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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Comentários sobre o artigo “Existe doença holandesa no Brasil?” de Luiz Carlos Bresser Pereira e Nelson Marconi

Ler o artigo do Bresser Pereira e Marconi exige um bocado de masoquismo e paciência. As idéias e conceitos são muitas vezes indefinidos ou confusos - tenho certeza que um bom editor poderia melhorar aquele texto consideravelmente.

Mas como diria o poeta beatnik, vamos à substância!

No mundo descrito pelos autores existem dois tipos de bens comercializáveis: (1) bens ricardianos em que existem rendas econômicas e presumivelmente uma oferta inelástica (aliás um premissa bem equivocada); e (2) bens em cuja produção existem efeitos externos como retornos crescentes ou forward/backward linkages (os autores não parecem saber ao certo qual a fonte desses efeitos externos, o que veremos mais tarde, prejudica sua discussão de política econômica) e cuja oferta é elástica com relação à taxa real de câmbio.

Uma questão emerge então: um boom no setor ricardiano tenderia a apreciar a taxa de câmbio efetiva e sugar os recursos/fatores do setor gerador de efeitos externos. É a doença holandesa que toma tanta atenção e preocupação dos autores.

Estes aplicam o modelo para a economia brasileira. Dos anos 30 até 1992, tarifas de importação e subsídios a exportação de manufaturados (que os autores associam com os efeitos externos) teriam reduzido a lucratividade relativa do setor ricardiano assim pondo em cheque a tendência para a taxa real de câmbio se apreciar. Com a abertura econômica, - que os autores, em um momento esquizofrênico, elogiam na nota de rodapé #15 - este modelo teria sido desmontado, ficando assim o Brasil exposto a tal doença holandesa, e gerando a tal mal fadada desindustrialização.

Problemas abundam na argumentação dos autores.

Vou começar com os fatos.

Desindustrialização desde 1992? Logo no primeiro parágrafo, a primeira bomba detona: “a doença holandesa vem de fato desindustrializando o país desde 1990/92, quando foram eliminados os mecanismos de sua neutralização”. Uma palavra para definir esta sentença: pataquada!

Primeiramente, André Nassif (2008) mostra claramente que não houve desindustrialização no Brasil durante o período em questão: a participação da indústria de transformação no PIB tem se mantido constante desde o começo dos anos 90 (gráfico 4). Segundo, existe evidência de ganhos substanciais de produtividade na primeira metade dos anos 90 relacionados à abertura comercial (Nassif, gráfico 1; mas vide também Ferreira e Rossi, 2003); mais interessantemente, segundo os dados pré 1990 de Nassif (2008) cuja qualidade eu não posso garantir, o período em que houve uma desindustrialização massiva no país foi exatamente durante o governo Sarney do qual um dos autores foi ministro, e quando vários membros célebres da quermesse estavam pilotando nossa política industrial.

Em resumo, o artigo começa com uma pataquada.

Os autores provavelmente sabem disso e aparentemente internalizaram o fato que não houve uma redução na participação dos manufaturados no valor adicionado total na economia brasileira. Mas os fatos não movem ou comovem os autores, que assim passam a buscar alguma, qualquer, definição de desindustrialização que se ajuste a seu conto da Carochinha. Mas tal empreitada não é fácil! Afinal, como sabemos de Nassif (2008), a composição de nossas exportações não colabora com a tese: a participação do setor de alta tecnologia dos produtos manufaturados aumentou de 5.5% para 8.0%; e o setor de baixa tecnologia aumentou de 21.6% para 23.5% de nossas exportações durante o período de 1989 a 2005.

Então temos a seguinte situação: os autores provavelmente sabem que a participação da indústria de transformação no PIB insiste em não declinar; e que as manufaturas de alta e média tecnologia insistem em aumentar sua participação em nossa pauta de exportações... O que fazer? Diz o manual do keynesiano de quermesse que para cada conto da Carochinha pode ser criada uma estatística que - mesmo não confirmando o conto - pode confundir os incautos e distraídos! E assim eles procedem. O que importaria para os autores seria a participação dos manufaturados dentro do grupo dos bens comercializáveis (isto é, manufaturados mais commodities).

Primeiramente, esse conceito é non-sense, absurdo e os autores merecem ser motivo de gracejos pelas costas e torta na cara por isso. Afinal, segundo o conceito de Bresser Pereira e Marconi, um país que tem 10% do PIB em manufaturados, 0% em commodities e 90% em serviços e que passa a ter 20% em manufaturados, 5% em commodities e 75% em serviços é um país que passou por uma desindustrialização: no primeiro momento os manufaturados respondiam por 100% dos comercializáveis, caindo depois para 80%!

O conceito não é apenas ridículo como artefato estatístico, mas também teoricamente. Se a produção de manufaturados gera efeitos externos, o conceito relevante é a proporção de manufaturados no valor adicionado ou PIB. Outros autores argumentam que o ato de exportar gera efeitos externos porque exportar requer estabelecimento de padrões de qualidade, de administração etc. Mas a fábula de que o saldo comercial é relevante para os tais efeitos externos escapa minha capacidade de compreensão.

Mas os problemas teóricos continuam:

Falácias sobre efeitos externos. No centro do argumento dos autores está a hipótese que o setor ricardiano não geraria efeitos externos. Tal hipótese, entretanto, não encontra respaldo algum na literatura de história econômica brasileira. O setor cafeeiro trouxe as ferrovias e com elas a metalurgia para o estado de São Paulo. Vide Suzigan (1986), e também a tese de doutorado do Robert Nicol, que é colega de longa data de um dos autores. Além disso, os setores da indústria cujas exportações mais se contraíram em tempos recentes foram têxteis, vestuário, calçados, metalúrgica básica, os quais eu não descreveria como prováveis fontes de grandes inovações tecnológicas e efeitos externos; enquanto os setores da indústria cujas exportações mais cresceram foram os setores de equipamentos de transporte aeronáutico, veículos automotores e material eletrônico, aparelhos e equipamentos de comunicação (Nassif 2008, Tabela 2).

Resumindo o que temos até agora: não existe evidência de desindustrialização, assim como não existe evidência alguma que manufaturados necessariamente geram mais efeitos externos que commodities, e ainda que isso fosse verdade, os setores dos manufaturados que presumivelmente gerariam maiores efeitos externos são exatamente aqueles que têm tido performance superior nos últimos 20 anos.

Mas a bizarrice continua nas recomendações de política. Escapa-me entender por que os autores focam nas políticas comerciais e cambiais para internalizar os presumidos efeitos externos do setor de manufaturas.

Primeiro, existe evidência bem convincente que restrições comerciais são detrimentais ao crescimento econômico (por exemplo,o recente artigo de Taylor e Estevadeordal, 2008). Uma viagem para Cuba também pode ilustrar bem o efeito de restrições comerciais.

Segundo, nossa própria experiência com restrições comerciais não deixa margem de dúvida sobre seu fracasso, inclusive o inferno que recaiu sobre nossas cabeças durante o governo do qual o professor Bresser Pereira foi ministro, em que a evidência disponível sugere ter ocorrido o maior processo de desindustrialização de nossa história, em parte devido a políticas industriais tão obviamente fadadas ao fracasso que nem o maior e mais cínico inimigo do Brasil teria a audácia de propor (exemplo: Lei de Reserva de Informática).

Terceiro, a competitividade por meio de câmbio desvalorizado provavelmente pode comprar uma sobrevida adicional para o setor calçadista, ao custo de reduzir o salário real da grande maioria dos brasileiros, mas se os autores realmente acreditam que existem efeitos externos relevantes no setor manufatureiro, tais externalidades deveriam ser resolvidas com política industrial localizada, não com medidas que afetam todos os setores de atividade, como a política cambial.

Quarto, os autores não sabem, ou se negam a explicar, a natureza dos efeitos externos que eles associam à atividade manufatureira. Em um trecho eles parecem estar se referindo a retornos crescentes. Se este for o caso, política cambial não é o instrumento adequado, mas sim política industrial seletiva visando maximizar a escala de um pequeno grupo de setores. (Aliás, se retornos crescentes forem preponderantes, provavelmente a melhor política cambial deve ser deixar o real apreciar ao ponto de reduzir a competitividade dos setores industriais marginais e assim reduzir a diversificação da pauta de produção industrial). Em outro trecho, eles parecem estar se referindo a forward/backward linkages, mas os autores não apresentam um exemplo sequer que corrobore a tese que efeitos externos são mais importantes nas manufaturas em geral do que nas commodities que nós exportamos em particular.

Referências

Ferreira , Pedro Cavalcanti e José Luiz Rossi, 2003, New Evidence from Brazil on Trade Liberalization and Productivity Growth, International Economic Review, Vol. 44, No. 4, pp. 1383-1405. http://www.jstor.org/stable/3663656?

Nassif, André 2008, Há evidências de desindustrialização no Brasil? Revista de Economia Política v. 28, pp. 72-96. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-31572008000100004&script=sci_arttext

Suzigan, Wilson, 1986 “Indústria brasileira: origem e desenvolvimento”

Taylor, Alan e Antoni Estevadeordal, 2008 “Is the Washington Consensus Dead? Growth, Openness, and the Great Liberalization, 1970s-2000s,” NBER Working Papers 14264.

Introdução

Caros leitores do MãoVisível,

Este é meu primeiro post, inaugurando minha participação como um dos portadores das chaves do boteco aqui.

Alguns de vocês tem se perguntado, afinal quem é o “O”? Outros inclusive especularam que eu seria algum professor famoso e influente ou ex-diretor do Bacen. Que nada! “O” é não só anônimo, mas também um anônimo. Posso lhes garantir que revelar meu nome não teria nenhum grande efeito, nem meu nome seria precedido de fanfarra e clarinetas.

