teste

quinta-feira, 29 de março de 2007

Quem está errado?

"Novo PIB prova que BC errou, diz Delfim

A revisão do PIB promovida pelo IBGE desmonta uma das principais teses defendidas pelo Banco Central, a de que o país não poderia crescer mais de 3%, senão haveria o risco da volta da inflação. O país não só cresceu a um ritmo mais acelerado, de 3,4% nos últimos quatro anos, como a ameaça da inflação não se confirmou. A análise é de Delfim Netto, um dos maiores críticos da política monetária do Banco Central e também da tese de que o país tinha um limite para o crescimento, o chamado PIB potencial. Delfim sempre achou que essa tese carecia de argumentos científicos."A coisa mais importante que essa revisão do IBGE fez foi mostrar que o Brasil tem condições de crescer a um ritmo maior do que 3% sem produzir inflação", afirmou. "Espero que isso sirva como lição de humildade para aqueles que pensam que dominam a ciência chamada economia."" (Folha de S. Paulo, 29 de março de 2007)

Meu comentário: novo PIB mostra que Delfim errou

Já o ministro Delfim dizia que a economia crescia bem menos do que efetivamente cresceu e criticava o BC por isto. Mesmo deixando de lado que em documento algum do BC se acha menção à impossibilidade de crescer mais que 3% (mito cuidadosamente construído pelo sempre hábil ministro, que só agora mudou o número de sua criação de 3,5% para 3%), uma metáfora simples ajuda a compreender o problema.

Segundo o ministro o BC errou por considerar que o limite de velocidade para conduzir o carro era 60 km/h, quando na verdade seria 80 km/h. Isto seria um problema se o carro tivesse andado de fato a 60 km/h. Só que o ministro deixa de dizer que os mesmos dados que sugerem um limite mais alto de velocidade também mostram o carro não estava a 60 km/h (como acusava o ministro), mas a 80 km/h.

O ministro pode até achar que o crescimento potencial do PIB é mais alto do que o BC avalia (é um economista competentíssimo), mas usar os novos dados de crescimento do PIB para sugerir que o crescimento potencial é mais alto, omitindo que o crescimento da demanda agregada (resultado, dentre outras coisas, da política monetária) também foi mais alto, é um truque retórico algo barato...

quarta-feira, 21 de março de 2007

Fora do lugar

É praticamente impossível ler certos textos sem se deparar com a expressão “câmbio fora do lugar” ou algo equivalente, usualmente acompanhada por uma historinha sobre a taxa de juros levar à apreciação “xxx” do câmbio (o leitor fica livre para preencher o “xxx” com “criminosa”, “irresponsável”, “leviana”, ou qualquer outro adjetivo habitualmente utilizado). Já tive oportunidade de examinar as dificuldades que membros desta escola enfrentam em explicar porque o câmbio seguiu se apreciando com a diferença entre os juros domésticos e externos se estreitando a cada mês, mas hoje quero abordar a noção do “câmbio fora de lugar”.

Uma das formas de olhar o problema consiste em acompanhar a evolução da taxa de câmbio ao longo dos anos ajustando-a pela diferença entre a inflação doméstica e internacional. O melhor trabalho que conheço a este respeito é o acompanhamento do Departamento Econômico do BC, que faz uma ponderação cuidadosa das diversas taxas de câmbio de acordo com o volume de comércio dos diferentes países com o Brasil. De acordo com estes dados, a taxa real de câmbio em janeiro deste ano estaria 1,7% abaixo da média observada desde janeiro de 1988, o que, convenhamos, não parece ser nenhum desastre.

Isto dito, resultados com base nesta abordagem são muito menos robustos do que gostaríamos. Escolhas diferentes das medidas de inflação (preços no atacado ou ao consumidor) ou de período amostral levam a resultados distintos. A própria escolha da média do período como referência não é isenta de problemas, a começar porque, mesmo com um número bastante elevado de observações mensais, não há como ter certeza que a taxa de câmbio é uma variável que retorna à média (acredito que sim, mas os testes estatísticos são inconclusivos).

Nesta situação o melhor é voltar à teoria econômica em busca de pistas que dêem sentido aos dados e, de fato, esta nos oferece um modelo que identifica duas condições de equilíbrio expressas em função da taxa real de câmbio e da demanda doméstica (consumo, investimento e gastos do governo). A primeira condição é o equilíbrio externo, ou seja, a manutenção de certo saldo na conta corrente que seja visto como sustentável ao longo dos anos.

A segunda se refere ao equilíbrio doméstico, que pode ser interpretado como uma condição acerca da evolução das taxas de inflação dos produtos que não podem ser comercializados internacionalmente, tipicamente serviços (escola, aluguel, cinema, manicure). Se a taxa de inflação destes produtos estiver crescendo é sinal de excesso de demanda neste mercado; se caindo, excesso de oferta. Em equilíbrio geral, portanto, a inflação dos não-comercializáveis é estável e o país gera um saldo em conta corrente percebido como sustentável.

Caso, porém, a taxa de câmbio esteja “fora do lugar”, alguma destas condições (ou ambas) não poderá ser atendida. Em particular, deveríamos observar uma piora nas condições do balanço de pagamentos, ou uma queda acelerada das taxas de inflação de produtos não comercializáveis internacionalmente, ou ainda uma combinação destes dois fenômenos. O que dizem os dados?

No que se refere ao balanço de pagamentos, não apenas o país registra expressivo saldo na balança comercial, que se traduz em superávit próximo a US$14 bilhões na conta corrente, como também as expectativas coletadas pelo BC acerca do saldo da balança para 2007 (média superior a US$40 bilhões) sugerem manutenção daquele superávit em mais de 1% do PIB.

Este superávit, porém, poderia resultar de uma demanda doméstica muito fraca, que reprimisse as importações e forçasse certos setores a exportar mais por falta de mercado. Só que a demanda doméstica tem crescido bem (4% em 2006), acima de sua média desde 1993 (2,4%), sugerindo mais força que se imagina, e deve crescer ainda mais este ano. Consistente com isto, a inflação de não-comercializáveis tem oscilado desde meados de 2006 ao redor de 4%.

Assim, a combinação de superávits expressivos em conta corrente com demanda doméstica se expandindo vigorosamente não sugere nada de fundamentalmente errado com a taxa de câmbio. Se algo há fora de lugar não é o câmbio, mas algumas idéias defendidas contra todas as evidências.

(Publicado 21/Mar/2007)

sábado, 10 de março de 2007

Volta às aulas

Um sintoma da importância adquirida pelos economistas no Brasil de uns tempos para cá é a quantidade de colegas de profissão desempenhando cargos políticos, tanto no Executivo quanto no Legislativo. Meu lado corporativista poderia até celebrar, não fossem estes economistas-políticos (não todos, mas a maioria) capazes de abandonar tão prontamente os fundamentos da nossa ciência, se é que algum dia chegaram a dominá-los. Na verdade, manifestações recentes de figurões da categoria sugerem que os mesmos teriam certa dificuldade para serem aprovados no curso de economia monetária.

Assim, houve quem afirmasse aos brados ignorar os motivos econômicos que levaram o BC à decisão de desacelerar o ritmo de queda da Selic. No entanto, como um bom aluno de graduação poderia lembrar, sabe-se que as mudanças nas taxas de juros não produzem impactos imediatos no restante da economia. Ainda que os mecanismos de transmissão não sejam inteiramente conhecidos, é fato notório que as alterações das taxas reais de juros só começam a afetar a demanda após certo período, hoje estimado em cerca de dois trimestres, e que o pico deste efeito se materializa ainda mais tarde.

Uma imagem comum para descrever este fenômeno é da água quente que demora no cano até chegar ao chuveiro. Se esta defasagem for ignorada, o incauto banhista corre sérios riscos de se queimar caso continue a ajustar a torneira enquanto observa apenas o fluxo corrente da água, desconhecendo o que já vem cano abaixo. Isto dito, houve queda da taxa real de juros de mais de 4,5 pontos percentuais de outubro de 2005 em diante, dos quais cerca de 2,5 pontos ao longo do segundo semestre de 2006, cujo impacto certamente ainda não se manifestou. Ou seja: há um bocado de água quente no cano e não me parece ser má idéia esperar para ver como fica a temperatura da água antes de abrir ainda mais a torneira.

