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terça-feira, 29 de outubro de 2019

Um ano depois


O presidente Bolsonaro foi eleito há um ano. É verdade que só tomou posse em janeiro, mas, ainda assim, a efeméride requer um balanço do período, em particular o que se materializou em termos das expectativas que existiam naquele momento e o que ainda está por fazer, se é que será feito.

A principal conquista, a ser provavelmente atingida nas próximas semanas, é a reforma da previdência. Ainda que bastante desidratada com relação à proposta enviada ao Congresso no começo de 2019, a atual versão não apenas supera o impacto esperado do projeto do governo Temer, mas também ultrapassa, e em muito, o que se antecipava no período imediatamente após as eleições.

Vale aqui um mea culpa particular: depois do fracasso na aprovação da reforma em 2017 e 2018 acreditava que o Congresso, representação imperfeita, mas não totalmente infiel, da sociedade não permitiria nada de monta nesta área, porque esta não parecia convencida da necessidade de mudanças, preferindo lutar cada qual pelo seu privilégio.

Houve obviamente muito disto, traduzido em parcela considerável da “desidratação” do projeto atual, mas o Congresso, em particular a Câmara, se mostrou muito mais disposto, talvez refletindo um entendimento mais profundo da população sobre o tema, bem maior do que imaginava possível à luz da barragem publicitária e mentiras acerca dos impactos da reforma. Em que pese o protagonismo do Legislativo, muito do mérito cabe também à administração, que iniciou o processo.

Não foi sua única ação bem-sucedida. A Medida Provisória da Liberdade Econômica foi uma expressão da nova orientação de política econômica, mais liberal. Ainda é cedo para avaliarmos seus efeitos, mas, caso a lei “pegue” (sempre uma incógnita por aqui), há motivos para crer que a facilitação da atividade econômica redundará, em alguma medida, em ganhos de produtividade. Espera-se mais em termos de reformas microeconômicas, mas um passo importante já foi dado.

Da mesma forma, o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia pode ter efeitos importantes por este lado. Sim, as conversas começaram muito antes do atual governo e seria injusto esquecer que várias equipes estiveram envolvidas, construindo as bases para o acordo. Ainda assim, cabe o mérito para o atual governo (outros governos, vale lembrar, poderiam simplesmente ignorar o progresso anterior), lembrando sempre que o acordo ainda está para ser sacramentado e que um pouco de cuidado diplomático no mínimo reduziria as justificativas do protecionismo europeu.

Tenho, por outro lado, frustrações consideráveis, relativas à privatização e reforma tributária.

Confesso que já não nutria grandes esperanças sobre o primeiro tópico, apesar do tom grandioso de Paulo Guedes, então indicado para o posto de Ministro da Economia, que prometia R$ 1 trilhão relativo à venda de ativos governamentais, tendo inclusive oportunidade de expressar minhas dúvidas a respeito. Não apenas o montante era exagerado, como o próprio presidente eleito já havia afirmado que Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal não fariam parte do processo. De todo o resto, houve avanço interessante na venda da BR Distribuidora (cuja receita, diga-se, foi para a Petrobras, não para o Tesouro), principalmente no que se refere ao formato pulverizado da venda e pouco mais se pode dizer a respeito.

Já quanto à reforma tributária a frustração é bem maior. Um consenso parece ter sido forjado no Congresso Nacional acerca da fusão dos principais impostos indiretos num único imposto sobre valor adicionado a ser repartido entre União, estados e municípios, envolvendo enorme simplificação e uma distribuição mais equitativa da carga tributária entre os diversos setores da economia, em particular taxando mais os serviços (cuja carga hoje é menor) e menos a indústria.

Apesar disto, o governo federal tem contribuído pouco para o tema, se é que podemos chamar suas ações de “contribuição”. À parte a tentativa fracassada de ressuscitar a CPMF sob nova roupagem, o governo nada fez, além de prometer enviar, sempre na “próxima semana”, seu projeto de reforma. Muito embora se espere que resultados desta reforma só apareçam depois de alguns anos, a verdade é que perdemos boa parte de 2019 sem que nada concreto tenha se originado do Executivo, de quem se espera a liderança no processo, nem sequer seu apoio às iniciativas do Legislativo.

Por outro lado, no que se refere ao desempenho fiscal, não diria que houve frustração, com a notável exceção de Paulo Guedes, que acreditava poder eliminar o déficit primário já em 2019. Alertado agora por economistas do calibre de Mansueto Almeida o ministro parece ter finalmente entendido que o problema é bem mais difícil do se se afigurava e que novas reformas, além da previdenciária, serão necessárias para lidar com o assunto. Considerando que tem gente para quem a ficha ainda não caiu, o ministro até que não está entre os mais atrasados...

