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terça-feira, 30 de outubro de 2007

Nanismo e as quatro operações

Poucas coisas me alegram tanto quanto escrever esta coluna. Tenho que dizer, porém, que, até hoje, nada se compara à satisfação de ler a reação de João Sicsú a meu último artigo, não apenas por confessar publicamente ter subestimado a inteligência do público, mas principalmente pela sua incapacidade de contrapor qualquer argumento aos pontos que destaquei. Sua única resposta foi afirmar, envolto em pretensa ironia, que sou bobo, feio, mau e chato, o que, cá entre nós, é muito pouco, até para Sicsú.

De fato, o máximo que consegue é repetir o mesmo argumento nanico: temos poucos fiscais de impostos relativamente à área e à população (em breve vai fazer a mesma conta com relação ao perímetro e, fracassando esta, com relação à profundidade da plataforma continental). Peço, pois, perdão ao leitor por ter que explicar o óbvio, mas parece haver mesmo certa dificuldade de compreensão.

Não adianta escolher (nada aleatoriamente, diga-se) uma estatística específica e apresentá-la como evidência de nanismo do setor público. Ela pode, no máximo, ser sintoma de dificuldades de um segmento particular e, mesmo assim, convido os eventuais leitores a procurarem em meu blog os comentários enviados for um fiscal que contesta os argumentos sicsunianos (entre outras coisas ele diz que, sim, a grande maioria dos fiscais "trabalha em escritórios refrigerados em uma vintena de localidades no país que concentram 99% de todo o fluxo comercial brasileiro").

Quem pesquisa o real tamanho do setor público no Brasil e conhece seus números sabe que a história contada por eles não casa com a anedota sicsuniana (por que será?). Assim, nos anos que antecederam a estabilização da inflação (de 1991 a 1994), o gasto primário de União, estados e municípios era, em média, 21,7% do PIB; entre 2003 e 2006 atingiu 29,5% do PIB. Em 2006 alcançou, por baixo, 31% do PIB e novos recordes serão batidos ainda este ano.

Comparando o aumento do PIB e o aumento do gasto entre 1994 e 2006 conclui-se que crescimento do gasto correspondeu a 51% do produto adicional, o que também não condiz com a noção de nanismo estatal. Não é difícil, pois, concluir que aumento do gasto primário é o principal fator de aumento da carga tributária (de 23,8% do PIB para 33,1% no mesmo período, um acréscimo de 9,3% do PIB).

Por outro lado, o gasto com juros (deduzida a inflação) aumentou de 3% do PIB para 5,4% do PIB entre 1991/94 e 2003/06, muito menos do que os gastos primários. Além disto, nos 12 meses terminados em setembro deste ano já haviam caído para 3,8% do PIB, enquanto os gastos primários e a carga tributária seguem sua inexorável expansão.

Só a renúncia completa às regras da aritmética poderia implicar uma conclusão que não apontasse para um inchaço extraordinário do setor público nos últimos 13 anos, sem contrapartida na qualidade dos serviços públicos. E não será o apelo a um número escolhido a dedo que irá mudar esta triste realidade.

Por fim, em troca da satisfação que me deu, ofereço a Sicsú uma pequena lição de etiqueta governamental que ele, neófito, certamente desconhece: não é de bom tom criticar publicamente uma decisão de governo, como fez ao qualificar como "absurda" a resolução do BC de manter inalterada a Selic, ainda mais se considerarmos que argumentos pertinentes a esta matéria requerem o domínio total das quatro operações.

(Publicado 31/Out/2007)

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Inteligência nanica

Nunca entendi porque a banana nanica tem este nome, já que quase todas as outras bananas são bem menores do que ela. Há pouco, porém, tive uma epifania. Segundo artigo publicado recentemente nesta Folha o estado brasileiro é nanico, o que me trouxe uma revelação inesperada: “nanico”, seguindo as regras do duplipensar orwelliano, deve ser exatamente o contrário do que nos informam os dicionários (pequeno, acanhado), resolvendo o mistério milenar que cercava tão saboroso fruto.

No artigo o autor apresentou um trabalho empírico sólido para caracterizar a pequenez do Estado nacional: enquanto a Bélgica e a Holanda apresentam respectivamente 310 e 227 fiscais de impostos por 1.000 km2, o Brasil tem apenas 0,9. Por este raciocínio, o país deveria ter entre 1,9 e 2,6 milhões de fiscais de impostos, alguns dos quais responsáveis pelas áreas densamente povoadas da Reserva Raposa do Sol, garantindo que se respeite o sagrado direito dos ianomâmis pagarem impostos (mesmo porque os fiscais terão que ser pagos, não?).

Trata-se de uma revolução analítica: ao invés de normalizarmos as variáveis macroeconômicas (gasto, tributação, investimento) pelo PIB, passaremos agora a fazê-lo pela área. Graças a isto o Brasil, em vez de simplesmente ganhar o grau de investimento, passará direto à categoria AAA (mínimo risco) quando a dívida pública for medida com relação à extensão territorial.

