Muito embora a resposta fiscal à crise
seja essencialmente correta, suas consequências para o retorno a algum
equilíbrio fiscal à frente requerem esforço de correção de rumos ainda maior do
que imaginávamos há pouco. A lógica do conflito que guia hoje a relação entre
os poderes não nos permite antever uma solução para esse problema.
Nos
meus momentos fatalistas me pergunto se nossa sorte já foi lançada. Tenho
certeza que não estávamos a um milímetro do Paraíso no começo do ano, mesmo
porque o cenário de reformas permanecia, no mínimo, nublado, mas, ao mesmo
tempo, tudo convergia para um desempenho econômico mais sólido, que, com um
tanto de sorte e outro ainda maior de trabalho, poderia redundar numa
trajetória de reequilíbrio fiscal e expansão mais rápida num futuro não tão
distante. Jamais saberemos.
A
crise sanitária e suas decorrências econômicas, porém, podem ter fechado esse
caminho. Como escrevi na semana passada, muito embora as medidas adotadas
apontem para a direção correta (a magnitude deverá ser calibrada à luz de nova
informação), suas implicações pela ótica fiscal são consideráveis. A dívida do
governo, que fechou o ano passado na casa de 76% do PIB e se esperava subir
modestamente para 78% do PIB no final de 2020, pode atingir cerca de 90% do PIB
nesse horizonte, talvez até mais a depender do que sair dos escombros do Plano
Mansueto.
Ao
mesmo tempo as chances de avançarmos com temas como a PEC emergencial, a PEC do
pacto federativo, a reforma administrativa e a reforma tributária caíram
consideravelmente. Em parte porque as energias do Congresso e da parcela pensante
do governo estão, justificadamente, focalizadas em problema ainda mais urgente,
mas também porque, ao invés de aproveitar a crise para unir o país, o
presidente dobrou a aposta no conflito.
Há
paralelos desconfortáveis com a situação vivida por Dilma Rousseff no começo de
seu segundo mandato, seja no que se refere à incompetência pessoal, seja pela
dificuldade de relacionamento com o Congresso.
Mantenho
a crença que a intensidade inédita da recessão vivida a partir de 2015 (embora
tenha se iniciado ainda em 2014) pode ser atribuída em grande medida à
percepção generalizada que a administração não teria, como não teve, condições
de avançar na agenda que revertesse o desastre gerado pela Nova Matriz, tanto
no campo fiscal, como por conta de suas intervenções avassaladoras no domínio
econômico (a devastação no setor elétrico, a ruína da Petrobras, o desperdício
de recursos no fomento a campeões nacionais, para ficar apenas nos tópicos mais
visíveis).
Tenho
hoje visão semelhante. Se, de fato, a dívida chegar a patamares próximos ao
mencionado acima, não é difícil concluir que o esforço fiscal para conter o
endividamento deverá se materializar na forma de um superávit primário na casa
de 1% do PIB em termos permanentes, possivelmente até mais.
Mesmo
que consigamos retornar, em 2021 e 2022, aos níveis que atingimos, com
sacrifícios, no ano passado (um déficit primário recorrente próximo a 2%, como
mostrado na tabela abaixo), o que não está de forma alguma garantido, ainda
precisaríamos cobrir uma distância equivalente a 3% do PIB, algo como R$ 220
bilhões em dinheiro de hoje.
Resultado
do governo geral – % PIB (anos selecionados)
2010
|
2014
|
2015
|
2016
|
2019
|
|
Receita
|
39,0
|
38,5
|
40,4
|
41,2
|
42,4
|
Despesa
|
40,6
|
43,4
|
49,1
|
48,8
|
48,2
|
Remuneração de empregados
|
11,9
|
12,3
|
12,9
|
13,0
|
13,3
|
Uso de bens e serviços
|
5,4
|
5,3
|
5,1
|
5,3
|
5,3
|
Consumo de capital fixo
|
1,3
|
1,4
|
1,5
|
1,5
|
1,6
|
Juros
|
7,0
|
7,5
|
11,9
|
10,0
|
7,3
|
Subsídios
|
0,2
|
0,5
|
0,4
|
0,5
|
0,2
|
Transferências / Doações
|
0,0
|
0,1
|
0,0
|
0,1
|
0,0
|
Benefícios sociais
|
13,7
|
14,8
|
15,6
|
16,9
|
18,4
|
Outras despesas
|
1,1
|
1,5
|
1,6
|
1,7
|
2,0
|
Investimento líquido em ativos não
financeiros
|
1,4
|
0,9
|
0,1
|
(0,1)
|
(0,4)
|
Superávit (+)/Déficit (-)
|
(3,0)
|
(5,8)
|
(8,8)
|
(7,5)
|
(5,5)
|
Superávit (+)/Déficit (-) primário
|
2,1
|
(0,4)
|
(0,4)
|
(1,5)
|
(0,5)
|
Superávit (+)/Déficit (-) primário
recorrente
|
0,9
|
(1,5)
|
(1,7)
|
(3,9)
|
(2,0)
|
Fonte:
STN (estimativa do resultado recorrente do autor)
Trabalho
recente da Instituição Fiscal Independente
(IFI), uma referência no tema, ilustra o problema. Em novembro do ano passado,
o cenário-base da IFI projetava estabilização da dívida entre 80-81% por volta
de 2022-2014; à luz, porém, dos desenvolvimentos recentes, a dívida seguiria
crescendo mais rapidamente que o PIB pelo menos até 2030, quando atingiria 100%
do PIB, não tanto pelo nível em si, mas pela persistente elevação do
endividamento num horizonte de 10 anos.
Não
é necessário tomar tais projeções ao pé da letra, nem é, acredito, o cerne da
mensagem, mas sim que o cenário se tornou imensamente mais desafiador do que
esperávamos há pouco.
Nesse
sentido, o crucial é sabermos se nossas instituições políticas se encontram à
altura do desafio. Hoje, estou convicto que não: a lógica de conflito dificulta
demais a construção de maiorias sólidas em matérias complexas como as reformas
fiscais, em contraste com o quase consenso agora existente quanto às mudanças
constitucionais para enfrentar a crise sanitário-econômica.
Se
meu entendimento estiver correto, já cruzamos o Rubicão da sustentabilidade
fiscal.
(Publicado 15/Abr/2020)
4 comentários:
Esses soldados vao conquistar Roma e assumir uma divida de 100% do PIB.
Chama o Meirelles - agora que o trem descarrilhado pode atropelar o excelente Paulo Guedes. São os votos de quem votou nele (1%).
No Blog do IBRE tem um artigo sobre a decadência do presidencialismo onde a palavra LULA mão aparece!
Alex,
Como a dinâmica inflacionária se materializa em um cenário de desequilíbrio fiscal? Eu entendo que se o governo optar por monetizar o déficit ele perde o controle da política monetária e da inflação. Mas e se rolar um calote? Entendo que trata-se de uma opção trágica, mas seria possível não produzir um estalo inflacionário nesse caso, a despeito de outras consequências nefastas?
A propósito, a expectativa de inflação já seria desancorada assim que ficasse claro para o mercado que o governo não iria honrar seus compromissos, certo? Isso seria independentemente do tipo de saída que se avizinhasse, calote ou monetização?
abs, Zamba
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