Para o que mais interessa diretamente à população, o progresso foi modesto. Não houve aceleração do crescimento, que permanece na casa de 1% ao ano, e a criação de empregos (1,8 milhão nos 12 meses até agosto), embora mais robusta, levou à queda apenas marginal do desemprego, hoje pouco abaixo de 12%. A fraqueza da economia manteve a inflação baixa, o que permite ao BC seguir reduzindo a taxa de juros, mas duvido que quem ainda busca emprego se sinta particularmente consolado com a perspectiva de Selic a 4,5%.

Ao final das contas tivemos progressos inesperados, mas há uma noção clara que muita coisa ainda precisa ser feita. A enormidade da tarefa, contudo, não parece ter sido ainda compreendida pelo presidente. As brigas com seu partido, com Emmanuel Macron, tuítes sobre temas de gosto duvidoso podem até energizar seus seguidores em redes sociais. Contribuem, porém, muito pouco para recolocar o país na rota do crescimento mais vigoroso.




(Publicado 23/Out/2019)

terça-feira, 22 de outubro de 2019

No país da Matemágica


O último artigo dos Defensores dos Gastos não poupa os autoelogios. Começa afirmando que:

Nosso artigo ‘Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?’ publicado no dia 14 de setembro na Folha de São Paulo, teve grande repercussão ao contrapor as ideias defendidas em artigo anterior.

Apenas omitem que a repercussão se deve à duvidosa honra de terem sido brindados pela Folha com um Erramos, provavelmente o primeiro na longa história do jornal a ser atribuído um artigo de opinião.

Meus leitores sabem o porquê: como notado na minha primeira coluna a respeito, os autores confundiram a emissão líquida de títulos (conta que inclui, entre outras, a capitalização de bancos públicos e aquisição de reservas internacionais) com o superávit primário. Concluíram, assim, erroneamente que este último não teria colaborado para a redução da dívida pública no período 2007-13, e que os déficits primários registrados entre 2014 e 2018 não teriam elevado a dívida pública.

Confundiram também o crescimento nominal do PIB (que inclui a inflação) com o crescimento real do PIB, algo que se espera não acontecer depois do curso de Introdução à Economia. Superestimaram desta forma o impacto do crescimento no comportamento da relação dívida-PIB, como pude mostrar na segunda coluna a respeito. Ao contrário do que acreditavam, o impacto do crescimento foi menos decisivo para o comportamento da relação dívida-PIB do que o saldo primário, tanto no período em que esta caía, como no período de forte elevação, a partir de 2013.

Há algum reconhecimento dos seus erros na nova tentativa? Nenhum de forma explícita. Os assuntos foram convenientemente varridos para baixo do tapete, o que por si só já revela a vergonha sofrida.

É também na surdina que parecem ter encaixado o papel do saldo primário na dinâmica da dívida. Afinal, agora querem discutir a causa da piora dos resultados primários, insistindo na lorota que a queda da receita foi o principal fator, não o aumento persistente da despesa federal.

Curiosamente apresentam como evidência sua decomposição do resultado primário que mostra que os gastos contribuíram em média 0,72% por ano para a redução do superávit primário entre 2007 e 2013, quase totalmente compensado pelo aumento de receitas, 0,69% do PIB por ano, enquanto entre 2013 e 2018 suas próprias estimativas revelam que os gastos seguiram pressionado o resultado primário, 0,33% do PIB por ano, enquanto a queda das receitas contribuiu 0,30% do PIB por ano para a redução do superávit.

Como, até prova em contrário, 0,33 é maior do que 0,30, deve ficar claro que, sim, o aumento das despesas teve impacto maior sobre o resultado primário do que a queda das receitas, notando que o teto de gastos, criticado pelos Defensores, é o responsável pela menor (embora ainda positiva) contribuição do dispêndio. Apesar disto reafirmam que:

o suposto (sic) crescimento acelerado dos gastos públicos não explica a evolução da dívida”.

Eu já achava esta afirmação esquisita à luz das evidências levantadas por outros, mas, ao contrariar a evidência que os próprios autores levantaram, a declaração atinge patamares inéditos de bizarrice.

Apesar disto, os argumentos esdrúxulos não cessam por aqui. Os autores invocam artigo também publicado no sítio da Folha por João Romero, para quem o déficit primário não existiria se a receita do governo federal tivesse mantido a tendência registrada no período anterior.

Eu, para ser sincero, apresentei argumento semelhante à Confederação Brasileira de Basquete, notando que, se eu tivesse crescido entre os 14 e 18 anos ao mesmo ritmo que cresci dos 11 aos 14, faria jus à vaga de pivô titular em qualquer seleção brasileira de 1981 até pelo menos 2003. Fui injustamente ignorado...

O tal “argumento” nada mais é do que uma extrapolação linear, procedimento contra o qual também somos alertados nos primeiros cursos de Econometria e neste caso não é difícil entender o motivo.

Caso a receita e o PIB tivessem mantido suas “tendências” a partir de 2014, a carga tributária brasileira – hoje na casa de 35% do PIB – já teria superado 37,5% do PIB; em 2029 ultrapassaria 41% do PIB provavelmente sufocando de vez o setor privado, mas conseguindo um lugar na seleção brasileira de basquete.

Insatisfeitos com a realidade, que teima em impor limites à tributação, afirmam que:

A elevação dos gastos pode ser feita de forma a manter o orçamento equilibrado e ainda sim ter efeitos positivos sobre a economia.”

Aqui o pensamento mágico atinge o ápice, expresso na noção que o aumento de gastos poderia elevar a receita em montante ainda maior com base no “efeito multiplicador”, ignorando que o “moto-contínuo” tributário, mesmo nas condições mais favoráveis, só funcionaria se a alíquota marginal de imposto superasse 100%, ou seja, que, dada a estrutura tributária, para cada R$ 1 de elevação de renda o governo arrecadasse quantia maior (os cálculos estão à disposição para quem se interessar).

Em suma, a maior contribuição do artigo é a envergonhada confissão tácita acerca da importância do resultado primário para a evolução do endividamento. De resto, vale pelo passeio divertido pelo país da Matemágica.




(Publicado 16/Out/2019)

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

O que não ensinam em Hogwarts


Embora a redução da taxa de juros ajude a conter a dívida, o desempenho fiscal esperado sugere que esta continuará crescendo na ausência de novas reformas que permitam reduzir os gastos obrigatórios.

A inflação baixa possibilita ao BC testar novos limites para a taxa de juros, processo que ainda não se encerrou. A Selic se encontra em 5,5% e, segundo o Boletim Focus, deve fechar o ano em 4,75%, permanecendo neste nível até o final de 2020. Apenas em 2022 a Selic atingiria 7% e lá ficaria.

Esta visão é compartilhada pelo mercado de renda fixa, que expressa as projeções de quem põe dinheiro a risco.

A partir dos números publicados pela ANBIMA é possível inferir que o mercado antecipa a taxa de juros ao redor de 4,75% ao ano para os próximos 12 meses, subindo para a vizinhança de 7-7,5% ao ano entre o final de 2021 e o final de 2022. Há seis meses este mesmo mercado projetava a manutenção dos juros em 6,5% ao ano até meados de 2020, elevando-se para 9-9,5% ao ano ao longo de 2022.

Uma mudança desta magnitude reduz a pressão de aumento sobre a relação dívida-PIB, principal medida de solvência do setor público.

Esta razão é influenciada pelas taxas reais de juros (isto é, o excesso de taxa de juros sobre a inflação) e pelo crescimento do PIB. Juros superiores à inflação aumentam o numerador da fração, enquanto o crescimento do produto eleva seu denominador, reduzindo, portanto, a fração.

É possível mostrar que a estabilização da relação dívida-PIB requer um resultado primário (antes do pagamento de juros) aproximadamente igual à diferença entre a taxa real de juros e o crescimento do PIB. Considere, por exemplo, um país cuja relação dívida-PIB seja 80% e que pague uma taxa real de juros de, digamos, 4% ao ano. A cada ano, portanto, o juro real acrescenta 3,2% do PIB à dívida (0,04 x 0,80).

Caso este país cresça 1% ao ano, o aumento da economia tira 0,8% do PIB da dívida a cada ano (0,01 x 0,80), de modo que o resultado líquido da interação entre juro real e crescimento do PIB eleva a dívida ao ritmo de 2,4% do PIB por ano (3,2% - 0,8%). Para impedir que isto aconteça, o governo tem que produzir um superávit primário no mesmo montante, isto é, 2,4% do PIB, neutralizando o efeito da combinação juro-crescimento.

