito, há diferenças entre reservas e swaps que trataremos mais à frente.

A proposta do BC consiste em ofertar US$ 3,8 bilhões de dólares à vista, retirados das reservas internacionais, compensando a venda, contudo, com a colocação de swaps reversos. No caso do swap reverso o BC recebe a variação cambial e a taxa de juros externa, e paga a taxa Selic. Em outras palavras, o efeito líquido sobre o custo é, de novo aproximadamente, nulo: o que o BC vende com uma mão, recompra com a outra. Por este motivo, não se espera nenhum impacto significativo sobre a taxa de câmbio.

Do ponto de vista estritamente contábil pode haver algum efeito sobre as estatísticas de dívida bruta, porém. A venda de reservas permitiria ao BC reduzir o volume de operações compromissadas, que são contabilizadas na dívida bruta, enquanto o swap reverso não sensibilizaria este indicador. De qualquer forma, o impacto seria pequeno (em torno R$ 15 bilhões a preços de hoje, enquanto a dívida bruta anda na casa de R$ 5,5 trilhões, isto é, falamos de um efeito da ordem de 0,3% da dívida bruta.

Porém, se é verdade que não se espera nenhum grande impacto da intervenção sob estes moldes, por que motivo estaria o BC adicionando este instrumento à sua caixinha de ferramentas? Porque a intervenção do BC, se feita de acordo com os princípios inerentes ao regime de metas, tem como principal objetivo prover liquidez nos mercados de câmbio em caso de eventos que afastem vendedores.

Tipicamente isto se verifica nos mercados futuros, que são muito maiores que o mercado cambial à vista no Brasil. Daí a preferência histórica pela intervenção por meio de swaps, ao invés de dólares à vista (ou “pronto”, no jargão do mercado). É, todavia, possível que, sob outras circunstâncias a liquidez se reduza no mercado à vista, requerendo que o BC oferte o dólar “pronto”. Se for este o caso, o novo instrumento seria a resposta mais adequada do que a venda de swaps, ou seja, trata-se de uma questão técnica de mercado.

A opção por um instrumento ou outro dependerá do diagnóstico acerca da localização de uma eventual falta de liquidez: se no mercado futuro, opta-se pela colocação de swaps; se no mercado à vista, pela venda de “pronto”, compensada pela colocação de swaps reversos. A boa gestão pode ajudar a evitar “picos” de desvalorização em caso de falta de liquidez (ou seja, o impacto modesto a que nos referimos no primeiro parágrafo), mas sem afetar a tendência da taxa de câmbio.

Isto dito, é bom lembrar que reservas não são idênticas a swaps, apesar de serem, do ponto de vista dos custos, a versão espelhada um do outro (ou o mesmo custo no caso do swap reverso). Swaps são contratos locais, liquidados em Reais, enquanto reservas são dólares mesmo: os primeiros não podem ser usados para quitar compromissos no exterior, enquanto o papel dos segundos é exatamente este.

Nas circunstâncias atuais, em que a venda de dólar pronto representa fração reduzida das reservas, isto não faz grande diferença, pois ainda teríamos reservas em volume provavelmente maior que o necessário para fazer frente a eventuais compromissos externos (amortização de dívida, pagamento de juros, etc.).

Em suma, o anúncio da nova modalidade de intervenção é uma medida técnica, que não deve interferir com a tendência da taxa de câmbio e cuja aplicação depende do diagnóstico de onde se verifica uma possível falta de liquidez. Nota-se apenas que o BC segue atento aos desenvolvimentos do mercado de câmbio, mantendo a tradição que já mereceu estudos com conclusões bastante favoráveis por parte de organismos financeiros internacionais.




(Publicado 15/Ago/2019)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Argentina entre a desonra e a guerra


A crise argentina, que deve permitir a volta do peronismo ao poder, decorre de opção equivocada de Macri: entre o ajuste e o gradualismo, escolheu o segundo e teve que enfrentar o primeiro.

Ninguém esperava um bom desempenho de Maurício Macri nas eleições primárias argentinas realizadas neste fim de semana, que, sem disputas internas aos partidos, funcionaram como prévia das eleições gerais de outubro. Ainda assim, a magnitude da derrota, com quase metade (48%) dos votos direcionados à chapa da qual Cristina Kirchner faz parte, contra 32% recebidos pelo presidente (resultado que sugere decisão já em primeiro turno), surpreendeu os mercados, levando a quedas expressivas dos ativos argentinos: bolsa, títulos, bem como a moeda.

