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quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

A miséria da epistemologia

O artigo de Luís Antônio de Oliveira Lima (“Ousando discordar da ortodoxia dos economistas”, Valor Econômico, 12/11/07) é pródigo em citações, o que mostra o salutar hábito de leitura do autor. Pena que seu entendimento destes textos não seja igualmente saudável, o que me pouparia o trabalho de rebatê-lo novamente. Isto dito, um texto com tantos problemas não poderia passar incólume.

A questão que debatemos é simples. Defendo que a escolha de uma meta de inflação mais elevada (ou mais baixa) não deve ter qualquer efeito sobre a taxa de crescimento da economia por um motivo bastante singelo: as pessoas conseguem distinguir entre alterações nominais e reais de preços. Sindicatos, por exemplo, negociam salários sabendo muito bem o que se trata de mero reajuste nominal e o que é, de fato, ganho real. Se isto é verdade, o anúncio de meta de inflação mais elevada deve ser imediatamente incorporado ao conjunto de informações dos agentes e, consequentemente, às suas expectativas, sem efeitos reais sobre a economia (chamemos isto de hipótese aceleracionista). Lima, pelo contrário, argumentou originalmente que, sim, uma meta de inflação mais alta poderia acelerar o crescimento (já em seu último artigo recuou da posição inicial, afirmando apenas que crescimento pode ser compatível com inflação mais alta).

Em apoio à sua tese Lima, citando o trabalho de Robert Barro, “observa que para taxas de inflação abaixo de 20% qualquer relação, positiva ou negativa, entre crescimento e inflação, não é estatisticamente significativa”. Lima não se deu conta, porém, que este resultado, ao contrário do que parece acreditar, não apóia sua tese. Se a taxa de inflação não tem qualquer efeito sobre a taxa de crescimento, por que alguém escolheria uma meta de inflação mais alta?

Para colocar a questão em termos mais mundanos, o número de vezes ao dia que alguém tocar a Macarena durante a primeira infância do seu filho muito possivelmente não irá afetar sua estatura na adolescência. Isto, porém, não é justificativa para tocá-la inúmeras vezes ao dia, a menos que você acredite que isto trará um aumento de bem-estar à criança (eu não acho, mas deixo isto a critério de cada pai). Da mesma forma, ainda que a inflação (abaixo de 20% a.a.) não prejudique o crescimento, qual a razão para que esta seja 8% a.a. ao invés de, digamos, 3%? Há algo de positivo na inflação mais elevada?

A bem da verdade, Lima agora diz não acreditar que inflação mais alta traga mais crescimento (ainda que em outras passagens revele persistir na crença), mas sim que inflação alta também é compatível com crescimento, assim como é a inflação baixa, ou seja, que o crescimento independe da taxa de inflação. Pergunto: no que mesmo sua posição difere da hipótese aceleracionista?

Lima, porém, não se limita a citações sobre macroeconomia e traz também a epistemologia ao debate. Segundo ele não se pode dizer que a hipótese aceleracionista seja “correta”, já que – citando Karl Popper – não há uma teoria “correta”, apenas hipóteses que se ajustam melhor ou pior aos dados. De fato, a teoria da gravidade de Newton, na leitura ingênua de Popper proposta por Lima, também não é “correta”, mas apenas uma hipótese, que, pode se ajustar melhor ou pior aos dados. Será que o filósofo pularia de uma janela com base na noção que a teoria da gravidade não é “correta” no sentido popperiano do termo?

Exagero meu? Pelo contrário. Anos de exercício de política monetária sob a hipótese aceleracionista cimentaram a noção do que tem sido denominado “A Grande Moderação”, isto é, um período no qual taxas baixas de inflação têm convivido com baixa volatilidade do crescimento. Ao contrário do período em que bancos centrais tentaram (inutilmente) acelerar o crescimento à custa de inflação mais elevada, apenas para pouco depois serem forçados a desacelerar fortemente a atividade para controlar a inflação, gerando um padrão conhecido como stop-and-go, hoje os bancos centrais aprenderam que não precisam (metaforicamente) pular da janela para ver se a hipótese aceleracionista se ajusta aos dados.