No caso do Brasil hoje, a dívida se encontra próxima a 80% do PIB, enquanto a Selic, como visto, deve ficar em 4,75%, contra a inflação na casa de 3,80%, ou seja, uma taxa real de juros de 0,9%. Assim, o efeito do juro real faria a dívida crescer pouco mais de 0,7% do PIB (0,009 * 0,80) no ano que vem.

Todavia, se o PIB crescer conforme o esperado, 2%, o impacto reduziria a dívida em valor equivalente a 1,6% do PIB (0,02 x 0,80). Neste caso, mesmo um déficit primário até 0,9% do PIB (0,7 – 1,6) bastaria para estabilizar a dívida.

Laura Carvalho fez uma conta semelhante, mas supondo crescimento do PIB de 1,2%, e concluiu que um superávit primário de 0,2% do PIB seria suficiente, o que, segundo ela, já seria obtido com “a reforma da previdência e a eliminação de subsídios, desonerações e supersalários”, sugerindo que reformas adicionais dos outros gastos obrigatórios seriam, portanto, desnecessárias.

Há, para começar, um erro de conta que revela a pouca intimidade com o tema.

Caso o crescimento seja 1,2%, seu impacto reduziria a dívida em pouco menos de 1% do PIB (0,012 x 0,80), enquanto a taxa de juros elevaria a relação em 0,7% do PIB. Isto significa que mesmo um déficit do 0,2% do PIB seria suficiente para manter a dívida na casa de 80% do PIB, no ano que vem. O erro mais grave, contudo, não é este.

Ocorre que o orçamento de 2020 projeta déficit primário de 1,6% do PIB, bem maior do que o valor consistente com a estabilidade da dívida. Assim, mesmo com a taxa de juros bem mais baixa, o fraco resultado primário não evitará que a dívida suba em 2020, elevando o sarrafo fiscal para os anos seguintes.

Aliás, como previsto pela Lei de Diretrizes Orçamentárias publicada em abril, os resultados primários em 2021 (-0,8% do PIB) e 2022 (-0,3% do PIB) também não seriam suficientes para impedir o crescimento da dívida naqueles anos, mesmo se a taxa de juros não subisse.

No entanto, como mencionado no começo do artigo, a Selic deverá subir para perto de 7% em 2021, contra uma meta de inflação de 3,75%, ou seja, a taxa real de juros atingiria um pouco mais de 3% ao ano.

Caso o crescimento da economia fique ao redor de 2% ao ano, o governo teria que gerar um superávit primário de 0,6% do PIB em 2022, também acima do projetado pela LDO. Mesmo se o crescimento médio fosse mais alto, 2,5-3,0%, a trajetória de resultados primários previstos na LDO ficaria aquém do requerido para estabilizar a dívida.

Apesar, portanto, da queda da taxa real de juros em comparação ao esperado meses atrás, o desempenho fiscal projetado – sob a hipótese de manutenção do teto de gastos – ainda não bastará para estabilizar a relação dívida-PIB nos próximos 3 anos pelo menos.

Engana-se quem acha que a reforma da previdência (e a eliminação de “supersalários”) resolveria o problema. Seu impacto apenas alinha o crescimento das despesas previdenciárias ao ritmo de expansão do produto, permitindo que o governo federal mantenha os chamados gastos discricionários em nível maior do que seria possível sem a reforma.

Sem reformas adicionais, o gasto federal seguiria determinado pela regra do teto, definindo a trajetória de resultados primários expressa na LDO, insuficiente, como vimos, para estancar o crescimento da relação dívida-PIB. Ou seja, neste caso a dívida seguiria uma trajetória crescente e insustentável.

Não há mágica que faça o Brasil escapar de um sério encontro com sua realidade orçamentária nos próximos anos.


Início das aulas em certo departamento de Economia no interior de São Paulo


(Publicado 9/Out/2019)

terça-feira, 8 de outubro de 2019

A Síndrome do Relógio Quebrado


A estabilização do dispêndio federal em decorrência do teto de gastos abre espaço para a redução adicional da taxa de juros. “Flexibilizar” o teto em nome de fins supostamente “nobres” limitaria esta possibilidade.


Não falta quem defenda a expansão do gasto público. Mesmo após os dados revelarem que a piora do endividamento do governo, 80% do PIB em agosto de 2019, resulta essencialmente da deterioração do resultado primário, em decorrência principalmente do aumento de despesas, afirma-se que maiores gastos, investimentos supostamente “focalizados”, acelerariam o processo de recuperação.