Trata-se, enfim, de fenômeno conhecido por qualquer estudioso do assunto (ou qualquer um que já tenha tomado banho), mas aparentemente desconsiderado por pessoas que, em sua própria e modesta opinião, se julgam extremamente capazes.

Ainda na categoria de político-economista, houve também quem classificasse de “ignorante” a diretoria do BC, ao mesmo tempo em que cometia uma série de equívocos de corar um terceiranista da faculdade de Economia. Não tenho espaço para comentar todos, mas, entre os mais gritantes, destaco os seguintes.

Esse economista, por exemplo, não acredita que os juros reais caíram, porque a inflação teria caído junto. Para chegar a esta conclusão, o ilustre político deflacionou a taxa de juros pela inflação passada ao invés da inflação esperada, o que é errado, pois a inflação relevante para fins de determinação da demanda é a esperada. De fato, ao escolher entre aplicar dinheiro ou gastá-lo, as pessoas comparam consumir hoje com consumir amanhã. Sabendo a taxa de juros, sabem quanto dinheiro terão amanhã, mas não o poder de compra desta moeda. Se acharem que os preços subirão mais rápido, gastam hoje; se mais devagar, amanhã. Caso errem a previsão de inflação, haverá conseqüências, mas a decisão de consumo ou poupança já foi tomada. Isto é básico, mas foi solenemente ignorado.

O mesmo político anotou o que considera uma ironia, que preços de exportação cresçam, mas a economia não se beneficie disto, supostamente por conta da política monetária. Esta afirmação sozinha contém dois erros. Primeiro esquece que, num regime de câmbio flutuante, preços de exportação mais altos necessariamente apreciam o câmbio e, portanto, reduzem o impulso de demanda que vem das exportações (líquidas das importações), independente da política monetária.

Segundo, isto abre espaço para quedas adicionais da taxa de juros, ao permitir uma taxa mais baixa de inflação e, num segundo momento, um ritmo mais forte de crescimento da demanda doméstica, como, aliás, observado em 2006. De novo, nada que não conste dos manuais da disciplina (ou dos dados do IBGE), de novo relegados ao mais abjeto esquecimento.

Não há, pois, como alimentar sentimentos corporativistas. Afirmações como as acima deveriam levar seus autores de volta à universidade; apenas não como professores.

(Publicado 7/Mar/07)

O eterno retorno

Foi com satisfação que li o editorial da Folha no último dia 13 comentando a questão das importações e do PIB, assunto da minha última coluna. O texto reconhece o equívoco de partir de uma identidade contábil para concluir que o aumento das importações teria reduzido o crescimento do PIB em 1,7 pontos percentuais, exatamente o ponto central do meu artigo. Quase comemorei (são poucas as vezes que a racionalidade econômica prevalece), mas a continuação da leitura revelou que falta ainda um tanto para que o jornal compreenda realmente a questão.

De fato, o editorial propõe uma métrica peculiar para avaliar se as importações prejudicam (ou não) a atividade econômica: se a indústria local puder fornecer o bem, então a importação será prejudicial; se não, a importação não terá impacto sobre a atividade econômica. Por esta lógica curiosa um país só pode importar sem prejuízo à atividade doméstica quando: (a) o bem em questão não é produzido no país; ou (b) o bem é produzido, mas, no momento, não existe capacidade ociosa para fazê-lo.

Em momento algum se admite que bens importados possam simplesmente competir com os domésticos. Em outras palavras, pela lógica do editorial, valorizamos a expansão da produção nacional independente dos preços a que esta expansão ocorra, e o consumidor (ou investidor, se o bem for uma máquina) que viva com isto. Com tais idéias dominando o pensamento nacional não é estranho que o Brasil permaneça como um dos países mais fechados do ponto de vista do comércio internacional.

Imagine, no entanto, persistente leitor que ainda não abandonou a coluna que em dada indústria surja nova empresa, cujos preços são consideravelmente mais baixos que os das empresas tradicionais. Esta empresa irá provavelmente expulsar as mais antigas, reduzindo produção destas e, portanto, o emprego. Se este empresa se localizar em território nacional, chegará às capas das revistas, a despeito da “destruição criativa” que causou no seu setor.

Se, porém, esta empresa se localizar no exterior será objeto de editorial contrário, que ressaltará como ponto negativo a mesma “destruição” de emprego e produção saudada no caso anterior. Por que um acidente geográfico deveria levar a conclusões distintas?

Os mais ofendidos com o argumento acima irão levantar duas objeções. A primeira é que, no caso da nova empresa ser nacional, a produção e o emprego aqui permanecem, enquanto no segundo caso, migram para o exterior. A este respeito lembro o argumento já avançado no meu artigo anterior: a importação mais elevada permite, tudo o mais constante, que o BC baixe adicionalmente o juro. O emprego nesta indústria cai, mas a aceleração da demanda doméstica permitida pela importação criará empregos em outras indústrias. Aliás, não fosse isto, países com déficits comerciais viveriam em recessão crônica.

A segunda objeção diz respeito à taxa de câmbio. Setores que competiam com as importações em condições de superioridade sob determinada taxa de câmbio não conseguem fazê-lo sob outra taxa mais apreciada. Assim, o problema não seria tanto a importação em si, mas a taxa de câmbio, “artificialmente apreciada pelo diferencial de juros, etc., etc.”. Quanto a isto, sugiro dois pontos para reflexão.

(1) Quem é o iluminado que determina a taxa de câmbio “correta” para avaliarmos a real competitividade de cada setor industrial? Há vários candidatos a gênio, mas, francamente, quase todos associados a setores que têm muito a ganhar ou perder com a definição desta grandeza, e o leitor há de me perdoar não pôr muita fé nos “estudos” de defasagem cambial que volta e meia aparecem por estas plagas.

(2) O diferencial de juros entre o Brasil e os EUA caiu à metade nos últimos 18 meses e, a despeito disto, a taxa de câmbio seguiu se apreciando. Ao mesmo tempo as exportações seguiram crescendo a taxas robustas, enquanto os saldos comerciais e em conta corrente se mantiveram em torno de US$ 45 e US$ 13 bilhões respectivamente. À luz disto, pergunto ao raro leitor, o que há de artificial na apreciação do câmbio?

Assim, uma vez abandonada a contabilidade nacional como métrica do assunto, sugiro aos interessados o retorno à teoria do comércio internacional para aferir seus efeitos sobre a economia. A alternativa é o eterno retorno ao protecionismo de sempre.

(Publicado 21/Fev/07)

Cui bono?

No domingo (4/Fev/07) a Folha publicou um artigo sugerindo que as importações teriam reduzido o crescimento do PIB em 1,7 pontos percentuais no ano passado, pois parcela da crescente demanda doméstica teria sido atendida pelo aumento das importações em detrimento da produção nacional. Desta forma, argumenta o artigo, não fosse a expansão das importações, o crescimento do produto em 2006 poderia chegar a 4,5%, contra os 2,8% que se espera. Acredito, porém, que o argumento seja falho: confunde contabilidade nacional com análise econômica e, levado às últimas conseqüências, implica recomendações exóticas de política.

Nas contas nacionais as importações aparecem com um sinal negativo: como a demanda doméstica pode ser atendida pela produção local ou pelas importações, um aumento destas, para um dado nível de demanda, implica queda da produção local. Acontece, porém, que – seja no Brasil, seja em qualquer quadrante da galáxia – as importações apresentam tendência de crescimento, o qual é deduzido do aumento do PIB. Deveríamos concluir, portanto, que permitir o crescimento das importações reduz o ritmo de expansão econômica? Vejamos o caso do Brasil.

Segundo o IBGE as importações cresceram em 11 dos últimos 15 anos. Vale dizer, nestes 11 anos houve uma contribuição negativa das importações para o PIB na ótica das contas nacionais (média de -1,3%), enquanto nos quatro anos restantes a queda das importações contribuiu positivamente para o crescimento (média de 1,2%). Assim, se o raciocínio por trás do artigo citado estivesse correto, deveríamos esperar que nestes quatro anos o PIB tivesse crescido em média mais que nos 11 anos de importações em alta. No entanto, o crescimento médio nos anos em que as importações aumentaram foi de 3,3%; nos anos em que as importações caíram foi de apenas 0,8%, precisamente o oposto ao sugerido pela visão contábil, o que não ocorre por acaso.