A reação do mercado financeiro é compreensível. Ainda que Cristina Kirchner não seja a cabeça da chapa peronista, há consenso que ela retomará na prática o controle do governo. À luz de sua política econômica anterior, marcada por forte intervenção nos mercados, falsificação de dados econômicos, confisco de fundos de pensão, descontrole fiscal e inflação elevada, não há quem nutra expectativas favoráveis para o país, o que se expressa precisamente no comportamento negativo dos ativos financeiros.

Também não é necessário nenhum grande esforço de imaginação para entender a irritação da população com o presidente. Após seis trimestres de recuperação, em que a economia se expandiu ao ritmo médio de 3,4% ao ano, o país voltou a entrar em forte recessão: o PIB caiu nada menos do que 6,5% em comparação ao observado no trimestre final de 2017, seu melhor momento sob Macri.

Por outro lado, a inflação medida em 12 meses, que havia caído para 25% também no final de 2017, voltou a acelerar, e tem permanecido na casa de 55%, apesar de medidas heterodoxas do governo, como o congelamento de alguns preços privados e tarifas públicas, anunciado em abril deste ano.

A causa imediata de ambos os fenômenos (pelo menos da maior parte) é a perda de quase 60% do valor da moeda no período. Na ausência de um mercado de crédito em moeda local, a quase totalidade do endividamento, tanto do setor público, quanto do setor privado, é denominada em dólares; assim, a desvalorização da moeda eleva o valor das dívidas, sufocando as empresas e o governo.

Adicionalmente, a forte dolarização da economia faz com que o encarecimento da moeda estrangeira seja repassado em larga medida para os preços domésticos. Isto transparece no comportamento da inflação de bens (mais sensíveis aos preços internacionais), que era inferior à inflação de serviços (menos sensíveis) no final de 2017 (20% contra 34%), mas que hoje os superam por margem considerável (60% contra 50%).

Isto dito, a questão maior é o que levou ao desempenho desastroso da moeda nos últimos 18 meses, em particular na comparação com outros países emergentes, que também sofreram com a piora do cenário internacional, mas, em sua maioria, nada tão dramático quanto a queda do peso argentino.

As razões, acredito, se encontram na política econômica doméstica. Em que pese a retórica liberal na eleição de 2015 e mesmo medidas acertadas no que dizia respeito à liberação do câmbio e redução de subsídios, a verdade é que o governo Macri fez muito pouco nas áreas fiscal e monetária.

Ao assumir Macri herdou um déficit fiscal na casa de 5% do PIB, dos quais 4% do PIB correspondiam ao balanço primário (isto é, sem considerar o pagamento de juros). Ao contrário, porém, do que se anunciava, jamais houve um programa de austeridade: até o final de 2017 o déficit fiscal aumentou para quase 6% do PIB, principalmente por conta da piora do desempenho primário; apenas a partir de meados de 2018 se observa algum esforço, mas que mantém o resultado negativo na casa de 5% do PIB.

Já no que se refere à política monetária, apesar da inflação já elevada, o BCRA reduziu a taxa de juros de 2016 até o primeiro trimestre de 2018 (de 38% aa para 27% aa), só voltando a elevá-la quando o país começou a enfrentar uma séria crise cambial.

Vale notar que a gênese desta crise estava relacionada à piora do ambiente internacional, à época pelo receio de uma elevação mais forte da taxa de juros nos EUA (enquanto hoje o problema está mais relacionado à guerra comercial), assim como queda nos preços das commodities a partir de meados de 2018. Todavia, a gravidade do problema na Argentina, na comparação, por exemplo, com outros países latino-americanos (até o Brasil!), sugere a existência de mecanismos de ampliação do choque externo que se encontravam presentes apenas lá.

A verdade é que o governo Macri optou pelo gradualismo para tratar dos problemas de contas públicas e inflação, talvez na crença de manutenção do cenário externo favorável que vigorou até o começo de 2018, talvez por suas dificuldades política internas, talvez pela combinação de ambos. De qualquer forma, como ficou claro, não se preparou para dias piores e agora paga o preço desta opção. Não fez os ajustes quando teve oportunidade e teve que fazê-los quando não lhe restava escolha.

Churchill, de maneira profética, alertou Neville Chamberlain: “você teve que optar entre a guerra e a desonra: escolheu a desonra e terá a guerra”. Não é difícil estender a analogia para o caso argentino.

Antes, porém, de chorar pela Argentina (quem resiste a Andrew Lloyd Webber e Tim Rice?), lembremos que optamos pelo mesmo gradualismo na questão fiscal, embora algo menos grave porque a dívida pública é denominada em moeda nacional e, portanto, não flutua ao sabor da taxa de câmbio. Isto, porém, não nos confere o dom da invulnerabilidade. Também enfrentamos uma janela de oportunidade modesta para colocar a casa em ordem e a velocidade do ajuste não nos dá qualquer margem para erro.