O argumento se encontra presente no artigo dos Defensores dos gastos, e também, surpresa, surpresa, na coluna de nelson barbooosa. Este último pede flexibilização do teto de gastos para permitir a elevação do investimento, mesmo reconhecendo (ao contrário de seus colegas), que tal decisão implicaria elevação do endividamento, notando que a economia ainda opera abaixo do potencial.

Pareceria razoável, não fosse a extensa “capivara” do ex(ainda bem!)-ministro, que essencialmente repete a mesma cantilena. Em qualquer circunstância, esteja ou não a economia operando perto de seu potencial, barbooosa defende aumento do investimento público, como por exemplo no final de 2009,  no final de 2010, no final de 2011, ou ainda em 2012, e isto só na primeira página de pesquisa do Google. Só para constar, ao longo de todo este período a economia estava ou próxima, ou (bem) acima de seu potencial, o que sugere que barbooosa sofre de um caso clássico da Síndrome de Relógio Quebrado.

Não se trata, é claro, do caso de hoje. Embora a recessão originária da aplicação da Nova Matriz tenha se encerrado em 2016, a recuperação é lenta e há evidência de uma economia operando bem abaixo do pleno-emprego, expresso na taxa de desemprego pouco inferior a 12%, enquanto nossas estimativas para a taxa “natural” de desemprego (bastante incertas, de qualquer forma) a colocam ao redor de 9-9,5%. Em tais circunstâncias, há espaço para crescimento da demanda, em particular da demanda interna, dada a desaceleração da economia global e a crise argentina.

Isto não significa que o melhor instrumento seja o aumento de gastos. Contrastando com países desenvolvidos, a taxa de juros básica no Brasil, 5,5%, ainda apresenta considerável potencial de redução, sinalizado, inclusive, pelo BC, tanto na Ata do Copom, quanto no Relatório Trimestral de Inflação, divulgados na semana passada. Conforme indicado pelo Relatório Focus, já se espera que a Selic caia a 4,75% ao ano no final de 2019 (a meu ver pode chegar a 4,5% ao ano e há possibilidade de queda adicional em 2020). Este caminho parece bem mais promissor.

A começar pelo seu efeito sobre o endividamento público. Ao contrário do gasto, que implica emissão adicional de dívida (como barbooosa admite, mas os Defensores ainda não), menores taxas reais de juros reduzem o ritmo de crescimento da dívida e permitem sua estabilização mesmo com superávits primários mais reduzidos (ou mesmo com déficits primários, caso caiam abaixo do crescimento do PIB).

Adicionalmente, os efeitos da taxa de juros sobre a demanda interna atuam tanto pelo lado do consumo das famílias, quanto do investimento, ao aumentar o valor presente dos lucros associados a este último, o grande ausente no processo de recuperação. Em oposição ao investimento público, sujeito a decisões políticas para lá de questionáveis, bem como a processos licitatórios complicados e demorados (mais demorados, diga-se, do que a resposta da demanda à taxa de juros), o investimento privado se pauta pelo retorno, o que costuma gerar resultados bem melhores do ponto de vista de crescimento e bem-estar.

Curiosamente, barbooosa – mesmo admitindo que a contração fiscal ajuda a reduzir a Selic – argumenta em favor da “diversificação” para, mais uma vez, defender maiores gastos. Deveria começar notando que sua própria admissão implica reconhecer que a expansão fiscal limita o espaço para a queda da Selic. Não se trata, portanto, de reduzir a Selic no mesmo montante que se espera sob as regras correntes, mas menos do que seria possível. Não sei, não, mas parece que há alguém aqui a defender os “rentistas” ...

De qualquer forma, trata-se de argumento para lá de frágil, porque implicaria, como, aliás, também admitido por barbooosa, mudar o teto de gastos, supostamente em nome de fins que ele considera “nobres”. Isto abriria precedentes para outros gastos também “nobres”. Que tal educação? E saúde? E aposentadorias? Como notado por Samuel Pessoa em sua última coluna, “grupos organizados conseguem com facilidade pressionar o Congresso a aprovar medidas que os beneficiam em detrimento do bem comum”. Neste contexto, é o teto de gastos que explicita as tensões orçamentárias e torna mais difícil a vida dos lobbies.

Em suma, o caminho para a recuperação passa pela redução dos juros, hoje possível porque a inflação se encontra abaixo da meta, em boa parte por força da mudança na dinâmica de gastos públicos que se seguiu à aprovação do teto. Temos uma oportunidade inédita de finalmente trazer a taxa de juros para níveis similares aos de nossos pares e não devemos desperdiçá-la em nome de relógios quebrados, que marcam as horas erradas infinitas vezes ao dia.