De fato, o erro desta ótica consiste em ignorar os efeitos das importações sobre preços, juros e câmbio e, portanto, desprezar a reação dos demais componentes da demanda. Quando estas considerações são trazidas à tona percebe-se que o crescimento das importações desempenha ao menos dois papéis importantes para a expansão da demanda, fora efeitos positivos que possa ter sobre produtividade e expansão da oferta.

O primeiro é relativamente fácil de entender: a concorrência com produtos importados ajuda a manter preços sob controle, trazendo a inflação para baixo. O segundo, mais complexo e importante, refere-se à liberação dos recursos (capital e trabalho) empregados nos setores sujeitos à concorrência externa para a produção de outros bens e serviços. Ambos os efeitos contribuem para que a demanda doméstica possa crescer de forma mais vigorosa do que poderia na ausência das importações, graças às menores pressões inflacionárias.

Concretamente, o crescimento das importações permitiu em 2006 queda mais forte da taxa de juros e, portanto, uma expansão mais intensa de consumo e investimento. (A propósito, não sei de onde saiu o cálculo apresentado na matéria sobre o consumo aparente de máquinas e equipamentos ter caído no ano passado: a produção de bens de capital aumentou 5,7%, as importações 24%, e as exportações caíram 1%, o que matematicamente se traduz num aumento de 12% do consumo aparente).

Além disto, a recomendação de política econômica que se depreende da noção que a expansão das importações teria implicado menor crescimento do PIB é, no mínimo, extravagante. Se isto fosse verdade, seria possível acelerar o aumento do PIB reduzindo as importações a cada ano. Dado, porém, que a importação é uma grandeza finita (e, diga-se de passagem, não muito alta no Brasil, 12% do PIB), esta estratégia não poderia ir muito longe: para fazer o PIB crescer 1% ao ano a mais nos próximos quatro anos a queda das importações teria que ser da ordem de 8% ao ano, o que as reduziria à metade em pouco mais de oito anos.

Obviamente esta recomendação – ainda que agrade aos suspeitos de sempre – não faz o menor sentido. Sempre haverá, é claro, os que defendem uma maior proteção da produção local, mas esta se dará às expensas do menor crescimento do consumo e do investimento, ao contrário do ocorrido em 2006. Passar da contabilidade para a economia requer um pouco mais de esforço.

(Publicado 7/Fev/07)

Pacman

Segundo meu filho (15 anos, já metido a crítico literário) o título deste artigo é óbvio, tendendo talvez para o apelativo, mas não pude evitar. Comparar o devorador de fantasmas do videogame ao setor público brasileiro, devorador de recursos, pode ser precisamente a metáfora necessária para entender os limites do recém anunciado Programa de Aceleração de Crescimento (PAC).

Curiosamente, a discussão que resultou no PAC teve início nas propostas que, com o objetivo de acelerar o crescimento, pretendiam reduzir o gasto corrente do governo. Naquele momento cabeças pensantes no governo – que observavam a inexorável escalada do dispêndio público – já haviam percebido os mecanismos pelos quais a política fiscal comprometia a capacidade do país crescer de forma sustentável a taxas mais elevadas que as observadas nos últimos anos.

Por um lado a elevação constante do gasto “rouba” recursos do setor privado que poderiam ser usados para investimento e, portanto, crescimento mais vigoroso do produto. Como mostrei em meu primeiro artigo neste espaço, entre 1994 e 2005 o gasto público primário cresceu cerca de 8% do PIB; traduzido em perda equivalente para o setor privado. Adicionalmente, para financiar o gasto extra, os impostos subiram 9,4% do PIB no mesmo período. Como fica óbvio pelo aumento do gasto, contrariamente à opinião estabelecida, apenas a menor porção desta derrama foi destinada à elevação do superávit primário, aqui entendido como serviço da dívida.

Impostos mais altos, porém, também cobram sua fatura na forma de crescimento mais baixo, em particular caso sua elevação se concentre naqueles tributos que mais distorcem a alocação dos recursos e a remuneração dos investimentos. A política fiscal brasileira, portanto, conseguiu produzir uma rara combinação de fatores particularmente deletérios ao crescimento sustentado: por um lado menor disponibilidade de recursos; pelo outro lado uma redução no incentivo ao investimento. Notável ainda foi a capacidade de reduzir o investimento público ao mesmo tempo em que os gastos como um todo se expandiam vigorosamente, indicando a prevalência do gasto corrente no processo, o que agravou o problema do crescimento pelas deficiências de infraestrutura.

Neste contexto, nada parecia mais natural que um programa que controlasse a expansão do gasto corrente relativamente ao PIB. Os recursos poupados poderiam: (a) aumentar o superávit primário e reduzir mais rapidamente a dívida pública; ou (b) abrir espaço para redução da carga tributária; ou (c) permitir um aumento do investimento público; ou ainda (d) uma combinação das alternativas acima. Qualquer opção de (a) a (d) implicaria uma melhora relativamente à situação corrente, tanto maior quanto mais ambicioso e bem-estruturado fosse o programa de redução do gasto corrente vis-à-vis o PIB.

Não é de se estranhar, portanto, as esperanças que brotaram quando, após as eleições, apareceram notícias acerca da disposição do governo em finalmente implantar um ajuste fiscal de longo prazo. No entanto, o triste fato é que o programa anunciado formalmente esta semana pouco guarda do espírito original da proposta. O controle do gasto corrente foi adiado e em seu lugar encontramos uma nova rodada de aumento do gasto público, agora destinados a investimentos em infraestrutura.

Ainda que muitos destes projetos pudessem ser conduzidos pelo setor privado, sem impacto fiscal (ou com impacto limitado caso a estrutura de PPP fosse utilizada), foi dada preferência ao setor público. Ao invés de reforço do marco regulatório, que induzisse investimento privado, mais recursos públicos foram comprometidos, o que se traduz em redução adicional dos recursos disponíveis para o setor privado.

Assim, se o diagnóstico acerca do efeito negativo da política fiscal sobre crescimento for verdadeiro, o PAC não deverá ter efeitos significativos em termos de aceleração do crescimento. A disponibilidade de recursos para o setor privado não deve aumentar, nem será reduzida a carga tributária, de modo que não se pode esperar uma resposta em termos da expansão do investimento privado adicional à que já vem se materializando nos últimos trimestres. Nosso PACMAN continuará comendo os recursos disponíveis e, com eles, a esperança de acelerar o crescimento econômico.

(Publicado 24/Jan/07)

Pingos nos is

O debate econômico brasileiro é, com raras exceções, de baixa qualidade. Duas características negativas permeiam quase toda discussão: falta de quantificação e a virtual ausência de qualquer consideração acerca do uso alternativo de recursos, ou seja, do custo de oportunidade das políticas públicas. A discussão recente acerca do papel do setor público num programa de aceleração do crescimento não foge à regra: há os que defendem um aumento (adicional) do gasto público como forma de acelerar o crescimento sem atentar para os custos desta estratégia e com base numa visão que acredito ser equivocada acerca da eficiência do gasto público sobre o comportamento da demanda agregada.

Deixando de lado, por motivos de espaço, o papel (potencialmente relevante) do investimento público na superação de gargalos de infraestrutura, começo pela crença de que o aumento do gasto público em geral pode ter efeitos duradouros sobre a demanda agregada. Esta visão se baseia em modelos muito simples que costumam ignorar os efeitos da política fiscal mais expansiva sobre preços, juros e a taxa de câmbio. De fato, modelos um pouco mais sofisticados já chamam atenção para o fato de um aumento do gasto governamental implicar pressões sobre a inflação (e, portanto, sobre as taxas de juros) e apreciação da taxa real de câmbio, em particular em situações nas quais a economia já não tem tanta capacidade ociosa.