Outra pergunta é sobre minhas credenciais. Mas por que isso seria relevante? Digamos que eu tenha de fato uma carreira ou diploma mais impressionantes que A ou B. É possível que eu tenha mesmo. Mas se isso for o caso, eu prefiro vender meus argumentos sem tentar impressionar os leitores com argumentos de autoridade. De modo oposto, talvez eu seja um mero pensadorzinho sem realizações do que se orgulhar, mas que gostaria de ter um diálogo com sumidades da economia tupiniquim sem ser vitimado pelas minha falta de credenciais.

Entretanto, como já revelado aqui, sou de fato um doutor em economia. Com diploma de uma escola bona fide, credenciada, reconhecida etc. Tenho também um emprego que me confere um grau satisfatório de respeito de meus pares, ainda que seja e queira continuar a ser um anônimo, ”O” anônimo.

E paremos com as introduções e vamos ao essencial.

Meu objetivo aqui é dar minha contribuição para fazer um Brasil melhor. Vou fazer meu melhor para romper um pacto de complacência com trabalho de qualidade duvidosa na pesquisa econômica sobre o Brasil; vou elogiar e colocar no holofote quem fizer por merecer; e tentar disseminar pesquisa de qualidade.

Duvido que vou poder contribuir com tanta frequência como nos últimos dias, afinal estou de férias agora! E paro por aqui, porque quero terminar a resenha do Bresser-Marconi antes do final do ano.

Morte, impostos e incentivos

Incentivos são tudo.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Para fechar o ano com uma excelente notícia

Tio "O" agora faz parte do grupo de autores do blog, acrescentando em muito o que já vinha na forma dos seus comentários. Eu estou muito feliz com a novidade. Em breve poderemos defrutar das análises e do profundo conhecimento do criador do termo "keynesiano de quermesse".

"O": bem-vindo.

Bom ano a todos!

Alex

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Os Panetones do Sr. Oreiro

Quando alguém aponta um erro na análise, há basicamente três reações possíveis.

A melhor delas é agradecer quem apontou o erro, corrigi-lo, e melhorar o trabalho.

A segunda é fingir que não ouviu.

A terceira, e certamente a pior delas (notando que a segunda já é bastante ruim), consiste em relevar o erro, buscando justificá-lo por meios de argumentos ad hoc. Para quem apontou o erro, porém, trata-se da alternativa mais divertida, porque geralmente acaba levando o autor da barbeiragem a cometer novas atrocidades no desespero de justificar a barbaridade original. Esta foi a alternativa escolhida pelo Sr. Oreiro, para gáudio dos observadores.

Recapitulando, o artigo original afirmava que a economia brasileira passa por processo de desindustrialização, com base na queda da participação da indústria brasileira no valor adicionado. Para que não restem dúvidas, segue a citação original (com erros de português e tudo):

Com base no conceito clássico de desindustrialização é simplesmente impossível negar que a economia brasileira esteja passando por um processo de desindustrialização [grifo meu]. Com efeito, os dados do IPEADATA mostram que entre 1981 e 2008 a participação da indústria no valor adicionado caiu de 44,31% para 27,34%, uma queda de cerca de 17 pontos percentuais em 27 anos. Trata-se de uma redução expressiva da importância da indústria para a geração de valor adicionado na economia brasileira.

Daqui se segue que o ponto a ser dabatido não é se a economia brasileira está ou não se desindustrializando, pois como vimos acima o resultado ineludível é que ela está. O ponto a ser debatido é se esse fenômeno é um resultado natural do estágio de desenvolvimento da economia brasileira ou se é a consequência das políticas macroeconômicas adotadas nos ultimos 20 anos.


Em segundo lugar o artigo também afirma que o comportamento da taxa real de câmbio é responsável pela desindustrialização. O argumento ocorre em dois passos. Primeiro associando a participação da indústria no PIB com o investimento. Novamente, para não ser acusado de criar um espantalho para depois criticá-lo, segue a transcrição literal:

Segundo Rowthorn e Ramaswany (1999), o investimento é altamente intensivo em produtos manufaturados de forma que uma redução da taxa de acumulação de capital deve estar associado a uma redução da participação da indústria no valor adicionado.

No período em consideração a taxa de investimento passou de 24,45% em 1981 para 19,91 % em 2008. Ou seja, uma queda de quase 5 pontos percentuais do PIB. Calculando o índice de correlação entre as duas séries observamos que o mesmo é de 0,747 no período considerado, de maneira que a taxa de investimento e a participação da indústria são altamente correlacionados.
Fazendo as devidas ressalvas para o fato de que correlação não implica causalidade [grifo meu], uma interpretação possível para a queda da participação da indústria no valor adicionado é a redução da taxa de investimento observada no Brasil nas últimas duas décadas.”.

O segundo passo consiste em associar participação da indústria no PIB e o investimento à taxa de câmbio.

Voltando agora a atenção para a taxa real efertiva de câmbio, observamos que no período considerado a TREC passou de um índice de 164,43 em 1981 para um índice de 105,63 em 2008, ou seja, uma apreciação real de cerca de 35% no período. Calculando o coeficiente de correlação entre a série de câmbio real efetiva (IPA-OG Exportações, série IPEADATA) e a participação da indústria no valor adicionado observamos que o mesmo é positivo e igual a 0,5613; ou seja, uma apreciação da taxa real de câmbio está associada a uma redução da participação da indústria no valor adicionado. Em outras palavras, os dados mostram que a apreciação do câmbio real está associado com a desindustrialização.

Por fim, se calcularmos o coeficiente de correlação entre a TREC e a FBKF/PIB notaremos que a mesma é positiva e igual a 0,2312, ou seja, a apreciação do câmbio real está associada a uma redução – e não a um aumento – da taxa de investimento da economia brasileira. Dessa forma, não é verdade que a apreciação da taxa real de câmbio atue de forma favorável a indústria ao baratear a compra de máquinas e equipamentos do exterior. Pelo contrário, o câmbio apreciado desestimula o investimento
[grifo meu].

Esses dados nos permitem, ainda que de forma preliminar, apontar para a apreciação da taxa real de câmbio como a causa fundamental do processo de desindustrialização da economia brasileira nos últimos 27 anos [grifo meu]. O câmbio apreciado afeta a participação da indústria no PIB diretamente, ao afetar a competitividade da indústria, e indiretamente, ao desestimular o investimento.”

Este é o grande exercício econométrico do Sr. Oreiro: o cálculo de três (!) coeficientes de correlação (FBKF/PIB vs. Indústria/PIB, Taxa de câmbio real efetiva vs. Indústria/PIB, e Taxa de câmbio real efetiva vs. FBKF/PIB). Como levantado pelo “O”, em seu comentário ao mesmo artigo, a ressalva “correlação não implica causalidade” é devidamente abandonada no curso de três parágrafos, quando se conclui, amparado nos coeficientes de correlação, que a apreciação da taxa real de câmbio foi a causa fundamental do processo de desindustrialização da economia brasileira nos últimos 27 anos.

Não vou me deter muito na escolha do índice de taxa real de câmbio. Só o suficiente para notar que:

(1) O resultado não é robusto à escolha do deflator da taxa real de câmbio. A série de câmbio real efetivo do Ipea que utiliza o INPC como deflator mostraria uma depreciação real de 6% do câmbio entre a média de 1981 (mais elegante que escolher o valor de dezembro de determinado ano) e a média de 2009 (até novembro), enquanto a medida pelo IPA-OG mostra apreciação de 42%. Caso se prefira olhar até 2008, teríamos, sob o INPC, desvalorização de 1% (25%, se preferirem o curioso critério de privilegiar dezembro sobre os demais meses do ano), contra apreciação de 47% sob o IPA (36% no critério Dezembro/Dezembro). Vale dizer, a mera alteração do deflator da série já mudaria as conclusões; e

(2) Como a taxa real de câmbio é a razão entre preços de bens comercializáveis e não-comercializáveis, deflacioná-la pelo IPA equivale, na frase feliz do Affonso Pastore, a “deflacionar o câmbio pelo câmbio”.

Este, porém, não é o objeto da crítica. O ponto principal é que, como lembrado pelo “O”, a peça fundamental da evidência se apóia numa prática para lá de equivocada, a saber, a comparação de séries de PIB essencialmente incomparáveis.

Concretamente, para ficar só num exemplo, o IBGE divulgou, no começo de 2007, uma nova série de PIB que, entre outras coisas, revelou uma estimativa bem mais elevada do nível de produto. A série, baseada em 2000, passou a mostrar estimativas do PIB de 7% a 11% maior que as anteriores, em boa medida, diga-se, por nova metodologia na avaliação do setor de serviços.


De onde se segue que as comparações entre uma série e outra são, pura e simplesmente, erradas, e comprometem a afirmativa que o país passa por processo de desindustrialização. E qual a reação do Sr. Oreiro?

No caso, houve duas reações, cada qual mais hilária. A primeira foi uma diatribe sobre o uso do modelo de regressão linear simples. Segue abaixo a citação literal, para evitar as acusações de construção de espantalho.

O axioma fundamental desse novo ramo do “conhecimento científico” é que problemas complexos – como por exemplo, a relação entre câmbio real e poupança ou os determinantes do investimento agregado – possuem causa única. Em outras palavras, toda a macroeconomia deve ser re-escrita em termos de equações simples de primeiro grau do tipo Y = a + bX. Digamos que Y seja o investimento como proporção do PIB e X uma variável explicativa, por exemplo, a taxa real de câmbio. Dessa forma, o teste “empírico” dessa equação seria rodar uma regressão simples (se bem que na maioria dos casos o Dr. Geninho e seu escudeiro só fazem análise de elevador mesmo) para saber se o coeficiente b é estatisticamente singificativo.[grifo meu]

Diatribe no mínimo curiosa, vindo de quem “provou” que “o câmbio apreciado afeta a participação da indústria no PIB diretamente, ao afetar a competitividade da indústria, e indiretamente, ao desestimular o investimento” por meio do cálculo de três coeficientes de correlação (sem se dar sequer o trabalho de testar a significância estatística dos mesmos). Confesso que isto me deixou confuso: como alguém poderia atirar no próprio pé com tamanha precisão e acreditar que se trata de argumento válido me escapa à compreensão. Vá saber...