Correção

Em minha última coluna a discriminação entre despesas obrigatórias e discricionárias estava errada. Foi apontado que a série de despesas discricionárias se iniciava apenas em 2010, o que tornava inválida a média calculada para o período 2007-13.

Agradeço a Pedro Rossi, Esther Dwek e asseclas pela correção, notando que ela não invalida a conclusão que o aumento das despesas primárias representa 64% da piora do resultado primário no período 2014-18 medido como proporção do PIB, conforme argumentado.

Refazendo as contas para o período 2010-13 (tabela abaixo) vê-se que as conclusões permanecem: o aumento de despesa explica a maior parte do aumento do déficit (58%). Nota-se também que o aumento das despesas obrigatórias teve impacto ainda maior do que as despesas totais (69% do aumento do déficit), parcialmente compensado pela redução das despesas discricionárias.



2010-13
2014-18
Variação
% D prim.
Receita total
22,6
21,2
-1,4
41
Transferências
3,5
3,5
0,0
0
Despesa total
17,3
19,4
2,0
58
  Obrigatória
14,8
17,2
2,4
69
  Discricionária
2,5
2,1
-0,4
-11
Ajustes (Fundo Soberano, Itaipu, etc.)
0,1
0,1
0,0
1
Resultado primário do governo central
1,8
-1,7
-3,5
100,0

Apenas lamento que o mesmo não possa ser dito acerca das conclusões da dupla e demais autores, que permanecem invalidadas pelos argumentos apresentados em minhas colunas anteriores, a saber: (1) a confusão entre emissão líquida e superávit primário; (2) a confusão entre crescimento nominal e real do PIB, que leva à superestimação do impacto do crescimento por incorporar a este indevidamente o efeito da inflação; e (3) a confusão entre taxas percentuais de crescimento de despesas/receitas e o crescimento absoluto de despesas/receitas, que os impediu de ver que o aumento das despesas explica a maior parte da piora do desempenho primário.




(Publicado 2/Out/2019)

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Ao enganador, as batatadas


No terceiro capítulo da série mostramos que o aumento do gasto público, tanto no caso do governo federal, como no caso dos governos locais, foi a principal causa da deterioração do resultado primário e, portanto, do aumento da dívida.


O artigo dos Defensores do Gasto Público, analisado nas minhas colunas mais recentes, afirma que:

O resultado primário, que se manteve positivo ao longo de quase todo aquele período, teve um impacto próximo de zero para explicar a [estabilidade] da dívida” e que “os déficits primários, por sua vez, invertem o sinal da contribuição, mas respondem por apenas 0,5 p.p. do PIB/ano do aumento da dívida bruta ao longo do período [2015 a 2018];

Esta primeira afirmação resulta de um erro grosseiro dos Defensores, que confundiram emissões líquidas, conceito que incorporava, entre outras coisas, as emissões de dívidas para bancos oficiais e compra de reservas internacionais (ver tabela abaixo) com o resultado primário do governo geral (União, estados e municípios).

1 - Fatores condicionantes da evolução da dívida bruta do Governo Geral - % PIB

Total
Média anual

2007-13
2014-18
2007-13
2014-18
Juros nominais
40,5
33,7
5,8
6,7
Emissões líquidas
-4,0
4,8
-0,6
1,0
   Emissões para bancos oficiais
9,3
-4,2
1,3
-0,8
   Resultado primário do Governo Geral
-18,0
7,0
-2,6
1,4
   Operações com reservas internacionais
11,2
0,3
1,6
0,1
   Demais
-6,5
1,6
-0,9
0,3
Reconhecimento de dívidas
0,7
0,3
0,1
0,1
Impacto de variações cambiais
0,1
1,7
0,0
0,3
Efeito do crescimento do PIB real
-13,4
2,3
-1,9
0,5
Efeito da inflação
-26,8
-17,4
-3,8
-3,5
Efeito cruzado PIB real x inflação
-1,1
0,2
-0,2
0,0
Variação da dívida
-3,9
25,7
-0,6
5,1
Memorando:
 Juros reais (Juros nominais (-) Efeito da inflação)
13,7
16,3
2,0
3,3
      Fonte: Cálculos do autor, com dados do BCB

Como se vê, os superávits primários no período 2007 a 2013 abateram em média 2,6% do PIB por ano da dívida bruta, enquanto os déficits primários registrados entre 2014 e 2018 adicionaram 1,4% do PIB por ano à dívida bruta.

