O orçamento imaginário recentemente aprovado representa mais um passo na desconstrução institucional do país.
Não bastasse a demora em sua aprovação, já no fim de março, quase às vésperas da apresentação da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2022, o orçamento do governo federal – que sempre flertou com a ficção – virou agora uma peça de literatura fantástica.
Já se sabia que o projeto inicial, enviado em agosto do ano passado, havia se tornado obsoleto, à luz, por exemplo, da elevação do salário mínimo bem maior que a originalmente proposta (R$ 1.100,00 contra R$ 1.067,00). No conjunto da obra, estimava-se defasagem de R$ 17,6 bilhões no conjunto das despesas. A tal montante soma-se agora a subestimação dos gastos obrigatórios (benefícios previdenciários, abono salarial, seguro desemprego, dentre outros) de R$ 26,5 bilhões, ou seja, um total de R$ 44 bilhões.
Obviamente, dada a “folga” orçamentária assim criada, parlamentares cuidaram de ocupar o espaço na forma de emendas para atender suas bases políticas, cuja execução, a propósito, passou a ser obrigatória. A moral da história é que o volume de gastos, se executado de acordo com o projeto aprovado, deve extrapolar o teto de gastos em R$ 44 bilhões, lembrando que o auxílio emergencial recriado há pouco não está incluído neste limite.
Para evitar tal resultado, sem alterar a lei orçamentária, a alternativa restante seria o corte dos gastos discricionários, ligados ao funcionamento da máquina pública e ao cada vez mais esquálido investimento federal (exceto, claro, na área militar), cuja consequência seria o risco de paralisia das operações do governo (apesar da tentação, não, não é uma boa ideia).
O interessante no caso é que, do ponto de vista formal, o teto de gastos continua respeitado, seja pela exclusão do auxílio emergencial (o que é correto), seja pela subestimação das despesas, que, na falta de melhor expressão, é uma brincadeira de péssimo gosto.
Com isso, sem medidas compensatórias, o déficit primário, orçado em cerca de R$ 250 bilhões (3,1% do PIB), atingiria quase R$ 300 bilhões (3,8% do PIB), o segundo maior da série histórica, inferior apenas ao registrado no ano passado. Apesar da retórica, seja de governo, seja da oposição, o tal “austericídio” também deve ser classificado como literatura fantástica, merecendo talvez um dos capítulos do Livro de Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, ao lado da Banshee e do A Bao a Qu.
O teto de gastos está, portanto, sendo comido pelas bordas. É bem verdade que o IPCA medido em 12 meses até junho deste ano deve ficar bem alto, ao redor de 7,5%, o que permitirá aumento do teto de gastos para 2022 na mesma proporção, dando fôlego adicional à medida. É clara, porém, a fadiga política com o instrumento, mesmo notando que, desde sua criação, só tenha sido integralmente respeitado nos seus dois primeiros anos, 2017 e 2018.
A “tecnologia” para driblar os limites orçamentários sempre foi uma área de pesquisa de ponta no país, como aprendemos com as pedaladas de Guido Mantega, Arno Augustin e sequazes. Não é diferente agora.
Sempre soubemos que, na ausência de medidas que limitem o aumento do gasto obrigatório, o teto seria inviável. Não digo isso agora; ao contrário, ainda antes de sua aprovação no final de 2016, já escrevia que “[ele] apenas explicita limites à despesa pública, que, na ausência de uma discussão adicional e mais profunda sobre a rigidez do gasto, condenam [sua] própria existência”.
O Congresso ainda não ousa revogar o mecanismo, talvez receoso da reação negativa do dólar e dos juros, como pudemos brevemente observar quando do balão de ensaio sobre a retirada do Bolsa-Família do teto. Todavia, a cada dia, como uma criança pequena, testa seus limites, lentamente desconstruindo – como já foi feito com a Lei de Responsabilidade Fiscal, ou com a reestruturação das dívidas estaduais no final dos anos 90 – todo arcabouço institucional que limite a voracidade do poder público.
(Publicado 31/Mar/2021)
1 comentários:
Paulo Guedes, hoje, em live, com participação do economista-chefe da XP, mencionou a possibilidade de investimentos a virem de diversas origens. Exemplificou com os IPOs bilionários na bolsa de valores. Pergunta de alguém não mais que um curioso na complexa seara econômica: isso não seria trocar seis por meia dúzia? Os capitais não teriam que migrar necessariamente da dívida pública ou dívidas privadas para o mercado acionário? O mesmo não se aplicaria às concessões ou privatizações? Os capitais (bilhões de bilhões) sonhados pelo ministros não teriam que vir de fontes externas? Os investidores, caso interessados nesses ativos, poderiam ir ao mercado Internacional, mas os custos dessas capitações não seriam demasiadamente altos em razão do país não possuir grau de investimento? Em síntese, qual a sua posição em relação a esse tema?
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