Isto dito, o mais divertido foi a justificativa para a queda da participação da indústria entre 1994 e 1995. Confrontado com a impossibilidade de tal queda ter se verificado no contexto de expansão do produto industrial (4,7%) um pouco superior à expansão do produto total (4,4%), o Sr. Oreiro rebolou para sair com esta pérola:

Um pouco de atenção aos dados de preços relativos pode ajudar a compreender, ao menos em parte, o “mistério” do desabamento da participação do VA da indústria no PIB entre 1994 e 1995. Com efeito, enquanto o IPA de bens industriais apresentarou variação de 2083,25% e 55,23% nos dois anos em consideração; o delator implícito do PIB apresentou variação de 2251,59% e 93,52% !!!

Um pouco de atenção aos dados de preços relativos poderia mostrar que a relação entre o deflator implícito e o IPA industrial é tênue, para dizer o mínimo. Usando a série nova de PIB trimestral achamos, por exemplo, uma elevação dos preços industriais de 23,4% pelo deflator implícito em 1996, contra 3,2% do IPA industrial. Em 1997 temos uma variação negativa de 8,8% (deflator) contra variação positiva de 4% (IPA). Em 1998 4,1% contra menos 0,1%. Em 1999 17,2% contra 26,7%. Acho que posso parar por aqui, para dizer que o Sr. Oreiro, para colocar de forma gentil, mais uma vez se confundiu com os dados.

Para dirimir a dúvida basta a mera inspeção das duas séries, a qual revela que a “queda” da participação da indústria deve-se exclusivamente ao fato das séries medirem coisas diferentes, usando metodologias distintas. Caso reste ainda alguma dúvida, minha sugestão é ler diretamente o documento do IBGE a respeito, em particular a página 8, segundo a qual a indústria representava 36,1% do PIB em 2000, subindo para 37,9% em 2005 de acordo com a metodologia anterior, enquanto, pela nova metodologia a participação aumentou de 27,7% para 30,3% do PIB no mesmo período.

Neste mesmo período, tanto pela série antiga como pela série nova o PIB de serviços reduziu sua participação, de 56,3% para 54,1% (série antiga) e de 66,7% para 64% (série nova). Só quem confunde as séries é que poderia concluir que teria ocorrido elevação do PIB de serviços de 56,3% (série antiga) para 64% (série nova), ou, de forma equivalente, que a participação da indústria teria caído de 36,1% (série antiga) para 30,3% (série nova). Isto é, quem confunde as séries e se recusa a aceitar que pisou feio na bola.

A próxima desculpa é que tudo isto, na verdade, se destinava à distribuição de panetones aos menores carentes de Brasília.

sábado, 26 de dezembro de 2009

"O" sobre "Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro" de J.L. Oreiro

Alex,

Quando eu decidi começar a escrever revisões críticas de artigos acadêmicos de nossos aprendizes de feiticeiros, eu não sonhava encontrar uma peça com tanto valor de entretenimento quanto um post recente no blog do concorrido Professor Oreiro.

Posso afirmar sem uma ponta de dúvida: o autor daquele post é um homem sem vergonha de quebrar tabus. Erros primários? Not a problem! Contradições lógicas? É para já! Uso de estatísticas sem saber o que elas significam? Com ele mesmo!

Vou tentar ser parcimonioso, portanto não me deterei muito na coragem moral do professor de admitir que correlação não implica causalidade e algumas linhas abaixo, despindo-se de qualquer coerência, concluir que os “dados nos permitem, ainda que de forma preliminar, apontar para a apreciação da taxa real de câmbio como a causa fundamental do processo de desindustrialização da economia brasileira.”

Vou portanto direto ao principal erro grosseiro, crasso, digno de um aluno de graduação preguiçoso. Escreve o professor: “os dados do IPEADATA mostram que entre 1981 e 2008 a participação da indústria no valor adicionado caiu de 44,31% para 27,34%, uma queda de cerca de 17 pontos percentuais em 27 anos. Trata-se de uma redução expressiva da importância da indústria para a geração de valor adicionado na economia brasileira.”

Vamos deixar bem claro: isso é uma pataquada.

Os dados realmente podem ser encontrados no website do IPEA. Mas junto com os dados, vêm os comentários sobre as séries, que creio que em um momento de fraqueza da carne ou fervor revolucionário, o professor tenha esquecido de ler... Pois bem, durante o período de 1981 e 2008, houve duas mudanças de base nas contas nacionais brasileiras.

Qualquer economista que vale seu próprio peso em feijão sabe que os dados em bases diferentes não são comparáveis. Mais que isso, os dados mostram claramente que durante os períodos em que os dados são comparáveis, não houve desindustrialização alguma.

A saber: em 1981 a participação da indústria era 44% e cresceu durante a década para 46% em 1989. Em 1990, foi adotado um novo ano de referência, o que reduziu a participação da indústria para 39%. De 1990 para 1994, a participação aumentou 1 ponto percentual (40% em 1994), caindo então em 1995 para 28% quando a série passa a refletir outro ano de referência. E de 1995 para 2008, houve um declínio dramático de 1 ponto percentual para 27%. Em resumo, da queda na participação da indústria no PIB de 17% que o Professor Oreiro encontrou entre 1981 e 2008, 20% foram causados por mudanças de base no sistema de contas nacionais!

Para finalizar, faço um apelo... Será possível que o professor não tenha um único amigo na AKB ou UNB que se preocupe com sua reputação pessoal ou das respectivas instituições que se interesse em ler o que ele escreve e alertá-lo dos erros mais básicos? Ou será que o professor perdeu a vergonha de se expor errado, demonstravelmente errado?

"O"

P.S.

Complementando a informação do "O", pela série antiga do IBGE, a participação da indústria de transformação (um subconjunto do PIB industrial) era 21,8% do PIB em 1991 (início da série), caindo para 21,3% nos quatro trimestres terminados em 2006 (a partir daí a série foi interrompida pela nova base, 2000, "retropolada" até 1995).

Nos 12 meses que antecederam o Plano Real a participação da indústria de transformação no PIB era 19,5% do PIB, tendo caído para 18,2% em 1T99. A partir daí, recuperou-se para os já mencionados 21,3%, com a média no período 2003-06 registrando 21,5% (mínimo 21,1%; máximo 22%; mediana 21,4%). Se havia algo em curso no período era uma “reindustrialização”!

Que erro grosseiro!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Homens de pouca fé

Dentre as obsessões já conhecidas pelos 17 leitores, a Síndrome do Déficit de Atenção aos Dados (SinBad), doença que atinge com especial intensidade nossos keynesianos de quermesse, ocupa lugar de honra. A capacidade de certos economistas pátrios de ignorar a evidência empírica, em particular se esta refuta suas teses, chega às raias do lendário.

No entanto, durante uma cerimônia de batismo no fim de semana passado tive uma epifania: o padre, discorrendo sobre fé e ciência, lembrou que só a segunda requer evidência; a primeira não apenas a dispensa, como faz questão de desafiá-la. Credo quia absurdum est (creio porque é absurdo) poderia ser o lema dos keynesianos de quermesse, caso decida-se que a SinBad deixe de ser considerada doença, passando à categoria de religião. Faria sentido: só mesmo o profundo sentimento religioso é capaz de explicar como é possível citar os números para defender o oposto do que os próprios dados dizem.

Por exemplo, as contas nacionais divulgadas há duas semanas mostraram forte recuperação do investimento, que teria crescido 6,5% no terceiro trimestre na comparação com o segundo. Trata-se de um número bastante positivo, ainda mais porque se segue à expansão de 2% no segundo trimestre. Desta forma, o investimento no terceiro trimestre atingiu pouco menos de 18% do PIB, nada brilhante, é fato, mas, ainda assim, bem melhor que os parcos 16% do PIB registrados no trimestre anterior.

Este desempenho contradiz frontalmente as “análises” dos keynesianos de quermesse. Os mesmo que diziam “existir evidências de que a apreciação da taxa real de câmbio está tendo um impacto negativo sobre as decisões de investimento, não apenas dos setores exportadores, mas também dos setores voltados para o atendimento do mercado doméstico”, agora celebram o comportamento do investimento, aparentemente esquecidos de suas afirmações anteriores, a ponto de reafirmá-las veementemente, a despeito da evidência em contrário. Errarão de novo.

De fato, voltando ao tópico que expus há algumas semanas, para conciliar a expansão da demanda doméstica com a capacidade de crescimento da oferta local é necessário complementar a segunda por meio do aumento das importações líquidas. Ou, de modo equivalente, dada a poupança bruta pouco superior a 15% do PIB, o aumento do investimento só pode se materializar tendo como contrapartida a elevação do déficit externo, ou a redução do consumo do governo.

Contudo, no último ano a taxa de poupança caiu o equivalente a 3% do PIB, enquanto o consumo público (sem contar as transferências) aumentou em pouco mais de 1% do PIB, atingindo seu maior valor desde 2002 (20,6% do PIB). Assim, na falta do necessário ajuste fiscal, só resta a alternativa externa e, com ela, a apreciação da taxa real de câmbio.

Posto de outra forma, o câmbio real mais forte é a solução para o problema colocado pela expansão do investimento num contexto de baixa poupança que, em parte ao menos, resulta da incapacidade do setor público de controlar suas despesas. Obviamente, quem professa a SinBad pode dispensar as evidências e declarar sua crença na Doutrina da Transferência Imaculada, mas nós, homens de pouca fé, continuaremos, como Tomé, a exigir a evidência empírica. Pode não garantir o Paraíso, mas ajuda um bocado quem vive no plano terrestre.

E, aproveitando o tema, meus votos de Feliz Natal (e Chanucá!) e um próspero 2010 a todos, em especial para Reynaldo Fernandes, que sai do serviço público após contribuição inestimável para a educação no Brasil.

(Publicado 23/Dez/2009)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

"O" sobre "Real exchange rates, domestic and foreign savings: the missing link" de Gala & Rocha

Caro Rogério,

É um pouco difícil até julgar o paper que você sugeriu. Em minha opinião, o paper não chega nem a ser errado.

Vou tentar ser breve e cordato, provavelmente fracassarei no segundo item, como de hábito.

Os autores tentam demonstrar que um câmbio real depreciado aumenta a poupança doméstica. Para isso, apresentam um modelo e uma seção empírica. Ambos não passam qualquer controle mínimo de qualidade, pelos motivos que explico abaixo.

Como disse, os autores se propõem a escrever um modelo que explique a poupança doméstica. Mas, bizarramente, eles apresentaram um modelo em que: (1) a decisão de poupar não é modelada, mas sim gerada por uma premissa de que a poupança é uma proporção fixa da renda dos capitalistas; e (2) não existe um sistema de preços para bens ou fatores, portanto a renda dos capitalistas é determinada por um único fator (a taxa real de câmbio). Para completar a estranheza, eles concluem o modelo com a afirmação que "overvalued real exchange rates may result in consumer-led growth paths with current account deficits and lower saving levels" apesar do modelo não ter nada a dizer sobre a conta-corrente, e sua única previsão sobre os níveis da poupança é que esta aumenta quando o lucro dos capitalistas aumenta.

Mas essa é a parte apenas esquisita, e também a melhor parte do artigo. A seção empírica, oh a seção empírica...

Nesta seção, os autores tentam dialogar com o artigo de Servén e Montiel (SM). O primeiro elemento da comédia é que os autores não notaram que a Figura 1 de seu artigo é teoricamente a mesma figura que a Figura 2 do artigo de SM. Isto é, regredir a taxa de poupança na taxa real de câmbio e no nível de renda (SM) é a mesma coisa que regredir a taxa de poupança no resíduo de uma regressão da taxa real de câmbio no nível de renda (os autores).

O segundo ato salta aos olhos na Figura 1 dos autores (ver abaixo): como que eles chegaram a essa linha de regressão que aparentemente não tem nada a ver com a dispersão dos dados? Deve ser um daqueles pontos em que a ciência encontra sua intersecção com a arte.

Mas o creme no topo do pudim só é revelado ao final: uma regressão da taxa de poupança doméstica em um montão de variáver... inclusive a conta corrente, que por construção é igual a diferença entre a taxa de poupança e a taxa de investimento; e uma bacia cheia de outras variáveis endógenas. O que eu posso dizer disso? Não é surpresa alguma que os autores cheguem a um resultado diferente de SM. Seria surpreendente e uma demonstração que econometria correta é supérflua se o oposto acontecesse!

Finalmente, a conclusão é de fazer macambúzio o coração de qualquer economista procurando uma discussão séria e inteligente. Os autores montam um espantalho "some authors have argued that the Asian model cannot be implemented in Latin America ... low private savings levels... culturalist explanations" que não se parece com nenhum argumento que eu já li ou ouvi sobre o fenômeno das altas taxas de poupança na Ásia (aliás, SM tem uma resenha bem decente de explicações alternativas). Existe uma rica literatura que tenta explicar as altas taxas de poupança na Ásia, que oferece várias explicações (dinâmica demográfica, hábitos no consumo, motivo precaucional, ausência de sistemas nacionais de saúde ou de aposentadoria etc), mas os autores simplesmente fecham os olhos e fingem que não existe. Assim, todos pimpões, eles podem concluir que, sim, entre o espantalho que é "culturalista" e a explicação que eles propõem baseados em econometria crassa, fiquemos com a econometria crassa!

Mas pelo menos algum crédito os autores merecem: o inglês está quase perfeito! O artigo parece-me bem ajustado para um Cambridge Journal of Economics ou JPKE :)

E para quem ficou perdido, e para aqueles que acharem que meus comentários não são construtivos, recomendo o artigo do Montiel e Serven. A diferença é gritante na qualidade da econometria e da discussão teórica, além da discussão de SM ser mais eclética e apresentar muito mais idéias.

Um parêntese biográfico: SM são dois macroeconomistas da velha guarda, o primeiro, Servén, um dos maiores especialistas no mundo inteiro em poupança (se não me engano ele foi o coordenador de um projeto no Banco Mundial sobre poupança que durou vários anos e produziu o banco de dados que é o padrão-ouro na pesquisa sobre poupança em países); o segundo, Montiel, co-autor de um famoso manual de macroeconomia focado em países em desenvolvimento e dezenas de artigos. Mas por que estou descrevendo os autores supra-citados? É apenas para expor o tamanho do ridículo que os autores que provavelmente cozinharam um artigo rapidinho tentando atacar uma outra peça bem melhor escrita e que provavelmente foi resultado de pelo menos uns 15 anos de pesquisa sobre poupança. Em outras palavras, tenha bala na agulha, seja um gênio ou então faça que nem o "O" fez um dia e aprenda suas limitações e trabalhar duro. No começo dói um pouco, mas depois cria um calo e a gente acostuma.

Tio "O"


domingo, 13 de dezembro de 2009

Paul Samuelson (1915-2009)

Morreu hoje Paul Samuelson, talvez o mais influente economista acadêmico de todos os tempos. Todos nós começamos a estudar economia usando seu livro de introdução à disciplina, e o mero fato de ter sido escrito originalmente em 1948 e (reeditado e atualizado, em parceria com Nordhaus) continuar em uso hoje em dia já diz muito sobre a qualidade do autor.


Quanto mais estudei, mais o nome de Samuelson apareceu. Suas contribuições nas áreas de microeconomia (toda Teoria da Preferência Revelada, para ficar só em um tópico), comércio (o Teorema Stolper Samuleson, cuja importância transcende a economia, mas atinge também a economia política do comércio internacional), finanças, macroeconomia foram fundamentais.


Acima de tudo, nos legou (ao lado de John Hicks), uma forma de lidar com a Teoria Econômica que moldou (e ainda molda) gerações de economistas.


Só tive oportunidade de vê-lo ao vivo uma vez em 1990. Mais tarde, quando ainda morava nos EUA, me lembro dele e Milton Friedman debatendo (o sistema de saúde americano, para vocês verem como certas coisas não saem de moda) na C-Span, como sempre defendendo opiniões opostas. A lucidez e e capacidade de ambos (os dois na casa dos 80 anos) era impressionante.


Tem gente que fará falta, mesmo tendo vivido mais de 90 anos.

P.S. Krugman faz um belo apanhado de algumas das contribuições de Samuelson. Dica do "A".



terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Húbris

Amanhã saberemos o desempenho da economia brasileira no terceiro trimestre de 2009, cujo crescimento provavelmente será próximo a 2% sobre o segundo trimestre deste ano, ecoando a expansão da produção industrial superior a 4% no mesmo período. Não é à-toa, pois, que o Brasil é visto como uma história de sucesso, ainda mais considerando que a economia global ainda vive sob os efeitos da pior crise em mais de 70 anos. À luz, porém, de nossa nada lisonjeira história, cabe perguntar o que teria mudado para que, desta vez, nosso destaque fosse positivo.

Quem pesquisar a questão a fundo deve concluir que foram as condições iniciais da economia brasileira no momento de deflagração da crise que possibilitaram a recuperação rápida do país. Estas condições foram: (a) um sistema financeiro sólido e capitalizado; (b) uma dívida pública bastante reduzida com relação à observada há alguns anos; (c) um balanço público em que os ativos em moeda estrangeira superavam os passivos; (d) expectativas de inflação sob controle; e (e) câmbio flutuante.

De fato, ao contrário de boa parte do mundo, o sistema financeiro local – a despeito do impacto inicial do corte de linhas internacionais e do fechamento de mercado de capitais – não apresentou problemas de solvência que poderiam levar a um aprofundamento da crise local, como observado na Argentina em 2002, ou nos países asiáticos em 1997.

Adicionalmente, a redução da dívida pública para 40% do PIB às vésperas da crise, bem como a mudança de sua composição (refletindo a posição do setor público credora em moeda estrangeira) possibilitaram que, em oposição a episódios anteriores, a política fiscal pudesse ser expansionista sem gerar uma preocupação com a solvência do governo. É verdade que esta política pouco teve de contracíclica, pois seu impulso (acrescido de outros tantos) irá perdurar mesmo com a economia em plena recuperação, mas não poderia sequer ter sido conjecturada não fosse a queda da dívida e a alteração no seu perfil.

A política monetária também pôde desempenhar um papel anticíclico, à medida que expectativas inflacionárias se mantiveram ancoradas, apesar da massiva desvalorização da moeda observada no final do ano passado.

Por fim, a depreciação da moeda, num contexto de colapso de preços de commodities e parada súbita de fluxos de capitais, mitigou consideravelmente o impacto negativo do choque externo. Por exemplo, permitiu um ajuste muito rápido do balanço de pagamentos (em larga medida pela redução da remessa de dividendos), sem impor um custo ainda maior em termos de retração da demanda doméstica.

Foram, assim, as políticas ditas “neoliberais” que – em conjunto com a regulação e supervisão bancárias, bem como a acumulação de reservas – geraram as condições para que a economia brasileira pudesse absorver, com dano mínimo, o choque externo.

Tivéssemos dado ouvidos àqueles que atacavam (e ainda atacam) tais políticas, o Brasil estaria agora em condições similares aos países que adotaram medidas bastante diversas e agora sofrem para se recuperar da crise internacional.