Com efeito, em condições de alta mobilidade de capital e taxa de câmbio flutuante espera-se eficácia muito baixa do gasto público para acelerar a demanda, essencialmente por conta do efeito negativo destes gastos sobre as taxas reais de câmbio e juros. Por outro lado estes modelos sugerem que a política monetária produz efeitos mais vigorosos.

Com base nisto buscamos (eu e minha colega Tatiana Pinheiro) estimar um modelo dinâmico que capturasse as interações entre o gasto público, câmbio, juros e a demanda doméstica privada (isto é, consumo e investimento) ao longo do tempo. Os resultados foram muito interessantes.

De acordo com nossas estimativas um aumento (equivalente a um desvio padrão) do gasto tende a estimular a demanda doméstica privada num período relativamente curto (apenas um trimestre), mas este efeito, após atingir seu pico no quarto trimestre, desaparece dois trimestres depois, em larga medida devido ao seu impacto sobre as taxas reais de juros.

Por outro lado, o resultado de mudanças nas taxas reais de juros é mais demorado, porém mais potente e duradouro. Com efeito, a redução (também equivalente a um desvio padrão) da taxa real de juros começa a afetar a demanda privada com cerca de dois trimestres de defasagem. No entanto, produz um efeito equivalente ao pico do gasto público (em termos de desvios padrão da demanda privada) também no quarto trimestre e, no seu próprio pico (sete a oito trimestres depois da mudança) gera um efeito cerca de três vezes maior que o gasto público, persistindo ainda por mais alguns trimestres.

Em outras palavras, nossos achados empíricos dão razão aos modelos teóricos que sugerem uma relevância maior da política monetária na determinação da demanda em pequenas economias abertas com câmbio flutuante. Muito mais importante que isto, porém, são as implicações do modelo para as políticas públicas, em particular para o Brasil em 2007.

A expansão do gasto público já encomendada para este ano acelera a demanda privada no curto prazo e, mesmo decaindo ao longo do tempo, “rouba” espaço para aceleração desta mesma demanda que poderia vir de uma queda da taxa de juros. Isto é, ao invés de permitir – por meio da contenção do gasto público, em particular do gasto corrente – uma queda mais forte da taxa de juros, a estratégia adotada impõe limites à redução adicional de juros, cujos efeitos são potencialmente maiores e mais persistentes.

Assim, em troca de uma aceleração no curto prazo, destinada a desaparecer num futuro não muito distante, abre-se mão de uma expansão que poderia vir de forma mais lenta, porém duradoura. Há, portanto, custos de oportunidade nesta estratégia de busca do aplauso fácil; ignorá-los pode ser uma forma de lidar com eles, mas não de fazê-los desaparecer.

P.S. Em resposta às muitas perguntas, eu não sei quem é Almotásim, mas, se for quem imagino, sequer mora no Brasil.

(Publicado 10/Jan/07)

Resposta a Almotásim

Recebo muitas mensagens no meu e-mail de contato. Afora insultos ocasionais, a interação com os leitores enriquece meu trabalho e sugere novos tópicos para os artigos. Um tema, que tem aparecido com certa freqüência – de onde imagino que há uma fonte, o Almotásim, disseminando esta idéia equivocada – diz respeito à relação da taxa de juros a que o Brasil pode tomar recursos no mercado externo e a taxa de juros que prevalece no país. Por que, perguntam, se o Brasil pode emitir títulos de 10 anos no exterior com rendimentos em torno de 6% a.a., a taxa doméstica de juros é tão mais alta?

Antes de entrar no caso brasileiro, peço ao leitor que considere dois exemplos. Os EUA têm uma avaliação de risco de crédito algo melhor do que o Japão, e poderiam, portanto, emitir títulos denominados em ienes a taxas, no máximo, iguais àquelas pagas pelo Tesouro japonês. Tomando como referência um título de 10 anos, os EUA poderiam emitir um papel denominado em ienes a uma taxa ao redor de 1,6% ao ano enquanto a taxa dos Fed Funds (o equivalente à Selic) é de 5,25%.

Por outro lado, as taxas de juros de Alemanha e França, países com risco de crédito similar, são praticamente idênticas, desde a taxa de curtíssimo prazo àquela que baliza os títulos públicos de 10 anos.

Por que, quando tratamos de Japão e EUA as taxas diferem tanto, mais altas para o país com crédito melhor, enquanto no outro caso as taxas são idênticas? A resposta passa pelos regimes cambiais vigentes nestes países.

Alemanha e França escolheram um regime extremo de fixação de taxa de câmbio: a adoção da moeda única. Neste contexto, diferenças entre as taxas de juros que não sejam associadas a diferenças de percepção de risco de crédito não podem persistir. Se as taxas de juros fossem mais baixas na França que na Alemanha, especuladores tomariam recursos na França e os emprestariam na Alemanha, embolsando a diferença. Este processo – conhecido como “arbitragem” – faz as taxas de juros convergirem para o mesmo patamar.

Por que, então, a arbitragem não parece funcionar no caso EUA-Japão? Porque a taxa de câmbio entre estes países é flutuante: se alguém toma recursos no Japão para emprestar no EUA, faz com que o dólar se aprecie com relação ao seu nível de equilíbrio (pois o arbitrador vende ienes e compra dólares), gerando uma expectativa de que o dólar vá, à frente, se depreciar. Em tese, a arbitragem cessa quando a apreciação corrente chega a um ponto no qual a depreciação esperada corresponde exatamente à diferença entre as taxas de juros americanas e japonesas. Note-se que, neste caso, a arbitragem afeta a taxa de câmbio, mas não as taxas de juros.

Assim, se no Brasil a taxa de câmbio fosse fixa (como é entre Alemanha e França), a taxa de juros doméstica não poderia ser muito diferente da taxa de juros paga pelos títulos brasileiros no exterior, dado que o risco de crédito em ambos os casos é praticamente o mesmo. Como, porém, a taxa de câmbio é flutuante, não há nenhuma força de mercado que faça estas taxas de juros se igualarem, como no caso das taxas de juros americanas e japonesas.

Isto dito, um leitor mais insistente poderia questionar se o BC não poderia desempenhar este papel, trazendo a taxa de juros doméstica para o patamar das taxas a que o país toma recursos em dólares, reduzindo a Selic para algo em torno de 6% a.a.?

A resposta para esta questão é a mesma que o leitor receberia se perguntasse ao professor Bernanke por que não reduz a taxa dos Fed Funds para o mesmo nível das taxas japonesas: porque esta taxa não é consistente com a manutenção da inflação em patamares próximos às suas metas. Nem o Fed mantém a taxa dos Fed Funds acima da taxa hipotética a que os EUA poderiam se financiar no mercado japonês, nem o BC mantém a Selic acima das taxas pagas pelo Brasil em dólares por ignorância, sadismo ou má-fé, mas porque têm razões para crer que estas taxas domésticas são aquelas consistentes com os objetivos que seus mandatos lhes conferem, no caso com as metas de inflação.

Na verdade, quem formulou a pergunta inicial aparenta desconhecer que (1) uma taxa é em moeda estrangeira e outra em moeda local; e (2) que a taxa de câmbio no Brasil é flutuante, não fixa. Esclarecido o assunto, espero que os leitores levem a resposta a Almotásim.

(Publicado 27/Dez/06)

Uma verdadeira proposta rudimentar

Parece haver uma crença generalizada acerca da existência de um almoço gratuito no atual arranjo de política monetária e fiscal no Brasil: bastaria cortar a taxa de juros para que o problema fiscal brasileiro fosse automaticamente resolvido. Como o custo da dívida pública gira em torno de 7,5% do PIB ao ano, sua redução para, digamos, 4% do PIB, “geraria” recursos de sobra para os investimentos urgentes em infra-estrutura, educação, saúde e, já que tocamos no assunto, um pouco mais de gasto corrente, que, afinal de contas, no entender de gente graúda, “é vida”.

Este raciocínio é, porém, rudimentar, para pegar emprestado adjetivo usado há não muito tempo. A carga tributária atingiu 37% do PIB no ano passado e, como o superávit primário de União, estados e municípios ficou próximo a 4% do PIB, a conclusão inescapável é que o gasto primário do setor público não pode ter sido inferior a 33% do PIB. Reduzir o juro para gastar a diferença implica, de fato, aumentar a participação do governo no produto. Não haveria “geração” mágica de recursos; apenas um aumento da fração do PIB absorvida pelo governo.