Não mais teremos que explicar como o funcionalismo (federal, estadual e municipal) consome cerca de 15% do PIB, nem como um país com apenas 5% da população acima de 65 anos consegue gastar quase 14% do PIB em aposentadorias e pensões, o equivalente ao que gastam países com uma proporção de idosos três vezes superior à nossa. Outras comparações vexatórias, como o fato do consumo público (pela definição de contas nacionais) atingir 20% do PIB, contra uma média de 13% do PIB no caso dos demais países grandes da América Latina, também perderão o sentido. A fúria neoliberal terá que ser dirigida a Vanuatu, Singapura e ao Vaticano, com perdão do Santo Padre.

Também ignoraremos que os gastos primários do setor público, incluindo transferências a pessoas, aumentaram cerca de 8% do PIB entre 1994 e 2006 (de 23% para 31% do PIB), trazendo consigo a carga tributária, que subiu 7% do PIB (de 27% para 34% do PIB, apesar da aguda escassez de fiscais) no mesmo intervalo. Afinal, basta se espalhar um pouco mais pela Amazônia...

Mas não. Se levarmos este raciocínio às últimas conseqüências, o gasto com juros também terá que ser medido com relação à área, e aí ficará difícil criticar o Banco Central. O melhor mesmo é usar dois pesos e duas medidas, e, de preferência, ignorar que o gasto com juros tem caído em relação ao PIB, sem mencionar, é claro, que a trajetória de queda da inflação no período pode ter algo a ver com a política monetária. E, óbvio, nem pensar nas implicações de uma taxa baixa de inflação em termos de bem-estar, seja pela estabilidade de renda real, seja pelo renascimento do mercado de crédito de longo prazo.

Como última alternativa, poderíamos simplesmente aceitar o mistério da profunda conexão entre o estado nanico e a banana nanica, jamais apreendida sequer por mestre Aurélio Buarque de Holanda. Só é preciso desenvolver a inteligência nanica necessária para a digestão de uma balela nada nanica.

(Publicado 17/Out/2007)

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Na rota do tinhoso

Nada hoje preocupa mais um (autodenominado) “desenvolvimentista” do que a possibilidade do BC interromper o ciclo de queda de juros. Assim, não chega a ser surpreendente que a cada sinal de elevação da inflação chovam declarações do tipo “é só o preço dos alimentos”, “os investimentos vão subir e reduzir a inflação”, e outras do gênero fantasia. Mais recentemente, um argumento que tem aparecido – a ponto de merecer a duvidosa honra de ser negado em plena Ata do Copom – refere-se ao aumento do preço dos alimentos e seus efeitos sobre a renda real.

Segundo este raciocínio, preços mais elevados de comida reduziriam a renda real e, portanto, o consumo, de modo que o BC não precisaria se preocupar com o ritmo de expansão da demanda e poderia seguir baixando a taxa básica de juros. Obviamente, ninguém associa qualquer número ao argumento (quanto cairia o consumo, por exemplo), mantendo a tradição de fugir da quantificação como o canhoto foge da cruz, mas hoje nem precisarei entrar neste aspecto para mostrar que esta lógica não se sustenta.

Noto, de início, que preços de alimentos mais altos resultam de um choque de demanda, não da contração da oferta (“Bebida é água; comida é pasto”, 5/9/2007), o que é visível pela expansão simultânea de preços e quantidades. Obviamente, isto não é consolo algum para o consumidor, dado que sua renda real, ou seja, a quantidade de coisas que sua renda permite comprar, certamente se contrai à medida que preços de alimentos se tornam mais altos, independente da razão última do aumento dos preços.

No entanto, a origem da elevação dos preços faz toda diferença para o produtor de alimentos. Em particular, se a alta de preços resulta da elevação da demanda, a renda real dos produtores de alimentos crescerá. Resta saber qual destes efeitos prevalecerá: a queda da renda real dos consumidores ou a maior renda dos produtores.

Deixando de lado efeitos de segunda ordem estes impactos se compensariam: o ganho de renda dos produtores de alimentos corresponderia à perda dos consumidores de alimentos e alguém teria que fazer cálculos bastante complicados para saber qual o efeito final sobre a demanda, que, em qualquer caso, seria pequeno.

O Brasil, porém, é um exportador líquido de alimentos. Isto significa que – quando sobem os preços de alimentos – consumidores estrangeiros transferem liquidamente uma fração da sua renda para os produtores brasileiros, ou seja, há uma elevação da renda nacional, resultado precisamente oposto ao advogado pelos “desenvolvimentistas”.

Em outras palavras, não há porque imaginar que preços de comida mais altos impliquem uma redução do consumo em geral (ainda que o consumo doméstico de alimentos possa cair). Pelo contrário, a elevação da renda nacional deverá induzir a um crescimento maior do consumo, ainda que este efeito deva ser ponderado, obviamente, pelo saldo na balança comercial de alimentos proporcionalmente ao PIB.

De qualquer forma, é curioso como visões pré-concebidas acerca da política monetária levam a proposições cuja coerência interna não se sustenta. Economistas ditos progressistas comemoraram a queda do salário real e em breve afirmarão que a inflação mais alta é mais um motivo para baixar a taxa de juros, pois reduz a renda real e o consumo. Fogem da lógica como correm dos números, nos calcanhares do tinhoso.