No entanto, por incrível pareça, apesar do papel central desempenhado na superação da crise, observamos não só o gradual desmonte dessas políticas e das instituições que as suportam, como também a continuidade das críticas, presságio de mais problemas à frente. Aparentemente o sucesso da estabilidade não é suficiente para vencer a soberba dos que se consideram mais capacitados que instituições construídas com enorme sacrifício.

(Publicado 9/Dez/2009)

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Parabéns!

Hoje o Cristiano Souza defendeu sua tese. Temos um novo doutor na praça! Um excelente trabalho.


O orientador foi o Fabio Kanczuk e a banca, além do blogueiro, teve o Mauro Rodrigues Junior, o Simão Davi Silber, e o Celso de Campos Toledo Neto.

P.S.

A tese do Cris é um teste empírico-econométrico sobre a hipótese do Brasil ter pego a doença holandesa, ou seja, se seria válida a tese que a elevação dos preços das commodities implicaria apreciação cambial, queda da exportação de manufaturados e, consequentemente, da produção industrial.

Há evidência de relação inversa entre preço de commodities e a taxa de câmbio, i.e, controlando para uma série de outras variáveis acha-se, no vetor de cointegração, esta relação, em particular no período 2003-08.

Isto dito, não se encontra impacto negativo e signficante de preços de commodities sobre a exportação de bens manufaturados, seja no vetor de cointegração, seja num modelo de gravitação.

Da mesma forma, não há evidência de que a elevação dos preços de commodities tenha afetado negativamente a produçao industrial. Pelo contrário, há alguma evidência de relação positiva entre estas variáveis.

Outros autores haviam chegado a esta conclusão, mas (como eu fiz) por uma análise empírico-descritiva, isto é, acumulando evidências como o desempenho da produção industrial, dos investimentos, etc. O Cris faz isto de forma mais rigorosa, através da utilização de instrumentos econométricos, como VARs, VECs, estimaçao de relações de co-integração, e painel.


Vou ver se há alguma forma de deixar a tese online. Segundo o Cris, haverá uma cópia em PDF que deverá ficar disponível no site da USP.

Primário, primária...

A queda das exportações de bens manufaturados, bem mais expressiva que a observada no caso dos produtos primários, tem gerado frêmitos em setores que temem o retorno do país à condição de exportador de matérias-primas de baixo valor agregado e pouca intensidade tecnológica. Obviamente trata-se de analistas cuja compreensão do conteúdo tecnológico do agronegócio, por exemplo, varia do zero ao nada, mas não é este o assunto que pretendo examinar hoje.

O tema, como costuma ocorrer com alarmante freqüência, é o divórcio entre o que nossos keynesianos de quermesse pensam que sabem e o que revela a dura realidade dos números, só não superado pela diferença entre o que imaginam ser o valor de suas análises e o que estas de fato valem.

A começar porque o tal processo de “primarização” da pauta de exportações é, em vasta medida, uma peça de ficção. Convido os 17 leitores a um exame do gráfico que acompanha este artigo. A mera inspeção das séries já revela que – à parte o período mais agudo da crise internacional, entre o quarto trimestre do ano passado e o segundo trimestre deste ano – a exportação de produtos manufaturados experimentou um processo de crescimento persistente, saindo de US$ 3 bilhões/mês para mais de US$ 8 bilhões/mês entre o começo de 2003 e o terceiro trimestre de 2008, correspondendo a uma expansão média pouco inferior a 20% ao ano.

E, em que pese a queda abrupta observada entre 4T08 e 2T09, é fato que, desde maio deste ano, as exportações de manufaturados retomaram tendência de expansão, superando novamente as exportações de produtos primários, que, diga-se, agora crescem a taxas bem inferiores às observadas no que tange às manufaturas. Notável também que, a despeito da choradeira sobre como a taxa de câmbio abaixo de R$ 2,30 inviabilizaria as exportações de manufaturados, o crescimento insiste em ocorrer sob um câmbio médio bastante inferior a este número mágico.

Não se trata de milagre, mas simplesmente do desempenho das importações norte e latino-americanas. Em 2008 os cinco maiores importadores latino-americanos (Argentina, Chile, Colômbia, México e Venezuela), somados aos EUA, absorveram mais de 54% das exportações brasileiras de manufaturas, fração que caiu a 48% em setembro deste ano.

Esta queda está diretamente associada ao colapso das importações destes países entre 4T08 e 2T09, 35% em ambos os casos. De maio a setembro, contudo, as importações destas economias subiram de 10% (EUA) a 11% (América Latina), valores não muito distintos do crescimento observado da exportação de manufaturas.

Em outras palavras, a menos que alguém se aventure por terrenos esotéricos com uma explicação de como a política cambial brasileira afeta as importações destes parceiros (US$ 1.6 trilhão no caso dos EUA e US$ 397 bilhões no que tange à AL), a conclusão inescapável é que nossas exportações de manufaturas dependem muito mais do desempenho daquelas economias do que da taxa de câmbio. Primária não é a pauta, mas a análise que insiste em teorizar sem olhar os dados básicos sobre o assunto.


Fonte: MDIC (sazonalmente ajustado pelo autor)

(Publicado 25/Nov/2009)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Artigo interessante do Pedro Cavalcanti e do Renato Fragelli

Uma Nota Sobre Desvalorização, Crescimento e a Relação entre Poupança Doméstica e Câmbio

Pedro Cavalcanti Ferreira
Renato Fragelli Cardoso

Introdução

O argumento de Bresser-Pereira sobre desenvolvimento econômico e política cambial, exposto no artigo “A Tendência à Sobrevalorização da Taxa de Câmbio,” reflete uma linha de pensamento que vem defendendo há tempos controle de câmbio como política de crescimento. Neste caso específico, segue a seguinte lógica: 1) A política cambial é a mais estratégica entre as políticas macroeconômicas destinadas a estimular o desenvolvimento; a taxa de câmbio “competitiva” e as exportações têm papel central no desenvolvimento. O câmbio desvalorizado seria importante para “tornar competitivas as empresas comerciais que usam a melhor tecnologia disponível no mundo.” Cita Dollar (92), entre outros, para defender a relação empírica “evidente” de uma relação entre câmbio competitivo e desenvolvimento econômico. Esta parte do raciocínio, segundo o autor, estaria estabelecida e incontroversa. 2) Haveria uma tendência à sobrevalorização da taxa de câmbio nos países em desenvolvimento devido à Doença Holandesa (entrada de divisas devido às exportações de commodities) e às altas taxas de lucro e juros que tendem a prevalecer no país, o que atrairia capitais externos, valorizando o câmbio; 3) Logo, para se desenvolverem, os países necessitam neutralizar a tendência à sobrevalorização da taxa de câmbio. Segundo o autor, países emergentes que assim o fizeram cresceram bem mais.

Esta nota irá discutir o artigo de Bresser-Pereira focando nos pontos acima. Pretendemos mostrar que a evidência sobre o que o autor considera estabelecido é fraca e que, ao ignorar a relação entre poupança doméstica e regime de câmbio, super-estima a capacidade de os países controlarem a taxa real de câmbio.

(O restante do artigo pode ser lido aqui)

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Uma resposta

"qual sua opiniao sobre o cambio de equilibrio de 2,60 no estudo da Goldman?"

Se o que a GS fez foi o que eu imagino que tenha feito, eu acho o exercício muito limitado.

Acredito que a GS fez uma conta de PPC para o real, isto é, ajustou a taxa de câmbio ao longo de determinado período pelo diferencial de inflação Brasil-EUA e calculou uma média. Eu tenho essa conta pronta, que chega a uma média (de Jan-80 a Out-09) de R$ 2.64/US$ a preços de outubro deste ano, bastante parecida com o número da GS, de onde imagino que tenham feito o exercício para um período similar, usando dados similares (eu usei como medidas da inflação o INPC para o Brasil e o PPI para os EUA, já que o INPC tem uma medida maior de bens não-comercializáveis e o PPI de bens comercializáveis).

Assim, no câmbio médio de R$ 1,738/US$ observado em outubro o real precisaria de uma desvalorização de 52% para voltar à média de R$ 2,84/US$.

Isto dito, vamos aos problemas. A começar pela definição da taxa de câmbio relevante. A GS trabalha com R$/US$, mas o Brasil comercia com outros países. O que acontece com o real relativamente a uma cesta representativa de moedas?

Usando a cesta calculada pelo Ipea (http://ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata?SessionID=204866813&Tick=1258662006535&VAR_FUNCAO=Ser_Fontes%28407%29&Mod=M) o desvio com relação à média histórica é muito menor. Em setembro deste ano (os dados para outubro não estão disponíveis, mas a diferença é pequena), o índice (2005=100) foi calculado em 91,53. A média desde Jan-80 é 96,13, ou seja, a desvalorização requerida para trazer o câmbio à sua média histórica relativamente à cesta de moedas seria algo como 5%. No caso da taxa bilateral para Set-09, a desvalorização requerida seria da ordem de 45%, cerca de 9x MAIOR.


Confesso que a diferença de magnitude parece grande demais, mas, até onde vi, o cálculo da cesta do Ipea é correto (e, como usa os pesos de 2001, quando os EUA representavam algo como 24% das exportações brasileiras, quando hoje são pouco menos de 11%, não parecem estar subestimando o peso do dólar, pelo contrário). De qualquer forma, pelo estudo do Ipea, o real não estaria tão sobrevalorizado como o estudo da GS sugere.

Segundo, não há menção a termos de troca, enquanto a teoria sugere uma relação inversa entre a força da moeda e os termos de troca, isto é, a moeda se aprecia quando os termos de troca melhoram (preço das exportações se eleva relativamente ao preço das importações) e vice-versa.

Também não há menção às condições de financiamento externo (por exemplo, risco-país), que também fazem parte da definição de taxa de câmbio de equilíbrio (se eu não tenho acesso algum a capital – pense no Brasil da moratória – e, portanto, preciso gerar equilíbrio ou superávit em conta-corrente, meu câmbio de equilíbrio é um; se tenho acesso é outro). Sem contar que as próprias condições de financiamento externo não necessariamente refletem apenas condições internacionais, mas desenvolvimentos domésticos, como, por exemplo, solvência, ou qualidade de política econômica.
Resumindo, o cálculo de PPC deixa fora da determinação da taxa de equilíbrio fatores que têm, em princípio, um papel relevante da definição da taxa. Por este motivo é que tenho insistido que não se pode pensar na taxa de equilíbrio como uma grandeza fixa, mas sim como algo que depende de termos de troca, condições internacionais de liquidez, fundamentos domésticos, etc.

Vale dizer, eu não ponho muita fé neste tipo de coisa, pelo menos não em horizontes mais curtos. Se há motivo para crer em reversão à média de termos de troca, por exemplo, aí faria sentido, mas nesse caso a discussão vai muito longe.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A Transferência Imaculada

Da superação dos efeitos da crise política de 2002 até a eclosão da crise de 2008 o Brasil viveu um momento bastante positivo. O PIB se expandiu à taxa de 4,7% ao ano por cinco anos, ritmo substancialmente superior ao de anos anteriores e mais próximo à expansão global. A diferença entre o crescimento médio mundial e o brasileiro, que chegara a quase 2% a.a em 2000, tornou-se levemente negativa no ano passado, mostrando que o desempenho do país não resultou apenas do impulso externo.

De fato, esta dinâmica se amparou na demanda interna, cujo crescimento superou o do produto já em 2005, atingindo uma velocidade de 5,5% a.a., sendo que o consumo aumentou 5% a.a., enquanto o investimento cresceu 10% a.a., deixando claro quais têm sido os motores do bom desempenho. O investimento, em particular, que caíra a pouco mais de 15% do PIB em 2003, agora representa algo como 18% do PIB, ainda baixo, é verdade, mas o progresso é nítido.

O crescimento no período não difere muito, pois, de qualquer estimativa decente da nossa capacidade de expansão sustentável, embora a demanda interna tenha conseguido superá-la consideravelmente. Obviamente a conta só fecha porque o Brasil é uma economia aberta, ainda que não muito aberta. A expansão da demanda interna acima da capacidade de crescimento da oferta doméstica tem sido coberta pelo aumento das importações em excesso às exportações, levando à redução das exportações líquidas, de 3% para 0,3% do PIB.

Não há dúvida que o consumo continuará sendo um dos motores da expansão, assim como não há quem acredite que o ritmo de gasto público (quase 4% a.a.) irá se reduzir. Dado, por fim, que, como desejamos, o investimento voltará a crescer, se possível ao ritmo dos últimos anos, é certo que a demanda doméstica seguirá como o fator que impulsiona a economia, voltando a se expandir a velocidade maior que o crescimento potencial.

Este desenvolvimento sugere que as importações seguirão crescendo mais rápido do que as exportações, pois de outra forma não haveria como satisfazer a expansão da demanda interna. Isto dito, a menos que alguém acredite no que John Williamson denominou Doutrina da Transferência Imaculada (qual seja, que alterações na demanda doméstica não têm qualquer impacto nos preços relativos), a conseqüência deste padrão de crescimento é uma taxa real de câmbio necessariamente mais apreciada. Não por outro motivo tenho afirmado que, se o objetivo é conviver com uma taxa de câmbio menos apreciada, o remédio consiste em reduzir o gasto público.

Suponhamos, porém, que seja possível evitar todo ingresso de capital estrangeiro no país, do investimento direto ao financiamento de comércio internacional, replicando – agora por vontade própria – os efeitos da crise de 2002. Por definição o país ficaria impossibilitado de gerar déficits externos e a taxa de câmbio se depreciaria. No entanto, vale a simetria: para manter o equilíbrio macroeconômico a demanda doméstica teria que se desacelerar para a mesma velocidade do produto potencial. Na ausência de ajuste fiscal, esta desaceleração teria que ocorrer pelo lado do gasto privado, tipicamente pelo aumento da taxa de juros.

Isto é, uma política de restrição ao capital externo conseguiria depreciar o câmbio, à custa, todavia, de juros reais mais elevados, queda no consumo e investimentos privados, e, portanto, redução da capacidade de crescimento. Em outras palavras, equivaleria a cortar o dedo para tirar uma unha encravada; tira, mas duvido que qualquer médico digno deste título recomende esta medida.

(Publicado 11/Nov/2009)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O mundo gira; a Lusitana roda

Valor Econômico (6,7 e 8/Novembro/2009)

Valor: Como é sua avaliação do governo Lula?

Conceição: Muito boa. Esta é a minha avaliação e de 70% da população. Na verdade, só a classe média dita ilustrada e a grande imprensa são contra. Contra também não sei o quê. Caiu a inflação. Portanto, mantiveram a política econômica dura que diziam que não iam manter, mas mantiveram. Contra meu ponto de vista. Perdi a parada, mas fico contente que tenha perdido, porque naquela altura ia ser complicado. (...).


Também acertaram na política social, com o Bolsa Família.

Folha de S. Paulo (21/Abril/2003)

Folha - Por que o documento divulgado no último dia 10 pela equipe do ministro Palocci causou mal-estar entre os ministros da área social ao falar na focalização dos programas sociais?

Causou mal estar em todo mundo. Não sou da área social e estou histérica. Temos políticas universais há mais de 30 anos. Somos o único país da América Latina que tem políticas universais. A focalização foi experimentada e empurrada pelo Banco Mundial na goela de todos os países e deu uma cagada. Não funciona nada.
(...)
Dentro do programa [divulgado pelo Ministério da Fazenda] há gente infiltrada que escreveu uma porcaria chamada Agenda Perdida [documento escrito pelos economista José Alexandre Scheinkman, Ricardo Paes de Barros e Marcos Lisboa], feita por um grupo de débeis mentais do Rio de Janeiro.
(...)
Assim como tivemos a desgraça de, no governo Fernando Henrique Cardoso, termos os economistas da PUC [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro] no programa econômico, desta vez temos também os da Fundação Getúlio Vargas, e não apenas infiltrados na área econômica. Esse Marcos Lisboa é um garoto semi-analfabeto que está encarregado de fazer política econômica, coisa que ele jamais fez na vida.

Folha - A política econômica do ministro Palocci está correta?

Maria da Conceição - Até aqui, sim. Agora vai complicar por causa do câmbio [R$ 3,03/US$ à época].
(...)
Apenas digo que, se essa política durar muito, como diz o próprio presidente Lula, é ruim porque prejudica a retomada do crescimento [o PIB se expandiu à velocidade média de 4,3% ao ano entre 1T03 e 3T08], a substituição de importações, as exportações [cresceram 22% ao ano entre Mar-03 e Set-08].

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Entrevista do Samuel

Achei excelente esta entrevista do Samuel ao Fernando Dantas, do Estadão. Uma análise lúcida e que, na publicação, ainda tinha a vantagem de estar ao lado de um belo artigo do Fabio Giambiagi sobre reforma previdenciária, explorando temas paralelos.
* * *
O economista Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio, acha que o Brasil já escolheu um modelo econômico de baixa poupança e câmbio valorizado. Ele diz que essa opção deriva da Constituição de 1988 e das políticas públicas desde a redemocratização que, atendendo a um anseio de rápida correção da injustiça social, criou um sistema previdenciário e assistencialista que desestimula as pessoas a poupar para garantir o padrão de vida quando pararem de trabalhar.

Pessôa, porém, acha que esse arranjo não é pior que o seu oposto, o modelo asiático, de alta poupança e câmbio desvalorizado, que pune algumas gerações para que as próximas deem um salto em termos de desenvolvimento. Ele prevê que haverá desindustrialização no Brasil, já que o modelo de baixa poupança e alto consumo é pró-serviços, enquanto o asiático é pró-indústria. Mas acha que o Brasil pode continuar a crescer com investimentos em commodities, em setores industriais que se diferenciarem, em serviços. O modelo, ele diz, é a Austrália, e não a China. A seguir, a entrevista.

Como o sr. vê a questão da poupança no Brasil?

A sociedade brasileira poupa pouco. Desde a redemocratização, há uma demanda enorme da sociedade por uma série de benefícios do governo, por mecanismos de indexação de benefícios previdenciários, por expectativas de ganhos futuros no valor desses benefícios. Não é, portanto, só a existência da rede em si. É preciso ver as regras de concessão, elegibilidade, reajuste e aumento dos benefícios. Todos esses mecanismos, que dão segurança quanto ao futuro das pessoas, fazem com que os brasileiros poupem muito pouco. O valor da nossa poupança, na casa de 16% a 17% do PIB, é pequeno, mas torna-se ainda menor quando se pensa na etapa da transição demográfica pela qual passamos.

Como assim?

O momento demográfico em que estamos indica que era de se esperar que estivéssemos poupando muito mais. Países asiáticos que já passaram por essa etapa, como Japão e Coreia do Sul, poupavam muito mais quando tinham as características demográficas que temos hoje - poupavam próximo de 35% do PIB. Estamos no auge daquilo que os demógrafos chamam de bônus demográfico - um período de cerca de 30 anos, no qual o boom populacional já se arrefeceu, o grande contingente de crianças já virou adulto que está entrando no mercado de trabalho. Mas ainda não há muitas pessoas idosas. A sociedade tem folga para respirar, por que não há proporcionalmente muitos velhos e crianças dos quais se cuidar. É uma fase em que muitas pessoas poupam para a aposentadoria, mas, como ainda não há muitos velhos gastando suas poupanças depois de se aposentar, a resultante é uma taxa de poupança alta. No Brasil, porém, as regras previdenciárias são tão generosas que, mesmo no auge do bônus demográfico, poupamos como países de demografia madura.