Uma variante desta proposta sugere apenas a queda do juro a fim de reduzir o déficit público (e, portanto, a dívida), objetivo sem dúvida meritório, mas que também parte do pressuposto que a taxa de juros não desempenha qualquer outro papel na economia que não o de encarecer a dívida pública (por sadismo, na melhor das hipóteses) e que, desta forma, poderia ser reduzida de forma brusca sem conseqüências para o restante da economia.

Este pressuposto é falho: mesmo que a Selic fosse reduzida à metade, o gasto primário e a carga tributária permaneceriam nos atuais patamares, senão em outros ainda mais altos. A disponibilidade de recursos para o investimento privado continuaria sendo limitada pela parcela do produto apropriada pelo governo e os efeitos negativos da imensa tributação sobre seu retorno ainda estariam presentes.

Não haveria, portanto, porque esperar uma aceleração fenomenal do investimento em resposta à queda da taxa de juros. O incentivo para investir, tudo o mais constante, provavelmente aumentaria, mas esta consideração captura apenas o lado da demanda por investimento; restaria saber se haveria oferta de recursos para suprir esta demanda adicional. A resposta é não, pois os recursos para investimento ainda teriam que sair dos 67% do PIB que sobram para o setor privado após o governo tomar sua parte.

A rigor o problema é ainda mais sério, pois em resposta à queda da taxa de juros toda a demanda privada, tanto consumo quanto investimento, cresceria, sem, todavia, expansão correspondente da oferta, a menos que (1) houvesse hoje uma subutilização maciça de recursos no país, o que está longe de ser verdade, como revelam, por exemplo, as medidas de utilização de capacidade instalada; ou (2) o governo reduzisse sua participação no PIB, cortando decisivamente seus gastos, o que também parece estar fora do reino das possibilidades, ainda mais à luz de declarações recentes do presidente e seus ministros.

Assim, se a taxa de juros não desempenhar o papel de fazer a demanda privada se ajustar à parte que lhe cabe do PIB depois do governo tomar sua parcela, outras forças o farão: ou a inflação se acelera para reduzir a demanda doméstica (por meio da queda do salário real), ou a taxa real de câmbio se aprecia para reduzir o superávit em conta corrente e permitir o crescimento da demanda doméstica (ou uma combinação de ambas). Obviamente, caso ao afrouxamento forçado da política monetária se seguisse ainda um aumento do gasto público, conforme a proposta inicial, o problema acima seria adicionalmente agravado.

A verdade é que enquanto o governo continuar se apropriando de um terço (ou mais) do PIB a taxa de juros consistente com a inflação sob controle permanecerá elevada. Só quando o problema do elevadíssimo gasto primário for atacado de forma consistente é que taxas de juros poderão cair para níveis internacionais. Manipular a taxa Selic para justificar aumento adicional do gasto público no Brasil só resultaria em inflação mais elevada sem alterar a capacidade de crescimento de longo prazo. Realmente, a falta de entendimento dos rudimentos de economia só poderia resultar numa proposta rudimentar.

(Publicado 13/Dez/06)

Selic a 10% não é inflacionária?

Meu amigo Paulo Tenani escreveu recentemente um artigo em que defendia a tese que a Selic a 10% não seria inflacionária. A tese pode até ser verdadeira (torço para que sim; acho que não, pelo menos nas atuais circunstâncias), mas não pelos motivos que o Paulo apontou no seu artigo.

São dois os argumentos. O primeiro parte de uma noção de arbitragem entre custos de captação do Brasil no exterior e a taxa Selic, que o Paulo chama de “aritmética de convergência dos juros”. Como o custo de captação caiu para algo em torno de 6,7% a Selic poderia cair para níveis inferiores aos atuais sem causar pressão no câmbio.

Este argumento é verdadeiro, mas ataca o alvo errado. Se o objetivo da política monetária fosse manter a taxa de câmbio num dado patamar a taxa Selic poderia de fato cair. Isto faria sentido num regime de câmbio administrado, em que a taxa doméstica de juros fosse determinada pela taxa de captação externa mais algum prêmio para compensar a desvalorização esperada e riscos de investimento no mercado doméstico, refletindo um fato conhecido há tempos pelos estudiosos de finanças internacionais: neste regime a política monetária deixa de ser autônoma, pois deve sustentar a taxa de câmbio.

Num regime de câmbio flexível, porém, é a moeda quem reage às taxas de juros. A política monetária passa a ter autonomia (não confundir com autonomia do BC) para perseguir objetivos domésticos, tipicamente a taxa de inflação, e o câmbio flutua ao sabor de diferentes variáveis. Buscar, dentro do regime flutuante, a paridade com os custos de captação externa pode até estabilizar o câmbio ao redor de certos níveis (desde que as demais variáveis não mudem muito), mas dificilmente seria consistente com o equilíbrio doméstico, entendido como uma taxa de inflação oscilando ao redor da meta. Mesmo que o câmbio não se depreciasse, ainda poderíamos ter pressões inflacionárias se originando da reação da demanda agregada à queda das taxas de juros.

Claro que o Paulo sabe deste constrangimento e seu segundo argumento busca exatamente refutar a noção que uma queda adicional de juros de 3,75 pontos percentuais causaria excesso de demanda. Segundo ele isto talvez (e Paulo sublinha o “talvez”) ocorresse porque o país – ao contrário do observado em seu passado hiperinflacionário – apresenta superávit em conta corrente, um sinal de demanda agregada abaixo da oferta agregada.

Mesmo deixando de lado o fato de o Brasil ter apresentado superávits (não déficits) em conta corrente em média nos anos imediatamente anteriores ao Plano Real, este argumento não fecha. Superávit em conta corrente implica demanda doméstica inferior à oferta agregada, mas a demanda agregada engloba também a demanda externa (ou seja, o próprio superávit em conta corrente). Vale dizer: superávit em conta corrente não é o mesmo que uma oferta excedente de 1,6% do PIB.

O Paulo sustenta ainda que demanda externa forte se materializa em moeda forte, não em estreitamento do hiato, o que não necessariamente verdade, pois depende precisamente da postura da política monetária. A este respeito sugiro observarmos o que vem ocorrendo com a Argentina, país que enfrenta condições internacionais semelhantes à brasileira, inclusive no que respeita à demanda por suas exportações, e que segue política monetária similar à sugerida pelo Paulo. Lá o superávit em conta corrente está em 1% do PIB, mas o câmbio nominal não sai do nível de 3 pesos por dólar e o hiato de produto tem se estreitado de tal forma que a inflação, mesmo com controles de preços, está em mais de 10%, enquanto os preços de serviços privados têm subido 18%. O fortalecimento do câmbio real argentino, que é a resposta ao crescimento da demanda externa, vem se dando pela aceleração da inflação, alimentada pela redução do hiato de produto, ou seja, demanda agregada crescendo mais que a oferta agregada.

Resumindo, ainda que a queda da Selic para 10% não causasse grande depreciação do câmbio, superávits em conta corrente não são garantia contra excesso de demanda e aceleração da inflação. Isto não quer dizer que devamos perder a esperança de ver taxas mais baixas no Brasil; apenas que os motivos apontados como razão para que uma queda brusca hoje não causasse inflação não resistem a um exame mais detalhado.

(Publicado 20/Nov/06)

Privatização “marvada”

Dizia Otto von Bismarck que nunca se mente tanto quanto antes das eleições, durante a guerra, e depois da pesca. Mas a verdade não foi a única a sofrer na guerra eleitoral: dentre suas vítimas destaca-se o processo de privatização, atingido por uma das muitas balas sem rumo disparadas nos últimos meses, ainda que, talvez, esta não tenha sido a rigor uma bala perdida. A desconfiança que cerca a privatização pode ter sido uma arma efetiva para a campanha; a despeito da visível melhora de desempenho das empresas privatizadas, persiste a suspeita acerca do processo.

Isto não chega a ser surpreendente, dado que mesmo membros da suposta elite intelectual do país ainda nutrem preconceitos sobre o assunto. De fato, li há pouco um articulista que argumentava ser falsa a alegação de que as receitas de privatização serviriam para reduzir a dívida. Afinal de contas, dizia, de que serviu privatizar as empresas, se a dívida cresceu no período?