Em outras palavras, a hipótese aceleracionista, considerada “simplista” por Lima, serviu de base para a gestão bem sucedida de política monetária que, ao redor do globo, gerou baixas taxas de inflação com reduzida volatilidade do produto, traduzindo-se em ganhos significativos de bem-estar. Como diria Milton Friedman (“The Methodology of Positive Economics”), inspirado pelo mesmo positivismo de Popper, pouco interessam as hipóteses do modelo, desde que este consiga gerar previsões válidas, entre elas sugestões de política que aumentem o bem-estar. A evidência acumulada sobre estes anos de gestão de política monetária inspirada pela hipótese aceleracionista sugere que esta cumpre, com honras, este quesito.

Isto, porém, parece ainda além da compreensão de Lima, em que pesem suas pretensões epistemológicas. Sem dúvida é curioso que alguém cite Popper e, poucos parágrafos depois, questione o “realismo” das hipóteses do modelo, incluída a suposição acerca da racionalidade dos agentes econômicos. Revela, no mínimo, pouca reflexão sobre as implicações da abordagem popperiana à ciência. Na pior das hipóteses sugere que só cita o filósofo alemão quando lhe é interessante, deixando de lado as implicações menos favoráveis à sua tese.

Em todo caso, a miséria epistemológica, mesmo grave, não é o pior aspecto do artigo. Mais séria é a falta de entendimento acerca da própria hipótese aceleracionista, em particular para alguém que pretende se posicionar como o campeão da heterodoxia, “ousando desafiar a ortodoxia dos economistas”. Ao recuar da sua posição original acerca da inflação mais alta trazer mais crescimento e afirmar que teria dito apenas que a inflação elevada (mas, imagino, abaixo de 20%) é “compatível” com crescimento Lima apenas repete inadvertidamente a hipótese aceleracionista, isto é, que o crescimento não é afetado pela taxa de inflação. O defensor da “heterodoxia” não conseguiu perceber que sua suposta crítica apenas ecoa a mesma teoria que pretende criticar. Seria irônico, mas é apenas triste.

(Publicado 5/Dez/2007)

7 comentários:

Como disse o Prof. Scheinkman, aprender econometria dá trabalho. Assim, é mais fácil criticar "o modelinho do BC" usando argumentos do tipo "são variáveis difíceis de mensurar" e usar, portanto, a aritmética de (Sic)sú. Preguiça, burrice e cretinice.
Aliás, não sei se o título foi intencional mas trouxe à memória "A Miséria da Crítica Heterodoxa" de Marcos Lisboa. Uma excelente escorraçada nos indigentes intelectuais.

Bilú, começo a me perguntar, não sem certa apreensão, por que motivo alguém iria preocupar em defender a elevação de metas de inflação...

anunciam-se nuvens carregadas no céu de brigadeiro em que Luizinácio e ekipe vinham conduzido a "barca"?

Alexandre, permita-me fazer dois comentarios:

o primeiro, uma bobagem que, no contexto, é irrelevante: Popper era austríaco, e não alemão

o segundo, creio eu, é mais relevante: por mais que Popper seja taxado de positivista por uma série de escolas e correntes, qualificá-lo de tal forma apenas contribui para uma desinformação a respeito tanto de sua obra quanto de sua crítica ferrenha ao positivismo. Certamente não foi a sua intenção espalhar tal confusão, mas seria interessante não insistir na tese do Popper positivista. Qualquer dúvida em relação a este ponto, ou se quiser defender a caracterização do Popper como positivista(o que, admito, é uma caracterização corrente mas, ao meu ver, incorreta), esteja livre para responder por aqui ou no meu blog.

abraços

Respondendo à questão "o que haveria de bom em inflação maior"?

Não tenho assinatura do Valor, por isso não li o artigo original.

Baseado no seu relato, eu acho que a relação que o autor quer estabelecer é a seguinte: maior gasto público induz maior crescimento e maior inflação. Se maior inflação diminuir crescimento, os dois efeitos (se forem do mesmo tamanho) se anulam. Se inflação não afeta crescimento, vale a pena gastar mais e ter mais crescimento, ainda que com mais inflação.