E os gastos do setor público? Também influenciam a poupança?

A poupança pública é a soma do superávit fiscal do governo e do investimento público. De 2005 até o terceiro trimestre de 2008, foi um período em que o governo ajudou, e a poupança pública aumentou. Os juros caíram, o superávit primário e o investimento público aumentaram. Do terceiro trimestre de 2008 para cá, a poupança pública despencou.

O sr. mencionou a redemocratização quando começou a falar da poupança. Poderia explicar melhor?

Há uma demanda da sociedade para que a gente saia do atraso social rapidamente. Essa baixa poupança é resultado das instituições que começamos a construir na Constituição de 1988, e está muito associada a como se deu a redemocratização. É um processo que foi mantido e se aprimorou desde então. Fizemos uma Constituição que tem mais direitos que deveres. Nossa rede social é uma escolha social que vem sendo reafirmada ao longo das eleições - não vejo como se pode mudar isso.

Quais as consequências econômicas dessa escolha?

Teremos de conviver com um câmbio valorizado, quando se compara com o câmbio do chamado modelo asiático. A base do modelo asiático são poupanças cavalares. Quem poupa muito consome pouco. É possível demonstrar que, à medida que uma sociedade consome mais, os serviços aumentam seu peso na cesta de consumo em relação aos produtos industrializados. Essa demanda maior por serviços faz com que seu preço cresça em relação aos produtos industrializados. Como, de forma geral, os serviços são tipicamente não comercializáveis internacionalmente, e os industrializados são comercializáveis, um país de poupança alta e consumo baixo é um país com produtos comercializáveis internacionalmente relativamente baratos em relação aos serviços, que estão ligados ao custo de se produzir e ao nível salarial. Em outras palavras, podem vender produtos no mercado externo por baixos preços. Em termos de moeda, isso se traduz em câmbio desvalorizado.

Isso quer dizer que o modelo asiático é impossível para nós?

A sociedade brasileira já escolheu, e não quer o modelo asiático. Acho que é totalmente incompatível conosco, não faz sentido, e a tentativa de implementá-lo ia acabar gerando inflação. O governante que quiser modelo asiático vai perder eleição. Não dá para ir contra a maré. Além disso, não dá para dizer que o modelo asiático é melhor que o nosso. Como ele é baseado em poupanças muito elevadas, significa jogar sobre uma ou duas gerações o custo do desenvolvimento econômico. Essas gerações têm que ter uma vida muito restrita, de muita privação, para que os seus netos tenham um padrão de vida de primeiro mundo. Enquanto a opção brasileira é fazer esse processo mais lentamente, diluir de forma mais equitativa entre as diversas gerações o esforço do crescimento.

Mas e quanto ao risco de desindustrialização?

De fato, ela deve acontecer em algum grau. Como expliquei, o nosso modelo tem um viés pró-serviços, enquanto o asiático tem um viés pró-indústria. Na verdade, não houve desindustrialização até agora com a apreciação do câmbio, mas acho que isso se deve ao fato de que a demanda da China por commodities elevou a renda da América do Sul, que foi às compras, e são clientes tradicionais das nossas manufaturas. Mas prevejo que esse processo vai acabar dentro de alguns anos, porque a China aumentará a oferta de manufaturas para a América do Sul.

Não é ruim a desindustrialização?

Há economistas que eu respeito que acham que pouca produção de manufatura é ruim, por dois motivos. Dizem que a manufatura gera uma dinâmica tecnológica maior e crescimento econômico maior por possibilidades maiores de absorção de tecnologia. Além disso, dizem que a manufatura gera uma demanda por trabalho de mais qualidade. Eu entendo que pode ser um problema, e acredito que poderíamos ajudar a indústria com política tributária, retirando a contribuição para a Previdência da folha de salário. Mas o fato é que a desindustrialização no Brasil não tira o meu sono, como, por exemplo, a péssima qualidade da nossa educação.

E por que não?

O Brasil está melhorando, e acho que vai continuar melhorando. Podemos ser um país com grande sucesso em diversos setores ligados a commodities, em indústrias relacionadas a esses setores, em outros setores industriais que consigam se diferenciar, e em serviços. Se continuarmos na direção da evolução institucional que seguimos já desde os anos 90, com manutenção dos contratos, situação fiscal sólida, e melhorando, mesmo que a passos de cágado, a nossa escolaridade, a qualidade da nossa força de trabalho, etc, o Brasil é um país com grandes opções de investimento. E, se tem investimento rentável, o setor privado vai investir. E, se não temos poupança, a diferença entre a a poupança doméstica e o investimento vai ser financiado com poupança externa.

O uso de poupança externa não cria vulnerabilidade?

Depende, aí eu acho que entra o papel da política econômica. Nós vamos ter de conviver com poupança externa, e a política econômica tem de ser feita de forma a impedir um aumento da vulnerabilidade. Precisamos manter o câmbio flutuante, que permite ajustes automáticos de desequilíbrios externos. Precisamos manter as contas públicas em ordem e o setor público solvente, já que muitos problemas externos derivam de desequilíbrios do setor público. Quanto ao setor privado, precisamos estimular o investimento estrangeiro em renda variável, como bolsa e investimento direto, que não cria problemas, porque se paga menos dividendos quando a economia vai mal. Em relação ao endividamento externo de empresas, devemos estimular o hedge (proteção contra a variação cambial), e a melhor forma de fazer isso é o governo deixar claro que não dará hedge para decisões erradas do setor privado. Outra condição é não dar calote, manter contratos, ter uma relação amistosa com o resto do mundo. A Austrália faz tudo isso, e tem déficit em conta corrente há 25 anos na casa de 4,5% do PIB. E cresce. Eu acho que o nosso modelo é a Austrália. Não temos vocação para chineses. Poupar 50% da renda é horrível. Você consegue imaginar viver a vida toda gastando só metade do que você ganha?
* * *
P.S Quem estiver interessado num modelo simples que explica a relação entre poupança, câmbio e crescimento pode encontrá-lo aqui.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Malditos recursos! (Cristiano Souza e Alexandre Schwartsman)

Uma observação curiosa no estudo do crescimento econômico é que países ricos em recursos naturais não parecem conseguir fazer bom proveito dos mesmos e acabam por apresentar baixas taxas de expansão. Esse fenômeno foi batizado na literatura econômica de maldição dos recursos naturais e sua ocorrência em Angola, Camarões, Chade, Congo, Nigéria, Serra Leoa, produtores de petróleo no Oriente Médio já está documentada. Por outro lado, Botswana e Noruega provam que essa maldição não é destino inescapável.

A literatura reconhece que o crescimento pode ser afetado negativamente pela maldição de recursos naturais por diferentes canais, a saber: 1) doença holandesa; 2) “rent seeking” ou desvio de recursos de atividades economicamente frutíferas por quem detém o poder no país; 3) redução de incentivos para a acumulação de capital humano em função de rendas que não advêm de salário (transferências, gastos sociais); 4) abandono da boa administração econômica em face do alto fluxo de recursos; e 5) diminuição dos incentivos para poupar e investir. Em alguns países um fator (ou a combinação deles) levou a anos de guerra civil.

Comumente confunde-se a maldição dos recursos naturais com a doença holandesa. Esse fenômeno recebeu esse nome em função dos efeitos das descobertas de gás no Mar do Norte no final dos anos 50 sobre a economia holandesa: apreciação da moeda; estagnação na produção industrial (ou até desindustrialização); diminuição dos investimentos privados; aumento do desemprego; queda nos lucros como proporção da renda nacional; e reversão do déficit médio em transações correntes. Porém, essa é apenas uma das formas de contágio da maldição dos recursos naturais.

O debate acerca da possibilidade do Brasil ter sido afetado pela maldição dos recursos naturais, especificamente pela doença holandesa, ocorre desde 2004. Nesse período, a taxa de câmbio mostrou tendência contínua de apreciação (exceto por breve período de agravamento da crise internacional em fins de 2008 e início de 2009) e se fortaleceu 34% contra uma cesta de 13 moedas (pesos argentino, chileno e mexicano; dólares americano e canadense; renmimbi; won; rúpia indiana; iene; libra esterlina; novo dólar de Taiwan; bolívar; e euro), concomitantemente ao crescimento dos preços das commodities.

A observação de alguns dados macroeconômicos leva à rejeição dessa hipótese: a produção industrial de bens manufaturados cresceu em todos os anos entre 2004 e 2008 à taxa média de 4,6% ao ano, não só mais alta que a observada anteriormente, mas também mais próxima à produção global; as exportações físicas desses bens cresceram 7% ao ano em média e a única retração no período ocorreu em 2008, já em função da crise. Ademais, a produção de bens de capital para fins industriais cresceu 8,3% ao ano. Logo, é difícil defender a ocorrência da doença holandesa no Brasil entre 2003 e 2008 à luz da evidência empírica.

É verdade que a simples observação dos dados não constitui prova definitiva para rejeitar a possibilidade. Exercícios estatísticos mais rigorosos efetuados por um dos autores [claro que se trata do Cris, o único entre nós capaz destas coisas. Na verdade é a tese de doutorado dele], que levam em conta a relação entre as variáveis citadas e diversos fundamentos da economia brasileira (diferencial de juros, variáveis fiscais, abertura da economia, diferencial de produtividade, risco-país, desempenho do comércio internacional, política monetária, renda doméstica), revelam relação negativa entre os preços de commodities e a taxa real de câmbio, porém não evidenciam impacto negativo desses preços sobre exportações ou produção de bens manufaturados. Assim, ainda que haja boas razões para crer na relação negativa entre preços de commodities e taxa real de câmbio, a evidência empírica não sugere que isto tenha levado à desindustrialização.

