No futuro, historiadores vão se debruçar sobre fragmentos de nossa civilização e teorizar sobre o zeitgeist do Brasil durante a primeira década dos 2000s. Na minha opinião, aquele historiador que obtiver o fragmento abaixo vai ter as melhores chances de entender o que é viver no Brasil hoje em dia.
O artigo do Paulo na Folha de São Paulo de ontem:
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Se quisermos realmente mudar a arquitetura financeira internacional, teremos de lutar muito mais
DESDE QUE me mudei para Washington, tenho usado esta coluna para me manter em contato com o Brasil e o leitor brasileiro. É um diálogo muito particular, e a rigor estritamente reservado. No entanto, volta e meia aterrissa um estrangeiro por aqui (tenho leitores muito atentos na Europa, por motivos que já expliquei em colunas anteriores). Tudo bem, todo leitor é bem-vindo, mas com uma condição -que não venha dar palpite e interferir no meu diálogo com o brasileiro.
Veja bem, leitor, falei especificamente do brasileiro. Além do estrangeiro, há outro elemento considerável que aparece, de vez em quando, misturado entre as forças nacionais. Refiro-me à célebre quinta-coluna. Continua volumoso o batalhão dos discípulos de Calabar. É o brasileiro sem sotaque físico, mas com tremendo sotaque espiritual.
Um dia alguém terá de escrever todo um tratado, em vários volumes, sobre as atividades dos quinta-colunistas no Brasil. A referida coluna, diga-se de passagem, também tem seus representantes -e muito ativos- no exterior, inclusive aqui em Washington.
Mas deixo a quinta-coluna de lado. Na última quinta-feira, não pude escrever. Tivemos um período de excepcional sobrecarga aqui em Washington.
Só na semana passada, o Brasil presidiu três encontros em Washington: o do G24, o dos Brics e a reunião dos nove países do nosso grupo no FMI.
Além disso, o Brasil participou da reunião de ministros das Finanças e presidentes de bancos centrais do G20, que (fato incomum) ocorreu à margem das reuniões de Primavera do FMI e envolveu negociação demorada de um comunicado.
O Brasil participou, também, da reunião do Comitê Monetário e Financeiro Internacional do FMI (mais conhecido pela sigla em inglês, IMFC), que envolveu outra negociação demorada de comunicado. Isso sem falar nas reuniões bilaterais com diversos países -China, África do Sul, Haiti e Grécia, por exemplo.
Os comunicados do G20 e do IMFC determinam, entre outros aspectos, a agenda do FMI para os próximos meses. Para quem está fora do processo, é difícil entender a importância desses documentos -de aparência burocrática e linguagem não raro obscura. Mas os envolvidos lutam de maneira aguerrida -alguns de maneira muito desleal- para que os comunicados reflitam as suas posições.
Saiu-se bem a delegação brasileira? Para dizer a verdade, não tão bem como em outras ocasiões. Temos quadros qualificados na Fazenda, no Banco Central e nos nossos escritórios no FMI e no Banco Mundial. Mas somos poucos, muito poucos.
A luta é desigual. Os países desenvolvidos têm quadros mais numerosos. Além da quinta-coluna tupiniquim, temos de enfrentar o adesismo de alguns países em desenvolvimento. Os nossos principais aliados também sofrem da falta de quadros.
Desde o final do ano passado, intensificou-se bastante a resistência à mudança no G20 e no FMI.
Se quisermos realmente mudar a arquitetura financeira internacional, teremos de lutar muito mais. E saber que os que continuarem lutando serão (na verdade, já estão sendo) caçados a pauladas, feito ratazanas prenhes.
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. , 55, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É diretor-executivo no FMI, onde representa um grupo de nove países (Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal.