teste

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Mundo velho sem porteira


Já não tinha qualquer dúvida acerca do completo divórcio entre a classe política e a realidade das contas públicas no país, mas, se tivesse, bastaria a alteração da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) perpetrada recentemente pela Câmara para ter certeza absoluta a este respeito.

A LRF estabeleceu que estados e municípios não podem gastar mais do 60% de sua receita corrente líquida com pessoal, condição infringida mais vezes do que seria saudável, levando ao uso de critérios nebulosos de contabilidade para disfarçar a real extensão do problema. Já a mudança da LRF permite a municípios a violação deste limite, caso sua receita tenha caído mais do que 10% por força da redução das transferências federais (devido a isenções tributárias concedidas pela União), ou queda nos royalties.

À primeira vista parece uma mudança bastante razoável. Afinal de contas, o governante não poderia ser punido por fatores fora de seu controle como os acima descritos. Um olhar mais aprofundado, porém, revela consequências potencialmente destrutivas da decisão.

A começar porque, como sabe qualquer família, não é prudente fixar suas despesas em níveis elevados quando suas receitas podem variar. As receitas relativas a royalties flutuam, por exemplo, com os preços de commodities, como ilustrado pela crise do Rio de Janeiro. Caso as despesas, com pessoal inclusive, sejam definidas com bases em receitas originadas em um momento favorável do ciclo econômico, torna-se bastante provável seu “estouro” quando vier a reversão cíclica.

Neste sentido, a Câmara deu permissão a este tipo de comportamento, ao sinalizar que administradores não sofrerão sanções por conta de um evento que, num período razoavelmente longo, é praticamente uma certeza.

Afora isto, revela-se o que já sabíamos: boa parte, senão a maioria dos municípios do país, é financeiramente inviável sem as transferências federais, o que deveria nos levar a questionar sua existência autônoma, não o perdão ao comportamento irresponsável.

Abre-se, por fim, um precedente perigoso. Nada impede, mais à frente, que novas alterações ampliem o leque de alternativas para aumento de gastos, em particular relativos a pessoal.

Tudo isto ocorre num contexto em que, sob a LRF, municípios vêm gastando como nunca. As despesas municipais, medidas a preços constantes, atingiram R$ 606 bilhões (8,9% do PIB) nos 12 meses terminados em junho de 2018 contra R$ 490 bilhões (7,6% do PIB) em 2010. No mesmo período, as despesas com pessoal saltaram de R$ 223 bilhões (3,5% do PIB) para R$ 298 bilhões (4,4% do PIB), ou seja, de 46% para 49% da despesa corrente.

A contrapartida foi a queda da participação da provisão de serviços à população (de 35% para 30% da despesa). É bastante claro que o aumento do gasto beneficiou mais aos servidores municipais do que os munícipes, replicando um padrão infelizmente comum no setor público brasileiro.

Este episódio apenas reforça a percepção muito clara sobre a apropriação do orçamento público por grupos corporativos, alegremente sustentados por políticos cuja conexão com o interesse da população é mínima.

Num país em que estados importantes se encontram à beira da falência e mesmo o governo federal enfrenta sérias dificuldades, a última coisa que precisamos é abrir as porteiras para o gasto desenfreado. No entanto, é exatamente isto com que o Congresso nos brindou.




(Publicado 12/Dez/2018)

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Retórica e realidade


O presidente eleito, Jair Bolsonaro, manifestou sua oposição à proposta de reforma da previdência capitaneada por Michel Temer, afirmando que “não podemos querer salvar o Brasil matando idoso”. Parece não ter percebido nem que a campanha acabou, nem que o tema requer bem mais maturidade na análise.

A começar porque qualquer proposta de reforma não pode alterar direitos adquiridos dos atuais aposentados. Mais importante, porém, é que não há nada no projeto que autorize a visão particularmente cruel expressa acima.

A discussão hoje se concentra (embora não se esgote) em três aspectos. O primeiro é a criação de uma idade mínima de aposentadoria para o INSS, que atingiria 62 anos para mulheres e 65 para homens em 20 anos. O segundo é o estabelecimento de uma regra de transição, especificando que vale para mulheres acima de 53 anos e homens acima de 55. O terceiro é a equiparação do regime para o funcionalismo público às regras do regime para trabalhadores do setor privado.

No que se refere aos dois primeiros, noto que, dos 35 milhões de beneficiários da previdência (5 milhões de assistenciais e 30 milhões de previdenciários), há 6 milhões de aposentados por tempo de contribuição, ou seja, 18% do total. Apesar disto, recebem 30% do valor desembolsado, não só a maior fatia, mas também o maior valor médio, correspondente a R$ 3 mil/mês, tendo se aposentado em média aos 55 anos.

Para fins de comparação, quem se aposenta por idade (65 anos), recebe metade deste valor (a maioria recebe um salário mínimo); já os benefícios assistenciais equivalem a um salário mínimo, R$ 954/mês. Em outras palavras, o que se propõe é que os que ganham mais se aposentem (em 20 anos) na mesma idade dos que ganham menos.

Há, é verdade, um requisito adicional para o recebimento do benefício integral (cujo teto é hoje R$ 5,5 mil/mês): 42 anos de contribuição, ou seja, quem se aposentasse por tempo de contribuição aos 65 anos teria começado a contribuir pelo menos aos 23 anos. Contudo, para a maioria dos que se aposentam por idade, não haveria mudança: fariam jus a um salário mínimo e continuariam a recebê-lo após os 65 anos.

Já a equiparação de regimes eliminaria a inequidade hoje existente entre aqueles que se aposentam com salário integral e meros mortais. Em particular, no caso do funcionalismo federal, a aposentadoria média em 2016 era R$ 7,7 mil/mês, contra R$ 1,4 mil/mês para aposentados pelo INSS, 5,5 vezes maior.

Em suma, muito embora o projeto de reforma ora em discussão não seja perfeito, está longe de corrigir o problema previdenciário pelo assassinato em massa de velhinhos. Ao contrário, reduz desigualdades e preserva os direitos dos mais pobres.

Já deveria ficar claro para o presidente que o sucesso de sua administração está intimamente ligado à capacidade de aprovar, possivelmente ainda em 2019, uma reforma que limite os gastos com aposentadorias e pensões, sem o que o teto constitucional de despesas se tornará insustentável nos próximos anos.

A retórica de campanha, associada à declaração pessimista do deputado Eduardo Bolsonaro sobre a possibilidade de aprovação da reforma no Congresso, gera sérias dúvidas acerca de seu compromisso com o ajuste fiscal.

Não há margem de erro nesta frente: se não aprovarmos a reforma da previdência enfrentaremos uma grave crise fiscal, com repercussões óbvias sobre a estabilidade política do país.



(Publicado 5/Dez/2018)

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Autocrítica ou Fosfosol?


Em sua primeira entrevista após as eleições, o candidato derrotado, Fernando Haddad, analisa não só o pleito deste ano, mas arrisca previsões, bem como explicações para a derrota. Gostei muito de “se eu tivesse no mundo evangélico o mesmo percentual de votos que tive no mundo não evangélico, eu teria ganho a eleição”. É o equivalente de “se todos que não votaram em mim tivessem me escolhido, eu seria presidente”. Mas não é disto que queria falar.

Em determinado momento Fernando é perguntado sobre a necessária autocrítica petista, ao que responde “não tem uma entrevista minha em que não tenha apontado um erro de diagnóstico, uma falha”. Pode ser verdade, porque erros e falhas não faltaram na administração petista, mas, do ponto de vista econômico, nenhum prócer do PT, certamente não o Fernando, renegou o conjunto de políticas que nos levaram à maior recessão dos últimos 25 anos, que dobrou a taxa de desemprego e jogou de volta à pobreza 8,6 milhões de brasileiros entre 2014 e 2016.

Muito pelo contrário, quem teve a oportunidade de ler as propostas do programa petista, coordenado por Marcio Pinochmann, não teve a menor dificuldade de perceber que se tratava essencialmente da mesma Nova Matriz Econômica, posta em prática por Guido Mantega e seus asseclas, incluindo o nefasto Arno Augustin.

A nova Nova Matriz trazia aumento dos gastos públicos, inclusive com eliminação do teto das despesas, intervenção no mercado de câmbio (“temos que ter estabilidade do câmbio em patamar competitivo”), uso dos bancos públicos, recursos do BNDES (agora acrescidos de reservas  internacionais) para financiar obras de infraestrutura, fim do foco exclusivo do BC na inflação (e com sindicalistas participando da definição das metas para a inflação).

A lista poderia ser ampliada sem dificuldade, mas acredito que os leitores já pegaram a essência da proposta: a política econômica seria, no que interessa, a mesma aplicada durante o primeiro governo de Dilma Rousseff, que até mesmo nelson barbooosa, depois de muito refugar, admite ter sido um equívoco, reconhecendo que “o ajuste de 2015 foi necessário para corrigir os erros política econômica de 2012-14”.

Por mais que, ao longo do segundo turno, novas propostas fossem surgindo, nem tão depressa que parecesse covardia, nem tão devagar que soasse como provocação, a triste verdade é que o partido e seus economistas permanecem presos ao keynesianismo de quermesse em sua expressão mais vulgar.

Obviamente não deveria ser, nem é, meu problema.

Por mais que o Fernando considere que foi a “elite econômica” quem botou o PT fora do governo, elegendo Jair Bolsonaro (devemos ser um país muito rico, em que 55% dos votantes faz parte da elite econômica), é fato que a maioria da população rejeitou suas propostas (e aqui me refiro ao conjunto delas, não apenas as econômicas). Quem tem um problema é o PT.

Isso dito, se é para termos uma oposição séria, talvez fosse uma boa ideia modernizar um tanto o modelito de política econômica. Nem é preciso ir tão longe: o próprio PT adotou, ainda que a contragosto (e abandonou assim que teve chance) o hoje amaldiçoado tripé macroeconômico, bem como as políticas sociais focadas, que um dia foram motivo para Maria da Conceição Tavares chamar Marcos Lisboa de “débil mental”, em ambos os casos com grande sucesso.

Não é preciso autocrítica; só melhorar um pouco a memória.



(Publicado 28/Nov/2018)