Ressalta-se ainda que o Brasil possui ampla base produtiva e as commodities representam apenas cerca de 7% do PIB do país e 20% dos produtos agropecuário e industrial combinados. Trata-se de fração reduzida para representar perigo à economia similar ao enfrentado por países mais dependentes de recursos naturais como Chile, Rússia ou Noruega.

Pensando à frente, o temor com relação à maldição dos recursos naturais poderia ser justificado em função dos recursos do pré-sal. O volume de petróleo que pode até dar ao Brasil um lugar na OPEP deve gerar enorme volume de entrada de divisas daqui a uma década. O desafio residirá em como gerir esses recursos, mas há exemplos positivos que podem ser seguidos.

Chile e Noruega, por exemplo, criaram fundos de investimentos onde depositam os recursos provenientes da venda de seus recursos naturais. Em épocas de reversão de ciclos de expansão econômica, como vivemos atualmente, esses recursos podem ser usados em verdadeiras políticas anticíclicas para estimular a economia, a exemplo do que tem feito o governo chileno. Um fundo que restrinja a entrada de grande volume de recursos também pode ser eficiente para evitar redução nos incentivos para a acumulação de capital humano limitando aumentos de transferências diretas. Incentivos para diminuir a poupança e investimentos também poderiam ser evitados.

No entanto, a criação de fundos não é uma vacina contra a maldição de recursos naturais e pode, na verdade, dar ensejo a outras variantes do problema.

Talvez as mais sérias dentre essas sejam o “rent seeking” e a corrupção. Dados os imensos recursos à disposição nesses fundos, é inevitável que determinados grupos tentem se apropriar privadamente dessa riqueza, não raro apresentando suas demandas particulares como representativas de toda sociedade. O desafio, portanto, é a definição de um marco legal que impeça esse desenvolvimento por meio de mecanismos de supervisão que permitam à sociedade controlar o uso desses recursos, limitando o poder do governante de plantão.

Por fim, o governo não pode confundir o fluxo de recursos advindos de uma descoberta de recursos naturais com entradas permanentes de divisas a ponto de abandonar boas práticas na condução da política econômica. A combinação de taxa flutuante de câmbio, responsabilidade fiscal e meta de inflação foi essencial para garantir a estabilidade macroeconômica na última década e se fará necessária nas próximas também.

Em suma, não há evidência que o Brasil tenha sido afetado pela maldição dos recursos naturais — via doença holandesa — ao longo dos últimos cinco anos. No entanto, a maldição ainda pode se manifestar de outras formas no futuro próximo em vista da possibilidade da exploração de enorme volume de petróleo. Há formas de evitá-la, e devem ser garantidas desde já.

(Publicado 4/Nov/2009)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Câmbio e política fiscal

Prometi que, quando tivesse tempo, mostraria o modelo que sugere aperto fiscal para levar a um câmbio mais depreciado. Esta não é a única abordagem possível (quem preferir trabalhar com o diagrama de Swan há de chegar a conclusões semelhantes), mas tem a vantagem de integrar a análise num contexto explícito de IT, o que permite chegar a conclusões acerca de efeitos de variáveis nominais sobre reais que seriam difíceis de tratar sob outras estruturas.

O modelo é parente do que apresentei em outros posts (ver, por exemplo, http://maovisivel.blogspot.com/2009/04/ainda-o-fardo-do-economista-neoclassico.html#comments, ou http://maovisivel.blogspot.com/2009/06/maus-habitos-e-mau-halito.html), mas com algumas diferenças (economia aberta e uma regra ótima de política monetária, por exemplo).

A principal conclusão é que uma política fiscal mais apertada tende a levar a uma taxa de câmbio mais depreciada. Uma conclusão adicional é que a redução da meta de inflação depreciaria o câmbio.

O modelo começa com uma Curva de Phillips, associando a inflação corrente, p(t) à expectativa de inflação um período à frente, E[p(t+1)] e ao hiato de produto corrente, y(t), mais um choque de oferta s(t).

p(t) = E[p(t+1)] + ay(t) + s(t) (1)

O hiato de produto, por sua vez, depende da taxa real de juros, aqui definida como a diferença entre a taxa nominal de juros, i(t), e a expectativa de inflação, relativamente à taxa neutra de juros, r#. Além disto o hiato é afetado pela política fiscal, aqui capturada pela medida h(t). Como se trata de uma pequena economia aberta, há também o efeito da taxa de câmbio, e(t), relativamente à taxa de equilíbrio, e#. Por fim, há um choque de demanda, k(t). Tanto s(t) como k(t) são iid, com média zero e variância finita.

y(t) = -b{i(t) - E[p(t+1)] – r#} + ch(t) + d[e(t) – e#] + k(t) (2)

A notar que, para manter o modelo simples, o efeito da taxa de câmbio se dá todo ele sobre o lado da demanda, isto é, não há repasse. Isto dito, como ambos efeitos (repasse e demanda) caminham na mesma direção, os resultados não se alteram de forma geral.

Supomos mobilidade perfeita de capitais, tal que a paridade descoberta de taxa de juros seja válida. Assim, a diferença entre a taxa nominal de juros doméstica e a internacional, i*, corresponde à desvalorização esperada da taxa de câmbio.

i(t) – i* = E[e(t+1)] – e(t) (3)

Quando a taxa de juros local está no nível neutro (i# = r# + E[p(t+1)]) a taxa de câmbio atinge o seu nível de equilíbrio, e#, ou seja:

i# – i* = E[e(t+1)] – e# (3a)

Fechamos o modelo com o comportamento do BC. Neste caso o BC tem apenas a inflação como meta, minimizando a cada período metade do quadrado da diferença entre a inflação esperada e a meta, p#. A função perda é:

L = (1/2){ E[p(t)] – p#}ˆ2 (4)

Por (4) é direto que, a cada período, o BC busca fazer com que a expectativa de inflação se iguale à meta, isto é:

E[p(t)] = p# (5)

Isolando a taxa de corrente de câmbio em (3), usando-a em (2) e substituindo a expressão resultante em (1), descobrimos que a taxa nominal de juros que satisfaz (5) é dada por:

i(t) = [b/(b+d)]{ E[p(t+1)]+r#} + {E[p(t+1)] – p#}/a(d+b) + ch(t)/(d+b) +

+[d/(b+d)]{ E[e(t+1)] + i* - e#} (6)

A expressão (6) parece complicada, mas não é. Para ver isto, vamos dar um passo atrás e supor, por um instante, que estamos no caso de uma economia fechada, isto é, que o parâmetro d=0. Nesse caso (6) pode ser reescrita como:

i(t) = { E[p(t+1)]+r#} + {E[p(t+1)] – p#}/ab + ch(t)/ b) (6a)

O que diz (6a)? Diz que a taxa de juros para chegar à meta de inflação deve ser a neutra acrescida de dois elementos: (i) o desvio da taxa esperada com relação à meta; e (ii) o impulso fiscal. Estes mesmos elementos estão em (6), mas com duas alterações.

Em primeiro lugar há o efeito da taxa de câmbio, que terá que ser compensado pela política monetária (da mesma forma que esta compensa a política fiscal). Em segundo lugar, como a taxa de juros afeta a taxa de câmbio (por (3)), há um canal adicional para a política monetária, capturado pelo parâmetro d. Isto tipicamente reduz as alterações de taxas de juros requeridas para fazer a inflação convergir à meta.

Sob a regra (6), o hiato de produto seria dado por:

y(t) = {E[p(t+1)] – p#}/a + ak(t) + s(t) (7)

Assim, a inflação seria:

p(t) = p# + ak(t) + s(t) (8)

Ou seja, a meta mais os efeitos dos choques de demanda e oferta. Como, em média, esses choques são nulos, a inflação esperada é exatamente a meta:

E[p(t)] = p# (9)

Isto implica que a expectativa de inflação um período à frente também é igual à meta, de modo que o hiato de produto é determinado por:

y(t) = ak(t) + s(t) (7a)

Vale dizer, em média o hiato de produto seria zero, ou seja, mesmo sob um BC que só se preocupe com a inflação, a regra de política monetária tende a estabilizar o produto ao redor do potencial, à parte os choques imprevisíveis de demanda e oferta.

Sob (7a) a taxa nominal de juros seria dada por:

i(t) = (p# + r#) + ch(t)/(d+b) (10)

Isto é, a taxa de juros em equilíbrio pode se desviar da neutra para compensar efeitos de uma política fiscal expansionista (h>0) ou contracionista (h<0).>

Substituindo (10) na equação de paridade de taxa de juros teríamos:

e(t) = e# -(bc/w)h(t) (11)

onde w = b/(b+d).

Em particular note que, em equilíbrio:

e# = E[e(t+1)] + i* - (r#+p#) (12)

Equações (11) e (12) têm implicações importantes para a taxa de câmbio.

Por (11) vemos que uma política fiscal mais expansiva tende a apreciar a taxa de câmbio relativamente ao seu nível de equilíbrio. A intuição é direta: com uma política fiscal expansionista, o BC tem que elevar o juro além do seu nível neutro (pela equação (6), seguindo a intuição de (6a)) para entregar a inflação (esperada) na meta, o que aprecia a taxa de câmbio relativamente ao seu valor de equilíbrio. Isto, aliás, reduz o fardo sobre o BC (relativamente ao caso da economia fechada), pois, como vimos, há agora um canal adicional para a taxa de juros afetar a inflação.

Por (12) notamos que uma meta de inflação mais baixa tende a depreciar a taxa de câmbio de equilíbrio. Por que? Porque a taxa de câmbio de equilíbrio neste contexto depende do juro nominal de equilíbrio, que se reduz com a meta de inflação. Ou seja, reduzir a meta de inflação implica uma taxa nominal neutra menor e câmbio mais depreciado em média.

Em outras palavras, quem quer conviver com câmbio mais depreciado deveria recomendar: (a) aperto fiscal; e (b) redução da meta de inflação.