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quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A batata de Bagehot

Leitores da The Economist conhecem a coluna Bagehot, assim batizada em homenagem ao editor-chefe da revista entre 1861 e 1877, Walter Bagehot. Foi ele, em seu livro Lombard Street, quem resumiu a doutrina que ainda hoje é um dos guias das políticas de auxílio de liquidez por parte de bancos centrais. Segundo ele, BCs devem disponibilizar um volume ilimitado de recursos a instituições financeiras que estejam sofrendo problemas de caixa, mas sob as seguintes condições: (a) a instituição deve estar solvente, isto é, seus ativos devem ser, no mínimo, suficientes para pagar depositantes e credores; (b) os empréstimos devem ser feitos contra garantias de boa qualidade; e (c) o BC deve cobrar uma taxa elevada de juros, para estimular a instituição a buscar recursos privados o quanto antes. [Comentário do Ronald: Apenas uma pequena imprecisão: a doutrina clássica de LLR (lender of last resort) do Bagehot precisa ser crível, portanto faltou (d) o Banco Central (o LLR) deve anunciar esta política com antecedência e segui-la nos casos de crise. Ver, por exemplo, o fascinante artigo de Michael Bordo
http://www.richmondfed.org/publications/research/economic_review/1990/pdf/er760103.pdf]

A motivação destas recomendações é razoavelmente evidente. O principal negócio dos bancos é transformar dinheiro de curto prazo, que pode ser sacado imediatamente pelo depositante, em recursos de longo prazo, os necessários para que empresas possam se engajar em projetos de longa maturação (ou para que consumidores possam adquirir bens de alto valor unitário, como imóveis). Tal transformação, contudo, deixa os bancos em situação vulnerável: se todos depositantes exigirem seus recursos nenhum banco poderia atendê-los, mesmo que tivesse emprestado apenas para projetos excelentes. Não por acaso, a história testemunha várias instâncias de corridas bancárias, que levaram a pânicos e crises profundas.

Neste contexto, a mera presença de um emprestador de última instância poderia, em tese, eliminar o risco de corridas, ao menos para os bancos em boa situação patrimonial. Sabendo que bons bancos teriam acesso a liquidez quando necessário, não haveria motivos para corridas bancárias.

Obviamente, é mais complicado do que isso. A solvência de uma instituição financeira é difícil de ser determinada em situações mais complexas. Ativos que, em condições normais, são de boa qualidade podem se mostrar problemáticos em cenários de crise. Além disto, a presença do emprestador de última instância acentua a natural assimetria de informações entre bancos e depositantes, e pode levar a problemas como os observados na crise de 2008.

Isto dito, há elementos na doutrina Bagehot que podem ser aplicados à situação europeia atual, em particular a intricada distinção entre países ilíquidos e insolventes.

Imagine um país que, sob condições normais de mercado, teria toda capacidade de continuar servindo sua dívida, mas que, por um problema similar ao do pânico bancário acima descrito, acaba enfrentando dificuldades na rolagem de sua dívida, eventualmente traduzidas em taxas de juros muito elevadas e crescimento baixo. É concebível que mesmo um governo originalmente equilibrado do ponto de vista patrimonial possa ser levado à insolvência, caso a crise se prolongue além de certos limites.

Sob tais circunstâncias, haveria justificativa para o acesso a fontes de financiamento extra-mercado que permitissem a tal país preservar sua solvência sob condições adversas. Aliás, caso o volume de recursos posto à disposição do governo seja bastante grande, a própria existência do mecanismo de financiamento desencorajaria o pânico e provavelmente preveniria inclusive a crise de liquidez. Este é o raciocínio dos que advogam um aumento significativo do Fundo Europeu de Estabilização (EFSF), que hoje mobiliza apenas € 440 bilhões (nunca pensei que escreveria “apenas” antes de € 440 bilhões, mas é um sintoma do mundo em que vivemos), boa parte, diga-se, já comprometida com os auxílios a Irlanda e Portugal, bem como o segundo resgate grego, caso este último se materialize.

Por outro lado, também como preconizado pela doutrina, não faria sentido oferecer auxílio a países fundamentalmente insolventes. De fato, o único motivo para tanto, nas atuais condições, seria a tentativa de impedir que a eventual reestruturação da dívida de um país insolvente acabe alimentando a crise de liquidez dos demais, transformando-a num problema mais grave.

Já os demais aspectos da doutrina são de tradução menos direta para o contexto de crises soberanas, em particular a questão das garantias, muito embora a privatização de alguns ativos governamentais possa desempenhar algum papel, mesmo como coadjuvante, neste quesito.

A valer o raciocínio acima, para impedir que a provável reestruturação da dívida dos insolventes acabe por contaminar irremediavelmente os demais, alguém terá que desempenhar o papel de emprestador de última instância, garantindo que as economias consideradas solventes sejam assim percebidas pelo mercado. Esta seria a principal, se não única, forma de evitar o contágio que, até agora, tem se mostrado o aspecto mais assustador da crise europeia.

Isto dito, não está claro quem acabará nesta função. Idealmente seria uma tarefa para o EFSF, mas os desenvolvimentos políticos na Europa indicam que a batata quente de Bagehot irá terminar, não sem certa ironia, no colo do Banco Central Europeu. Nada muito bonito, mas considerem a alternativa...

Quente e cara


(Publicado 6/Out/2011) 

23 comentários:

Alex,
Parabéns pelo artigo.
Me pergunto o que passa na cabeça de um gestor de ativos (aqui me refiro ao Dexia) quando decide comprar toneladas de papel grego. É difícil concatenar regulação prudencial com a gestão de instituições.
Abs.
M.

Mais uma vez, sua reflexão prima pela elegância, objetividade e perspicácia. Pergunto: a Europa do euro como um todo tem bons fundamentos econômico-financeiros (comércio exterior, conta de capitais, etc)? Poderá ser forçada a uma desvalorização do euro ou suas dificuldades são apenas “intra muros”?

A questão também poderia ser vista nos seguintes termos: quem emprestou mal que seja purgado do mercado, com o banco central evitando a contaminaçao de ativos incobráveis. Me parece que essa foi a grande bronca dos economistas americanos e ingleses com relação aos seus bancos centrais quando da crise recente. Esses bancos centrais, de fato ,evitaram, àquela época, a crise de liquidez exagerada, lastreando ativos que na verdade nunca existiram. Entretanto, deixaram no mercados banqueiros que assumiram riscos exagerados e não tinham como honrar os compromissos. De novo a estória de certa forma se repete.

Walter Bagehot... mais um socialista querendo coletivizar os mercados financeiros. A atual crise, assim como a de 1929, tem um toque do seu dedo podre.

Att.
Vienna Man

Alex,

segue uma idéia. Quero um debate entre o Adaílton e o Vienna Man! Seria a maior peça de humor involuntário dos últimos tempos!!

"Quero um debate entre o Adaílton e o Vienna Man! Seria a maior peça de humor involuntário dos últimos tempos!!"

Mediado pela Miriam Leitão!

As crises - e as bolhas - são inevitáveis; fazem parte da natureza humana e da engenhosidade na arte da ganância.
Sistemicamente, saques de papel-moeda nada servem, pois, terão que ser alocados em algum outro lugar em algum momento. Retira-se de um banco e deposita-se em outro, afora o infortúnio de um criminoso não se apoderar do montante antes.
No caso das dívidas soberanas européias o ideal, creio eu, seria um alongamento do perfil e a redução da taxa de juros, gradativamente, conforme a evolução da dívida/PIB e superávit, desvinculado da variação percentual do crescimento econômico.