Francamente, a lógica deste argumento não difere da do samba que afirmava: “eu bebo sim, estou vivendo/tem gente que não bebe está morrendo/tem gente que está com o pé na cova/não bebeu e isto prova/que a bebida não faz mal”.

Cometendo o pecado mortal de explicar a piada, o fato de alguns abstêmios morrerem enquanto alguns dipsômanos sobrevivem não diz muita coisa acerca dos efeitos da “marvada” sobre a saúde. Do ponto de vista médico, o que interessa é quantos anos a menos de vida teriam os falecidos abstêmios, caso tivessem um apego maior à garrafa, bem como quanto a mais poderiam esperar os amantes da cana se mostrassem menor apreço à dita cuja.

Da mesma forma, pode-se perguntar: quanto seria a dívida hoje, caso não tivesse havido o processo de privatização? Há, essencialmente, três efeitos para serem levados em conta. O primeiro diz respeito ao impacto direto das receitas de privatização sobre a dívida, que entre 1996 e 2006 representaram um ganho equivalente a 6,5% do PIB.

Só que o resultado não termina aí. Este ganho implica encargos menores da dívida com relação aos que ocorreriam em sua ausência. Mantidas as taxas de juros observadas no período, estimamos que o pagamento de encargos da dívida teria sido maior, caso não houvesse privatização, em um valor equivalente a 8,5% do PIB. Este é o segundo dos efeitos a que nos referíamos acima.

O terceiro efeito, com o sinal trocado, refere-se ao impacto do crescimento do PIB e da inflação sobre a relação dívida-PIB. Como a dívida, devido aos dois efeitos anteriores, foi menor do que teria sido sem a privatização, a corrosão da relação dívida-PIB pela inflação e crescimento do período também foi menor que seria com uma dívida mais elevada, um impacto negativo da ordem de 5,3% do PIB. Somando os três efeitos concluímos que dívida é hoje 9,6% do PIB menor que seria sem a privatização. Ao invés dos 50,1% do PIB observados em setembro deste ano, estaria em 59,7% do PIB.

Note-se que esta diferença, apesar de alta, muito provavelmente subestima o ganho real oriundo do processo de privatização. De fato, para chegar à nossa estimativa supusemos que as taxas de juros e de crescimento do produto teriam se mantido as mesmas na presença e na ausência da privatização, mas há bons motivos para crer que, no segundo caso, tanto as taxas de juros seriam ainda mais altas do que foram nos últimos 10 anos, como o crescimento do PIB seria ainda menor.

Para tanto basta pensar no peso que o processo de privatização teve para o ingresso de investimento direto no país, permitindo taxas de juros mais baixas do que seriam graças a um câmbio menos pressionado. Da mesma forma, considere os efeitos positivos para o crescimento do PIB oriundos do desempenho mais vigoroso das empresas privatizadas. Ambos os efeitos devem ter ocorrido, mas nenhum deles está presente em nossa estimativa.

Preconceitos à parte, o que realmente me surpreende é a tímida defesa da privatização a despeito de evidências consistentes acerca dos enormes benefícios que esta política trouxe ao país. Mesmo os envolvidos diretamente no processo parecem ter dificuldades de aceitar que a escolha de privatizar, bem com a de usar os recursos para abater a dívida, ao invés de gastá-los, foram as mais acertadas. Nas eleições, como na guerra, falta de convicção pode ser fatal.

(Publicado 15/Nov/06)

O câmbio e a navalha de Ockham

Os que acreditam que a apreciação do real nos últimos tempos resultou da diferença entre os juros domésticos e externos enfrentam agora um sério problema: desde meados do ano passado o diferencial de juros caiu à metade e, a despeito disto, a moeda não se desvalorizou. Será que estamos num mundo bizarro, onde certas leis econômicas valem num sentido e não em outro, ou, de forma mais simples, trata-se apenas da habitual mistura de desprezo pela teoria combinado à ausência de investigação empírica? Seguindo o venerável princípio da navalha de Ockham, creio que a alternativa mais simples é também a verdadeira.

Comecemos pela diferença entre o que dizem os modelos econômicos consagrados e sua interpretação mais pedestre. Diz a boa teoria, apoiada pelos testes empíricos, que o diferencial de juros, ajustado pelo risco, deveria corresponder à depreciação esperada da moeda. Assim, quando este diferencial aumenta, a cotação corrente da moeda deve ficar mais distante de seu valor esperado, aumentando a expectativa de desvalorização; quando o diferencial se reduz, a cotação à vista deve se aproximar da taxa esperada para o futuro, reduzindo a expectativa de depreciação.

Alguns interpretam esta relação sem levar em consideração o comportamento das expectativas sobre futuras taxas de câmbio, omitindo que a relação se dá entre o diferencial de juros e a desvalorização esperada da moeda, não necessariamente seu nível corrente. O aspecto central da teoria de formação de taxa de câmbio, conhecido desde meados dos anos 70, não tem sido considerado na maioria das análises do tema. Também tem sido omitido o papel do risco-país neste processo, cujas variações corresponderiam a mudanças da taxa externa de juros: um aumento do risco tende a depreciar a moeda, enquanto uma redução leva à apreciação da moeda, sempre em relação à expectativa da taxa futura de câmbio.

Falta, por fim, quantificação ao debate. No entanto, é possível mostrar, por meio de um trabalho estatístico cuidadoso, em que medida juros e risco-país afetam a desvalorização esperada. E os resultados dos testes mostram que, de fato, a desvalorização esperada no Brasil reage exatamente como prevê a teoria em resposta a mudanças do diferencial de juros e do risco-país.

Assim, voltando à questão inicial, por que a substancial redução do diferencial não levou à depreciação do real? Por um lado porque o risco também caiu significativamente, reduzindo o impacto da queda do diferencial de juros. Segundo, porque o câmbio esperado – respondendo às boas perspectivas do balanço de pagamentos – se apreciou, como é possível inferir a partir das expectativas coletadas pelo Banco Central. Isto reduz a desvalorização esperada e restringe a depreciação do nível corrente da moeda. Desconhecer estes fatos limita o entendimento dos motivos pelos quais a moeda tem se mantido estável, a despeito da forte queda de juros domésticos e de uma elevação considerável dos juros internacionais.

No entanto, se a taxa de câmbio não se depreciou mesmo com juros menores, seria ainda possível indagar porque o BC não se aventuraria a baixar adicionalmente os juros, com vistas a compensar os efeitos acima descritos e tentar forçar a desvalorização do real. A resposta para isto envolve a compreensão de dois temas intimamente ligados.

O primeiro é que no regime brasileiro a taxa de juros é usada para controlar a inflação, não a taxa de câmbio. Só por um acaso extremamente improvável, a taxa consistente com a inflação na meta seria aquela congruente com o nível de câmbio que demiurgos apregoam como o “correto” para o país. Ainda assim, qualquer perturbação, por menor que fosse, destruiria esta precária coincidência.

Ademais, mesmo que o BC passasse a perseguir uma meta de taxa de câmbio, abandonando a meta de inflação, o próprio aumento da inflação trataria de corroer esta taxa, como tão bem mostram as experiências do Brasil (no passado) e da Argentina (no presente). Na teoria e na prática, ter uma meta para a taxa nominal de câmbio não implica qualquer garantia sobre o nível da taxa real de câmbio que irá vigorar. De fato, o preconceito contra a teoria e descaso pelos fatos proporcionam, como seria de se esperar, uma base muito pobre para recomendações de política econômica.

(Publicado 1/Nov/06)

Phelps e a política monetária (ou: não adianta aumentar a meta)

Edmund Phelps, ganhador do Nobel de Economia de 2006, conseguiu algo que raros economistas alcançaram: em sua contribuição teórica, publicada em 1968, antecipou problemas que só viriam a se materializar nos anos 70. Só isto já valeria o prêmio, pois, em geral, mesmo grandes economistas só resolvem os problemas depois que eles apareceram. Mas a relevância da contribuição de Phelps vai além desta peculiaridade: criou, junto com Milton Friedman, as fundações da moderna política monetária e lançou as bases do pensamento neokeynesiano na macroeconomia.