Naturalmente, daí em diante resta mostrar que maior gasto público gera mesmo maior crescimento (isto é, que o que se ganha com o incentivo à demanda é mais do que o que se perde tirando dinheiro da economia através de impostos maiores).

PS: se o que ele diz sobre o Popper for mesmo isso aí, bom, aí é triste, mesmo.

não entendi por que alguém, nesta altura do campeonato (em que a inflação está em viés de alta, iria querer elevar meta de inflação (já que ela, a inflação, está se elevando por força da velha lei da oferta e da procura)...

Em primeiro lugar, desculpas a todos que comentaram o artigo pela demora na moderação. Acontece que - por motivos que desconheço - nenhum aviso de comentário apareceu no meu e-mail. Só hoje é que fui checar a página da moderação.

Renato: realmente eu me equivoquei. Popper era austríaco, não alemão. Um mau sinal sobre a qualidade da minha memória. Quanto ao positivismo, não vou insistir muito no rótulo(você provavelmente entende mais do assunto que eu). Isto dito, acima dos rótulos, Lima mostra que não entende o que Popper diz e sua insistência no "realismo" das hipóteses só reforça minha convicção a respeito; Obrigado pelos comentários.

Quanto à questão de gasto público e inflação, o gasto não induz necessariamente maior crescimento; induz sim a um aumento da demanda, mas não a uma aceleração do produto potencial, em particular se for concentrado no gasto corrente, como o caso brasileiro. De qualquer forma, anunciar que o BC perseguirá uma inflação mais alta e esperar que todo mundo ignore esta informação equivale a chamar a população toda de cretina.

Quanto à elevação da meta, agora apresentam a aceleração da inflação corrente como sinal de terem acertado ("se a meta não tivesse sido elevada, o BC já teria que subir juro"). Só deixam de lado que as expectativas de inflação subiram enormemente entre junho e hoje. A comparação entre os papéis pré-fixados e pós-fixados mostra a expectativa embutida de inflação saindo de 3-3,5% (dependendo do prazo) para 4,5-5%.

O único motivo para definir a meta de inflação acima das expectativas foi ignorância mesmo. Não é por acaso que Lima escreveu as bobagens que escreveu: tem muito sujeito metido a economista no Brasil que ainda não aprendeu a lição.

Prezado Alex. Apesar de não ter lido o artigo do Valor, admito que fizestes uma boa explanação. Entretanto, sem querer defender o Lima, no meu entender, se crescimento e inflação abaixo de 20% não apresentam causalidade, a política econômica é o elo entre as duas variáveis. Assim, dependendo das medidas adotadas nos instrumentos de curto prazo, impactará o desempenho de ambas. Logo, o uso da taxa de juros para conter a inflação e mantê-la dentro da meta pode, no curto prazo, provocar uma redução no ritmo de crescimento do PIB. Talvez o erro do autor (partindo da sua interpretação) é ter estabelecido uma relação tão direta entre crescimento e inflação. De qualquer modo, minha explanação corrobora em parte com o que você disse sobre o gasto público. Minha respeitosa divergência é que se faz necessário o conhecimento e vivência do setor público para se fazer afirmações a respeito das despesas, primordialmente de custeio. Assim como em qualquer empresa, que ao comprar uma máquina adicional, ampliando a sua capacidade instalada, ao colocá-la em uso, gera mais custos de produção (matéria-prima, mão-de-obra, etc.), a inauguração de um hospital público, por exemplo, um custo de capital, requererá mais gastos de custeio (medicamentos, seringas, médicos, enfermeiros, etc.). O problema dos gastos é a alocação de recursos, de modo que o Estado seja mais eficiente direcionando mais recursos na prestação de serviços públicos. Todavia, como nem todos funcionários e governantes têm o devido espírito público, tomam decisões que mais lhe favorecem do que o bem-estar da população. No meu entender, é um problema dos homens, e não do sistema. Os primeiros deveriam se adequar ao último, e não o contrário.
Enfim, acho que desviei do assunto inicial, mas espero ter contribuído de alguma forma ao seu blog.