Adicionalmente os autores confundiram crescimento nominal com crescimento real do PIB. O primeiro inclui a inflação, no caso medida pelo deflator implícito do PIB, distorcendo os cálculos. Conforme mostrei em minha última coluna (e detalhado na tabela acima), o crescimento real do produto teve impacto menor do que os superávits primários para a redução da dívida entre 2013 e 2017 (1,9% do PIB por ano contra 2,6% do PIB por ano), enquanto a queda do PIB entre 2014 e 2018 teve efeito menor para a elevação da dívida do que os déficits primários (0,5% do PIB por ano contra 1,4% do PIB por ano). Por fim, o efeito da inflação foi grande nos dois momentos analisados: reduziu a dívida em respectivamente 3,8% e 3,5% do PIB por ano.

Já a terceira tese dos Defensores é que o aumento do gasto público não é a causa do déficit primário porque:


Esta afirmação, para variar, também está errada. A taxa de crescimento mede a velocidade do aumento das despesas, que, de fato, caiu no período mais recente, mas seguiu positiva, isto é, os gastos continuaram a aumentar. A tabela abaixo mostra a evolução de receitas e gastos do governo central (apenas um dos integrantes do governo geral, mas para o qual temos informações mais detalhadas) medidos como proporção do PIB.

2 - Resultado primário do governo central - % PIB

2007-13
2014-18
Variação
% D prim.
Receita total
22,6
21,2
-1,5
41
Transferências
3,7
3,5
-0,1
-3
Despesa total
17,1
19,4
2,3
64
Ajustes (Fundo Soberano, Itaipu, etc)
-0,4
-0,3
0,1
-3
Resultado primário do governo central
1,5
-2,0
-3,5
100
              Fonte: Cálculos do autor, com dados da STN

A despesa primária aumentou de 17,1% do PIB no período de superávits primários (2007 a 2013) para 19,4% do PIB no período de déficits primários (2014 a 2018), salto de 2,3 pontos percentuais do PIB, dos quais 1,9 pontos percentuais do PIB se devem à expansão das despesas obrigatórias. Receitas caíram, é verdade, mas o aumento de despesas, como mostrado acima, representa 64% da piora do desempenho primário (3,5 pontos percentuais do PIB). Vale dizer, o crescimento das despesas é o principal responsável pelo ressurgimento de déficits primários e, portanto, do aumento da dívida.

Cabe notar, porém, que o encolhimento do PIB entre 2013 e 2018 explica parcela do aumento das despesas medidas como sua proporção, já que o denominador da fração fica menor. Para checar o resultado examinamos também os dados medidos a valores constantes, trazendo-os para preços médios de 2018.

3 - Variação do resultado primário do governo central – R$ bilhões de 2018

Total
Média
% var.

2007-13
2014-18
2007-13
2014-18
primário
Receita total
347,3
-91,9
49,6
-18,4
42
Transferências
38,7
13,6
5,5
2,7
6
Despesa total
322,5
115,3
46,1
23,1
53
Ajustes (Fundo Soberano, Itaipu, etc)
-1,7
3,9
-0,2
0,8
-2
Resultado primário do governo central
-15,6
-216,8
-2,2
-43,4
100
      Fonte: Cálculos do autor, com dados da STN e IBGE

A tabela acima mostra a variação do resultado primário entre os anos de 2007 e 2013 e de 2014 a 2018. No segundo intervalo, quando o superávit se transformou em déficit (variação negativa de R$ 217 bilhões), as despesas aumentaram R$ 115 bilhões, enquanto as receitas caíram R$ 92 bilhões. Muito embora o crescimento médio das despesas (R$ 23 bilhões por ano) tenha sido mais lento do que no período anterior (R$ 46 bilhões/ano), ele representou mais da metade (53%) da piora observada do resultado primário.

Em outras palavras, o aumento das despesas foi o principal fator de piora do resultado primário, ao contrário do afirmado pelos Defensores, erro que, em última análise, decorre do entendimento equivocado de velocidade e aceleração, ou seja, confusão entre primeira e segunda derivadas, resultado de formação deficiente em Cálculo I.

Reforçando este ponto, as tabelas seguintes fazem o mesmo exercício para o governo geral (incluindo, além do governo federal, governos estaduais e municipais), embora para um intervalo mais curto, a partir de 2010, quando a série calculada pelo Tesouro Nacional se inicia.