Esta última afirmação pode parecer surpreendente, pois ainda há os que – por desconhecimento da evolução da teoria macroeconômica nos últimos 30 anos – classificam Phelps como um monetarista, o anti-keynesiano por excelência. Nada mais longe da realidade, embora o autor tenha, de fato, chamado a atenção para um erro fundamental dos cânones do keynesianismo à época. Nos anos 60 acreditava-se haver uma relação estável de troca entre inflação e crescimento: se determinado país queria crescer mais rápido, havia um preço a ser pago na forma de inflação mais alta; se quisesse inflação menor, o custo seria crescimento mais baixo. Caberia ao Banco Central expressar a preferência da sociedade numa combinação ótima de inflação e crescimento.

Phelps e Friedman, porém, mostraram que a inflação só pode acelerar o crescimento, e mesmo assim por um período muito curto, se não for antecipada pelo público. Realmente, se os contratos salariais embutem uma expectativa de inflação de 5% e a inflação atinge 10%, a queda dos salários reais estimula a expansão do emprego e o crescimento. À medida, porém, que os agentes incorporam as expectativas inflacionárias aos seus contratos estes efeitos desaparecem: a inflação torna-se mais alta, mas a economia não consegue crescer persistentemente acima do seu potencial, como se observou nos anos 70. Isto dito, se apenas a inflação não antecipada pode ter algum efeito de curto prazo sobre o crescimento, fica patente a falta de sentido da crença que uma meta mais elevada de inflação possa trazer os ganhos esperados por alguns economistas pátrios.

Outra conseqüência relevante deste raciocínio diz respeito à desinflação: se o Banco Central não consegue convencer a sociedade acerca do seu compromisso com a queda da inflação, os custos para reduzi-la serão elevados, como o exemplo americano dos anos 80 demonstrou. O problema é que qualquer Banco Central – uma vez firmados os contratos no setor privado – sempre sofrerá enorme tentação para elevar a inflação de modo a ganhar, ainda que no curto prazo, um pouco a mais de crescimento. No entanto, como as pessoas sabem disto, acabam embutindo em seus contratos taxas crescentes de inflação, que o Banco Central, por não querer causar uma recessão, acaba por sancionar, prendendo a economia num equilíbrio perverso.

Para convencer a sociedade acerca do seu compromisso o Banco Central deve, a exemplo de Odysseus, amarrar-se de forma a garantir que não atenderá ao canto das sereias de plantão, ou seja, não surpreenderá a sociedade com taxas de inflação mais elevadas. Assim, ao longo dos anos, várias formas de amarras foram tentadas: de taxas de câmbio fixas a metas de expansão monetária, com razoável grau de sucesso no que diz respeito à inflação, à custa, por vezes, de outras distorções.

A forma de compromisso que até hoje obteve mais sucesso em coordenar as expectativas de inflação dos agentes privados e, graças a isto, obter queda da inflação com os menores custos em termos de produto tem sido o regime de metas para a inflação. Assim, entre 2003 e 2006 o BC brasileiro fez uma desinflação mais forte que a promovida pelo Fed sob a regência do mítico Paul Volcker, com sacrifício muito menor de produto. Não por acaso a imensa maioria dos países com inflação sob controle pratica precisamente este regime de política monetária e o próprio Fed anda discutindo sua possível adoção.

Um Nobel por antecipar a estagflação dos anos 70, lançar as bases para o entendimento dos custos da desinflação nos anos 80, e preparar o terreno para a adoção do regime de metas para a inflação nos anos 90 não me parece imerecido. Raras são as contribuições mais relevantes à ciência econômica.

(Publicado 18/Out/06)

O paradoxo dos juros

Para um país que chegou a ser visto como paradigma de crescimento rápido, o desempenho brasileiro é, sem dúvida, frustrante. Há anos o Brasil cresce pouco, ainda que haja indicações de uma aceleração – modesta, é verdade – no período mais recente. Por conta disto virou lugar-comum atribuir aos juros altos as mazelas do baixo crescimento. Já eu creio que se trata justamente do oposto: o país não cresce pouco porque os juros são altos; os juros são altos pelo mesmo motivo porque o país cresce pouco.

Se me sobrou algum leitor depois da frase acima, passo à explicação. O crescimento acelerado da economia brasileira foi interrompido em algum momento da década de 80, menos por conta da crise da dívida e mais por conta do completo desarranjo macroeconômico que vivemos até 1994, expresso na nossa longa hiperinflação. Uma vez estabilizada a inflação, o crescimento foi abortado pelas seguidas crises de balanço de pagamentos, até a superação da restrição externa em anos mais recentes. Passadas, portanto, a hiperinflação e a vulnerabilidade externa, esperava-se que o país entrasse mais uma vez na rota do crescimento acelerado. Houve, de fato, alguma aceleração, mas longe, muito longe, dos nossos anseios. Por quê?

Porque nos últimos anos, como procurei mostrar no meu primeiro artigo neste espaço, houve um crescimento vertiginoso do gasto público primário, financiado por expansão não menos desenfreada da carga tributária. Menos mal seria se este aumento fosse destinado a investimentos públicos, que aumentassem a capacidade de crescimento a longo prazo. Mas não: houve expansão do gasto público corrente, em particular o previdenciário, às expensas do investimento público, que só fez cair durante todo o período. Cerca de 60% da expansão do PIB entre 1994 e 2005 foi consumida pelos gastos públicos correntes.

Completando o cenário, o aumento da carga tributária promoveu mais um golpe contra o crescimento, reduzindo o incentivo ao investimento, à inovação e ao trabalho. Se há algum milagre brasileiro, é conseguir ainda crescer (mesmo que pouco) com esta combinação particularmente perversa de política fiscal.

A política monetária é praticada contra este pano de fundo. Compete à taxa de juros equilibrar o crescimento da demanda ao da oferta. Se isto não for feito, caberá à taxa de inflação fazer o serviço, em geral por meio da redução da renda real (e, portanto, consumo), bem como pela redução do investimento que se segue a taxas elevadas de inflação.

No entanto, se por um lado a capacidade de crescimento da oferta é limitada pela política fiscal, enquanto por outro lado esta mesma política fiscal pressiona a demanda, resta à taxa de juros a inglória tarefa de fazer a demanda caber dentro da oferta. Esta simples equação explica a maior parcela da alta taxa de juros requerida para manter o equilíbrio interno.

Ainda assim, temos atingido novos patamares de juro real no Brasil que, se ainda altos, são os menores da história recente. Colaborou para isto a redução do risco associado ao pagamento da dívida pública, bem como a redução da volatilidade da inflação e da própria taxa de juros, na medida em que deixam de ser incorporados às taxas de juros prêmios de risco para compensar o investidor por estas incertezas. O progresso nos últimos anos foi notável nesta área, o que provavelmente explica estarmos desbravando novos territórios no que se refere à taxa real de juros observada.

Isto dito, enquanto não for atacado sério problema de gigantismo do Estado brasileiro, medido pelo tamanho dos seus gastos como proporção de produto, o crescimento da oferta a longo prazo continuará baixo e baixo, portanto, terá que ser o crescimento da demanda. Adicionalmente, se mais demanda provier do setor público, menos poderá vir do setor privado e não só a taxa real de juros terá que permanecer relativamente alta, como o taxa real de câmbio também terá que se ajustar à crescente demanda do setor público.

Em outras palavras, juro alto e câmbio baixo – combinação contra a qual se insurgem os autodenominados “desenvolvimentistas” – são o resultado de uma política fiscal perversa. Mas, sem entender o que está por trás desta combinação, a crítica comum às taxas de juros e câmbio equivale a matar o mensageiro, sem ter sequer entendido a mensagem.