(Publicado 13/Ago/2019)

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Narrativas e lendas urbanas


Ao contrário da lenda urbana, não houve contração do gasto público no Brasil, pelo contrário. Previdência e funcionalismo são os motivos.

O Brasil está parado por conta de uma política fiscal apertadíssima, resultado da obsessão com o ajuste fiscal de curto prazo que condena o país ao baixo crescimento, um exemplo claro de “austericídio”. Ou, pelo menos, é esta a “narrativa” (sempre ela!) que nos tentam impingir as viúvas da Nova Matriz Econômica, ignorando, como de hábito, o que dizem os dados.

O Tesouro Nacional empreende um esforço louvável para produzir números fiscais que abarquem todos os níveis de governo no país, e não apenas o conjunto de dados referentes ao governo federal, que cobrem o período desde 1997. Um novo conjunto de informações, denominado Operações do Governo Geral (OGG), que pode ser encontrado no site www.tesouro.fazenda.gov.br/-/estatisticas-de-financas-publicas, consolida receitas e despesas do governo central, estados e municípios desde 2010 em bases trimestrais. Isto nos permite não só uma visão mais completa do estado das finanças públicas, como também uma localização mais precisa das fontes de desequilíbrio.

Mostra, por exemplo, que em 2018 o governo geral gastou nada menos do que R$ 3,34 trilhões (quase metade do PIB!), incluindo o pagamento de juros, enquanto em 2014, último ano da Nova Matriz, o valor (a preços de 2018) havia atingido R$ 3,20 trilhões. Já o gasto primário, isto é, deduzidos os juros, que era R$ 2,63 trilhões em 2014, chegou a R$ 2,72 trilhões em 2018.

O suposto aperto fiscal é, portanto, uma lenda urbana. O que transparece na crueza dos números é muito simples: (1) houve aumento de gastos nos últimos anos (R$ 140 bilhões); e (2) este aumento resultou, em maior parte, da elevação do dispêndio primário (R$ 90 bilhões).

O culpado é o suspeito de sempre: o gasto previdenciário (nos três níveis) subiu pouco mais de R$ 150 bilhões no período (de R$ 1,06 trilhão para R$ 1,21 trilhão), mantendo a dinâmica observada no quadriênio anterior. Nem todo terraplanismo acerca da questão previdenciária consegue negar este fato.

Houve também expansão dos gastos com o funcionalismo, pensões e aposentadorias à parte (porque já incluídas na rubrica anterior): R$ 36 bilhões, de R$ 881 bilhões para R$ 917 bilhões.

Assim, funcionalismo e previdência, tomados em conjunto, chegaram a R$ 2,13 trilhões no ano passado, R$ 190 bilhões acima do observado em 2014. Diga-se, aliás, que desde 2010 estes gastos aumentaram em todos os anos a um ritmo médio de R$ 56 bilhões/ano. Houve modesta redução de ritmo depois de 2014 (provavelmente por força da aceleração da inflação em 2015 e 2016), mas em momento algum registrou-se diminuição destas despesas.

A contrapartida é a redução dos investimentos e dos serviços prestados à população. O investimento dos três níveis de governo caiu de R$ 162 bilhões em 2014 para R$ 97 bilhões em 2018, abaixo das estimativas da depreciação do capital público. Já as aquisições de bens e serviços (mais importantes no caso dos governos municipais e estaduais), que refletem a provisão de serviços públicos (como medicamentos, merenda, suprimentos, etc.) caiu R$ 25 bilhões.

O quadro que emerge destes números tem muito pouco a ver com o mito da austeridade. Embora o investimento e a prestação de serviços tenham sido reduzidos nos últimos anos, não é verdade que isto resulte de um ajuste fiscal a qualquer custo. Pelo contrário, origina-se de uma dinâmica de gastos que privilegia previdência e funcionalismo (em boa parte pela intersecção destes dois conjuntos) em detrimento da infraestrutura (que o digam os viadutos paulistanos) e os serviços públicos.

Começamos agora, com a aprovação (ainda parcial) da reforma da previdência, a moderar este desequilíbrio, mas a magnitude expressa nos números acima indica que se trata apenas do início de um caminho longo e difícil, que se torna ainda mais longo e difícil graça a lendas urbanas acerca de “austericídio” e quejandos.

Análise econômica não prescinde de dados; já a “narrativa” vive de sua negação.

Numerofobia

(Publicado 7/Ago/2019)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Audaciosamente indo aonde o BC jamais esteve


O BC deve voltar a reduzir a Selic. Embora a magnitude do primeiro movimento seja relevante, o mais importante é o tamanho do ciclo, que pode superar as expectativas atuais de corte de 1 ponto percentual.

O Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) pode hoje reiniciar o ciclo de distensão monetária e muito provavelmente o fará. Há bastante discussão acerca do tamanho do movimento: enquanto a maioria dos analistas aponta corte de 0,50% na meta para a taxa Selic, outro grupo, menor, mas também numeroso, acredita em redução mais modesta, 0,25%.

A discussão não é acadêmica: há dinheiro na mesa, dado que preços de mercado embutem chance maior do corte mais agressivo, indicando que uma eventual frustração destas expectativas poderá causar certo prejuízo, o que, diga-se, é da natureza do mercado financeiro. Ainda assim, não me parece ser a questão mais interessante, que, da forma como vejo, é o tamanho do ciclo adicional de relaxamento, memoravelmente apelidado de “orçamento” por Eduardo Loyo.

Com base nas projeções divulgadas no último Relatório de Inflação (publicado em junho), que devem estar algo defasadas, a queda total da Selic seria da ordem de 1 ponto percentual (ou 100 pontos base), de 6,5% aa para 5,5% aa.

Com efeito, no cenário em que a Selic é mantida inalterada, o BC projetava a inflação em 2020 (seu atual horizonte) em 3,7%, abaixo da meta de 4,0% fixada para o ano que vem. Por outro lado, caso a Selic fosse reduzida para 5,75% aa, a inflação no próximo ano chegaria a 3,9%, levemente abaixo da meta.

Dadas as estimativas dos efeitos da redução da Selic sobre a inflação (cada ponto percentual a menos de juros geraria em torno de 0,25% a mais de inflação), haveria ainda espaço para levar a Selic a 5,5% aa, ou seja, o orçamento de 100 pontos base para redução da taxa de juros.

Dito isto, creio haver condições para um afrouxamento maior. A começar porque, como disse, as projeções do BC serão atualizadas e provavelmente indicarão um cenário ainda mais favorável para a inflação.

De fato, o atual ritmo de expansão do produto é menor do que as estimativas mais pessimistas acerca da capacidade de crescimento potencial do PIB, ou seja, temos fortes razões para suspeitar que a ociosidade de recursos na economia não está sendo reduzida. Ao contrário, há uma boa chance de ter se elevado um pouco na primeira metade deste ano (apesar da leve queda do desemprego), com reflexos baixistas sobre a inflação num horizonte de dois a três trimestres, ou seja, com impactos ainda em 2020.

A maior parte desta história diz respeito à demanda interna, em particular a fraqueza do investimento, mas um pedaço considerável reflete também um ambiente internacional de desaceleração.

As estimativas do CPB (órgão holandês que consolida dados globais de produção e comércio) apontam para redução do ritmo de expansão do comércio mundial de pouco mais de 5% no primeiro trimestre do ano passado para cerca de 1,5% no segundo trimestre deste ano, possível reflexo da “guerra comercial”. Tal desenvolvimento aponta também para um cenário de manutenção do elevado grau de ociosidade de recursos no país, em particular no setor industrial, sem maiores reflexos, contudo, no dólar, um receio do BC.

Já os últimos números de inflação confirmaram que a aceleração observada no começo do ano era mesmo um fenômeno não só transitório, como limitado a uma fração relativamente modesta dos índices de preços. Há hoje convergência da inflação “cheia” e seus núcleos (medidas alternativas, construídas para separar “acidentes” daquilo que parece ser o comportamento subjacente da inflação) na casa de pouco mais de 3% ao ano, sugerindo um processo inflacionário bastante bem-comportado.

Da mesma forma, as expectativas de inflação permanecem firmes ao redor da trajetória de metas, indicando forte credibilidade do BC.

Finalmente a aprovação (ainda em primeiro turno e só na Câmara, é verdade) da reforma previdenciária, embora não resolva todos os problemas fiscais do país (para não falar de questões como educação, produtividade, etc.), sinaliza um passo importante no sentido de evitar uma crise de grandes proporções nos próximos anos. Isto transparece na redução da percepção de risco-país (não só em termos absolutos, mas na comparação com nossos pares), sugerindo que está em curso um processo de redução da taxa estrutural de juros.

Este conjunto aponta para a possibilidade de um orçamento maior, que não seria executado apenas neste ano, mas poderia avançar em 2020. Caso o BC já esteja convencido disto, provavelmente iniciará o ciclo com uma redução mais agressiva, 0,50%; se ainda não estiver convencido, será possivelmente mais cauteloso.

Assim, independentemente da escolha de hoje, acredito que os desenvolvimentos nos levarão às taxas de juros mais baixas de nossa história, exatamente o oposto daquilo que diziam os defensores da tese que a política econômica existe “para beneficiar os rentistas”. No mínimo vai forçar este pessoal a novos contorcionismos, para nosso gáudio e diversão.




(Publicado 31/Jul/2019)