Alex, mudando um pouco o foco pros EUA...O Scott Summer (linkado pelo Delong http://delong.typepad.com/sdj/2011/10/if-you-are-prepared-to-spend-a-lot-you-probably-probably-wont-have-to-spend-very-much.html)vem falando de estabelecer metas de NGDP. Segundo ele se uma meta fosse estabelecida, não seria necessário um afrouxamento quantitativo tão grande, em virtude da credibilidade do Fed. Parece que a idéia vem se proliferando nos blogs.
Mas não há um overstatement da credibilidade da autoridade monetária ? A credibilidade não está necessariamente ligada a UM objetivo de política monetária (inflação, no caso, ainda que não exista meta explícita) ? Haveria por quê ocorrer um "spillover" de credibilidade para um objetivo completamente diverso daquele sobre o qual se construiu a credibilidade ?
Se vc tiver tempo de responder, seria ótimo se desse um ponto de vista prático e teórico (qq a macro tem a dizer sobre isso?)

Saudações

JA

Só para deixar duas referências para o meu comentário acima:
http://macromarketmusings.blogspot.com/2011/09/expectations-matter-more-than-size.html

http://everydayecon.wordpress.com/2011/09/29/expectations-and-policy/

JA

"Mas não há um overstatement da credibilidade da autoridade monetária ? A credibilidade não está necessariamente ligada a UM objetivo de política monetária (inflação, no caso, ainda que não exista meta explícita) ?"

Acho que é isso. O Fed tem credibilidade quanto à inflação, mas não imagino por que uma meta de produto nominal produziria melhores resultados via expectativas do que uma meta de inflação... Acho que o comportamento dos agentes é bem mais binário do que isso: o que interessa para susas decisões é se a política monetária vai ser apertada ou frouxa, não se a meta é inflação ou NGDP.

Anônimo (JA)
Dê uma olhada nesse artigo:
http://thefaintofheart.files.wordpress.com/2011/09/market-monetarism-13092011.pdf

Alex,

Bom artigo como sempre. Apenas uma pequena imprecisão: a doutrina clássica de LLR (lender of last resort) do Bagehot precisa ser crível, portanto faltou (d) o Banco Central (o LLR) deve anunciar esta política com antecedência e segui-la nos casos de crise. Ver, por exemplo, o fascinante artigo de Michael Bordo
http://www.richmondfed.org/publications/research/economic_review/1990/pdf/er760103.pdf

Abraço,

Bom ponto Ronald. Ficou faltando mesmo. Não faz sentido ter o backstop e não anunciá-lo previamente.

Obrigado

Abs

Alex, a inflação anualizada já está em 7,31%, estou achando que para fechar o ipca dentro dos 6,5% necessitaremos de uma ajuda do IBGE...

Ainda não é o caso. Basta que a inflação neste último trimestre fique cerca de 0,8% abaixo do que foi a inflação no trimestre final de 2010.

Lembrando, no último tri de 2010 a inflação bateu 2,23%.; se ficar em 1,45% (0,77 pontos percentuais abaixo do observado em 4T10), bate exatamente 6,5%. Ou seja, se a inflação ficar, em média, 0,48% ao mês, não um número exatamente baixo, ainda dá.

Só que não aguenta nenhum desaforo. Um mês que dê 0,60%, mata o BC. Vai ser no photochart.

Aproveitando o tema "ajudinha do IBGE", isso assusta ou é só um procedimento normal?

IBGE mudará metodologia de apuração de índices de inflação em 2012
http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/valor/2011/10/07/ibge-mudara-metodologia-de-apuracao-de-indices-de-inflacao-em-2012.jhtm

Vai cravar exatamente 6,66% o acumulado em 2011.

E na carta o Tombini vai culpar de forma nada sutil a política fiscal e nosso amigo Mantega vai ter que explicar porque ficamos fora da meta...

Os movimentos do Tombini são friamente calculados ;)

"Só que não aguenta nenhum desaforo. Um mês que dê 0,60%, mata o BC. Vai ser no photochart."

Qual o constrangimento do Bacen se a meta for estourada? Vai ter que mandar uma cartinha pro ministro da Fazenda...