(Publicado 4/Out/06)

Pacote cambial: expectativas X realidade

Foi há pouco editada a Medida Provisória 315 alterando certas características da legislação brasileira de câmbio e capitais estrangeiros. Tendo trabalhado nestes temas no Banco Central me confesso desde já suspeito para avaliar os méritos das medidas ali propostas. No entanto, é precisamente o que vou fazer. Meu primeiro ponto: se alguém acha que estas medidas terão impactos dramáticos sobre a taxa de câmbio prepare-se para profunda decepção. Meu segundo ponto: independente de qualquer efeito sobre a taxa de câmbio as medidas são bem-vindas no sentido de reduzir custos de transação associados à atividade exportadora, de reduzir o custo de capital das empresas exportadoras e, finalmente, de corrigir problemas que vigoravam há décadas.

O aspecto mais conspícuo da MP diz respeito à eliminação (parcial) da “cobertura cambial”, isto é, da obrigatoriedade da conversão das receitas de exportações em reais. Houve quem propusesse tais medidas pela crença que a venda forçada de moeda estrangeira estaria deprimindo a taxa de câmbio e prejudicando a rentabilidade do setor exportador. Sinto desapontá-los, mas, se nutrem alguma ilusão a respeito, estão prestes a serem desmentidos pelos fatos.

Já em março de 2005 o Conselho Monetário Nacional havia definido prazo de 210 dias para internação destes recursos. Se fosse real a crença que só à força os exportadores trariam seus dólares, aquela mudança deveria ter feito o prazo médio entre embarque e fechamento de câmbio se aproximar dos 210 dias, ou, pelo menos, aumentar muito. Como nenhuma das duas coisas ocorreu, fica difícil escapar da conclusão que a cobertura cambial não era uma restrição efetiva. Logo, retirá-la não deve mudar a perfil de ingresso de dólares, nem afetar a taxa de câmbio.

Isto não quer dizer que a eliminação da cobertura em si seja inócua. Mesmo sem afetar a taxa de câmbio, a dispensa de internação de parcela das receitas externas (bem como o contrato simplificado de câmbio) reduz bastante os custos de transação das empresas, em particular as que exportam e importam muito. Insere-se, assim, na categoria das reformas microeconômicas, cujo objetivo é melhorar o clima de negócios no país.

Do ponto de vista do financiamento das empresas exportadoras o fim da cobertura cambial também deve ter efeitos positivos. Mesmo podendo manter apenas 30% de suas receitas no exterior, a percepção de risco associada a estas empresas deve se reduzir com relação à do país. De fato, estes recursos – num caso hipotético de restrições às remessas – poderiam ser usados para pagamento de dívidas destas empresas. Menor risco implica menor custo de capital, e, portanto, um incentivo para investimento do setor exportador.

A outra medida contida no pacote cambial tampouco deverá ter efeito significativo sobre a taxa de câmbio. Trata-se da extensão dos registros de capitais externos em reais para valores que, ao longo dos últimos 44 anos, não puderam obter registro junto ao BC nos moldes da Lei 4131. Muitas empresas sérias, de longa tradição no país, enfrentavam problemas associados ao serviço destes capitais, que poderão ser resolvidos neste novo marco legal. Isto dito, se alguma pressão sobre o câmbio pode resultar do serviço adicional, não se pode esquecer que a resolução de um problema de longa data associado ao capital estrangeiro no país melhora a sua atratividade para investimentos diretos, com efeito inverso, e está longe de ser claro qual destes efeitos prevalecerá.

Assim, as medidas são positivas no sentido de reduzir custos de transação e custo de capital, bem como resolver problemas ligados ao registro de capital no Brasil, porém não devem afetar a trajetória de câmbio em nenhuma direção preestabelecida. Eu, pessoalmente, preferiria a eliminação total, não parcial, da cobertura cambial, mas a direção da mudança é mais que correta.

Restaria saber se estas mudanças poderiam deixar o país mais vulnerável. A este respeito sugiro a seguinte reflexão: se a legislação cambial restritiva fosse tão eficiente para prevenir crises como alguns acreditam, como explicar as seguidas crises que o país passou nos 73 anos em que esteve em vigor? Vulnerabilidade se enfrenta com um bom arcabouço de política econômica; restrições deste tipo servem apenas para introduzir mais distorções numa economia já repleta delas.

(Publicado 20/Set/06)

Ajuste fiscal ou morte!

A carga tributária no Brasil em 2005 atingiu um novo recorde: os governos federal, estaduais e municipais arrecadaram o equivalente a 37,4% do PIB. O recorde não é só histórico: entre os países de renda per capita semelhante à brasileira não há quem se aproxime em termos de carga tributária; neste quesito somos mais parecidos com os países ricos do que com os assim chamados emergentes. Antes, porém, de subir ao pódio e cantar o hino vale a pena um pequeno esforço para entender o porquê de carga tão elevada, bem como suas prováveis conseqüências para o país.

Dados do Banco Central mostram que, em 2005, os mesmos entes que coletaram os tributos acima registraram um superávit primário da ordem de 4% do PIB. Isto significa que, sem considerarmos as receitas não tributárias das diferentes esferas de governo, o gasto público consolidado, exceto juros, atingiu, no mínimo, a marca de 33,4% do PIB.

Repetindo este mesmo cálculo simples de 1991 para cá estimamos que em 1994, ano da estabilização da inflação, o gasto público primário teria atingido cerca de 25,5% do PIB. Isto é, entre 1994 e 2005 o gasto primário aumentou pouco menos de 8% do PIB. Para quem possa ter receio de possíveis distorções originadas de comparações pontuais, o cálculo para o período pré-estabilização (1991-94) chega a uma estimativa de gasto público primário de 24,3% do PIB; para o período 2002-05 mostra gastos de 32,3% do PIB. Também aí chegamos a uma estimativa de expansão do gasto primário equivalente a 8% do PIB.

Isto dito, de 1994 a 2005 a carga tributária se expandiu de 29,5% para 37,4% do PIB (uma diferença de 7,9% do PIB). De 1991-94 para 2002-05 o crescimento foi um pouco maior, 9,4% do PIB (de 26,6% para 35,9%).

A conclusão, inescapável, é que o aumento da carga tributária serviu primordialmente para financiar o gasto primário, que vem em trajetória crescente praticamente ininterrupta desde 1991, independente da coloração partidária do governo da ocasião, em particular quando ficou claro que o financiamento por meio da expansão da dívida pública não era mais viável. Apenas uma parcela menor do aumento da carga ao longo destes anos (equivalente a 1,4% do PIB) destinou-se ao aumento do superávit primário das três esferas de governo.

No entanto, tão relevante quanto a origem do problema é a conseqüência negativa desta alteração radical da política fiscal no Brasil sobre capacidade de crescimento do país no longo prazo. Esta não é difícil de entender.

Em primeiro lugar o gasto público disputa o produto do país com o consumo privado, o investimento e o saldo em conta corrente. Numa situação como a vivida pós-94 em que a utilização de recursos do país me manteve, de maneira geral, em níveis elevados, o aumento do gasto primário reduz a disponibilidade de produto para o investimento. Isto poderia ser (hipoteticamente) compensado se o aumento do gasto primário fosse destinado ao investimento público. Porém, no Brasil conseguimos a proeza de aumentar o gasto corrente público em (bem) mais que 8% do PIB, levando à conseqüente queda do investimento.

Em segundo lugar, o aumento da carga deu-se primordialmente pela expansão dos tributos que mais distorcem a alocação de recursos e o retorno dos investimentos. Vale dizer: não contentes em reduzir a disponibilidade de produto para o investimento, reduzimos ainda o seu retorno esperado. Há forma mais eficiente de reduzir a capacidade de crescimento do país?

Estes números estão disponíveis há anos, mas não têm chamado maior atenção. Agora, porém a mídia parece ter finalmente acordado para o problema, após anos de elucubrações acerca do caráter “neoliberal” do ajuste fiscal produzido pelos economistas “conservadores” (o que explica os terremotos nas proximidades do túmulo de Hayek).

No entanto, se a mídia despertou, há muitos que ainda não. As reações que enterraram a proposta de limitar a expansão do gasto corrente a valores inferiores ao crescimento do produto mostram que falta ainda a compreensão da gravidade do problema a parcela significativa de nossa elite intelectual e política. Ou talvez mostrem apenas que atribuir aos culpados de sempre o baixo desempenho do país seja uma estratégia bem mais fácil que pegar o touro do ajuste fiscal pelos chifres.

(Publicado 6/Set/06)