4 - Despesas primárias do governo geral - % PIB

2010-13
2014-18
Variação
Despesas primárias
34,9
38,4
3,5
  Remuneração de empregados
11,9
13,0
1,1
  Uso de bens e serviços
5,5
5,4
0,0
  Subsídios
0,3
0,4
0,1
  Transferências / Doações
0,0
0,1
0,0
  Benefícios sociais
13,8
16,7
2,8
  Outras despesas
1,2
1,4
0,2
  Investimento líquido em ativos não financeiros
2,2
1,5
-0,7
                  Fonte: Cálculos do autor, com dados da STN

Assim, no período de déficits primários as despesas dos três níveis de governo cresceram de 34,9% para 38,4% do PIB (aumento de 3,5 pontos percentuais do PIB), dos quais 2,8 pontos percentuais do PIB se devem benefícios sociais (principalmente previdência, tanto INSS quanto os regimes próprios do funcionalismo), enquanto 1,1% do PIB reflete o aumento de gasto com pessoal. No sentido contrário temos o corte do investimento público, ou seja, a mesma dinâmica observada no caso do governo federal.

Apresentando os dados em valores constantes de 2018 (novamente usando o deflator do PIB) temos a seguinte tabela.

5 - Despesas primárias do governo geral – R$ bilhões de 2018

2010
2013
2018
2010-13
2013-18
Despesas primárias
2.322,5
2.537,7
2.722,2
215,2
184,5
  Remuneração de empregados
801,1
865,5
917,2
64,4
51,8
  Uso de bens e serviços
367,2
383,7
371,2
16,5
-12,5
  Subsídios
19,0
34,3
24,6
15,3
-9,7
  Transferências / Doações
1,7
2,5
3,6
0,8
1,1
  Benefícios sociais
920,0
1.012,2
1.213,5
92,2
201,3
  Outras despesas
77,0
90,2
101,6
13,1
11,5
  Investimento líquido em ativos não financeiros
136,5
149,3
90,5
12,8
-58,9
         Fonte: Cálculos do autor, com dados da STN e IBGE

Assim, o conjunto das despesas primárias dos 3 níveis de governo aumentou R$ 185 bilhões (R$ 37 bilhões/ano) no período de déficits primários. As fontes de aumento, como notadas acima foram benefícios sociais (ou seja, previdência) adicionando R$ 201 bilhões, e o funcionalismo, R$ 52 bilhões.

Para controlar do dispêndio total os 3 níveis de governo reduziram o investimento, R$ 59 bilhões, e o uso de bens e serviços (por exemplo, merenda, medicamentos, materiais), R$ 13 bilhões, ou seja, diminuindo a provisão de serviços à população.

O padrão que emerge dos dados é, portanto, muito claro. A piora do resultado primário derivou, ao contrário do afirmaram os Defensores, do aumento do gasto, não só no caso do governo federal, mas também dos governos locais. Este, por sua vez, provém das despesas obrigatórias, o que fica patente quando examinamos o dispêndio primário do governo geral, em que previdência e funcionalismo representam a parte do leão (quase 80% do total de despesas primárias em 2018), às expensas dos serviços prestados à população e dos investimentos públicos.

Esgotados os erros contábeis, examinarei no próximo capítulo os não menos graves erros econômicos.

NOTA:

Este artigo foi corrigido, quando foi apontado ao autor que a série de despesas discricionárias se iniciava apenas em 2010, o que tornava inválida a média calculada para o período 2007-13. Ao auto agradece a Pedro Rossi e Esther Dwek pela correção, notando que ela não invalida a conclusão que o aumento das despesas primárias representa 64% da piora do resultado primário no período 2014-18 medido como proporção do PIB. Lamenta também que o mesmo não possa ser dito acerca das conclusões da dupla e demais autores, que permanecem invalidadas pelos argumentos apresentados neste artigo, a saber: (1) a confusão entre emissão líquida e superávit primário (que altera as estimativas da contribuição do esforço – e da falta de esforço – fiscal para a dinâmica da dívida pública; (2) a confusão entre crescimento nominal e real do PIB, que leva à superestimação do impacto do crescimento por incorporar a este indevidamente o efeito da inflação; e (3) a confusão entre taxas percentuais de crescimento de despesas/receitas e o crescimento absoluto de despesas/receitas, que os impediu de ver que as despesas, como notado acima, representam 64% da piora do resultado primário

(Publicado 25/Set/2019)