HAHAHA grandes coisa

"sso assusta ou é só um procedimento normal?"

Absolutamente normal. A última POF foi usada em 2006. O que assusta é o trabalho para remontar as planilhas...

Anônimo 7 de outubro de 2011 19:45

A ironia cáustica em relação ao constrangimento do Bacen me fez rir. Observo no seu comentário: "se a meta for estourada?". A meta de 4,5% já foi pro brejo. Não é crítica. Apenas constato a aceitação tácita [vejo isso todos os dias na imprensa] de que "limite para mais da meta" é sinonímia de "meta".

Eu acho que se estourar o limite do "para mais" a criatividade semântica dos redatores do Bacen vai ser posta a prova.

Minha aposta, no caso, é na exacerbação do estilo gongórico característico, talvez em dissertação a respeito da "teoria do só um tapinha não doí" agregada à "teoria da tempestividade".

Alex

Salvo acidentes no percurso final, que vai ser no photochart, acho que poucos duvidam.

Onde a coisa está escancarada é no primário de 3,1%. Os últimos posts do Mansueto revelam um 2012 assustador.

Ele fez uma análise da qualidade do ajuste fiscal de 2011 até agosto de 2011 que é de arrepiar. Ou melhor, os números que ele analisou é que são. Ele mostrou.

A conclusão no post "Minha análise do resultado primário de jan-agosto de 2011"

"Sim, o resultado primário melhorou; mas essa melhora é em cima de um comportamento atípico da receita e despesa [junho a agosto: R$ 24 bilhões]. Quando olhamos para o próximo ano, dado o volume elevado das despesas já contratadas, sendo a principal a expansão de R$ 21,5 bilhões decorrente do aumento programado do salário mínimo e as desonerações do programa Brasil Maior entre R$ 23 e R$ 25 bilhões, não se sabe de onde o governo vai tirar recursos para entregar o primário cheio de 3,1% do PIB, ainda mais que o investimento público deve aumentar."

Aguardo o próximo post:

"Na verdade, podemos trabalhar com algumas hipóteses para o próximo ano, mas isso fica para outra ocasião."

Esta doutrina, na verdade, em sua essencia, pelos resultados apresentados na conjuntura atual, e' um licho.


Um abracao


Kleber S.

Vou insistir Kleber. Os resultados só podem ser avaliados contra o que teriam sido caso a política não fosse adotada.

A valer pela pesquisa do Milton Friedman e Anna Schwartz (nenhuma relação com Schwartsman), há bons elementos para argumentar que, sem essa política, a crise hoje seria mais profunda, talvez semelhante à Grade Depressão.

Não quer dizer que ela não crie outros problemas: a rede de segurança faz o trapezista tomar mais risco e outros desafio, mais complicados, aparecem.

Isto dito, não há como avaliar a política sem o contrafactual: se você não fizer isso, sempre alguém vai lhe responder que envelhecer é uma m..., mas melhor que a alternativa.

Abs

O texto eh bem escrito, explicando os argumentos a favor desse resgate aos bond holders da divida grega. Ate ai otimo, porque evidencia a condicao eh que voce se baseia pra dizer se vai ter contagio ou nao. Agora, nao otimo anymore...
Quem foi que disse que existe contagio entre paises? Quem disse que isso eh uma crise de liquidez? Paises nao sao bancos. Nao estao "short in the short-run, long in the long run". Porque exatamente voce acha que essa analise de corrida bancaria se aplica ao caso de divida soberana? A unica coisa que os investidores vao aprender com o default grego eh se vai ter resgate aos outros paises ou nao. Ou voce acha diferente? Voce acha que vai ter corrida contra titulo alemao?
Se voce conseguisse explicar como exatamente o contagio se da entre divida de outros paises, o artigo ficaria imensamente favorecido, porque da forma como esta, isso equivale a dizer, "bem, se as pessoas andarem pelo teto as portas deveriam ficar la em cima tambem". Nao posso dizer q nao eh coerente...