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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Uma não-solução

Vender reservas para pagar a dívida não é solução. Embora elevadas, são ainda insuficientes para mudar o jogo. Além disso, seu efeito é temporário: sem medidas de ajuste, a dívida voltaria a crescer. É uma discussão acessória, enquanto o problema principal segue se deteriorando.

Entra mês, sai mês e – como a dívida do governo não para de crescer – a mesma ideia ressurge, pelo menos desde a campanha presidencial: a venda de reservas internacionais para abater um pedaço da dívida.

Parece fazer sentido. Como o rendimento sobre as reservas (em moeda estrangeira) é baixo, por força das reduzidas taxas de juros no mundo desenvolvido e, mesmo com a Selic em seu menor patamar da história, o custo da dívida doméstica é bem mais alto, a venda das reservas poderia dar certo alívio para o endividamento. Mal comparando, é como se pudéssemos vender os dólares que sobraram da última viagem ao exterior (faz tempo!) para, com o reais assim obtidos, pagar um pedaço do que devemos no crediário.

Apesar das aparências, eu vejo ao menos dois problemas com a proposição. O mais imediato é que o efeito de medidas nesse campo é bem menor do que uma olhada rápida poderia sugerir.

A começar porque, muito embora o volume total de reservas atinja algo como US$ 355 bilhões segundo os dados mais recentes (relativos a novembro), já houve um adiantamento do ponto de vista de venda de reservas para abater a dívida.

Com efeito, o Banco Central vendeu US$ 59 bilhões de “swaps” cambiais. A operação de “swap” representa uma troca: no caso o BC paga ao seu detentor o equivalente à variação cambial, enquanto aquele paga ao BC o CDI acumulado no período (na prática, quase a Selic). Assim, tudo se passa como se o BC já tivesse vendido reservas (abrindo mão, portanto, da variação cambial) e reduzindo suas operações compromissadas, deixando de pagar (aproximadamente) a Selic sobre elas.

Temos, portanto, que descontar os “swaps” das reservas, o que nos deixa com um volume ainda expressivo de US$ 296 bilhões de reservas líquidas desses instrumentos, que, convertidos em reais, representam perto de R$ 1,7 trilhão, um bocado de dinheiro.

Ocorre que a dívida do governo é um bocado bem maior: em setembro, quase um par de meses atrás, equivalia a R$ R$ 6,5 trilhões. Naquele momento as reservas líquidas (US$ 298 bilhões no mês) representavam, portanto, pouco mais de um quarto da dívida do governo.

Há, além disso, que levar em conta que, obviamente, não é boa política “queimar” as reservas, ainda mais em tempo de enorme volatilidade em mercados internacionais. É necessário manter reservas num nível que proteja o país em caso de paradas súbitas nos fluxos de capitais, como observamos no período de março a maio desse ano, por exemplo, quando houve saídas expressivas de investimentos externos: perto de US$ 12 bilhões no mercado acionário, US$ 20 bilhões em títulos negociados no mercado doméstico e US$ 8,5 bilhões em títulos de curto prazo negociados no mercado internacional.

Note-se que as saídas teriam sido provavelmente ainda maiores do que os US$ 40 bilhões registrados no período caso as reservas fossem muito baixas, porque o receio de falta de dólares realimentaria o processo.

Não está claro ainda qual o nível “ótimo” de reservas. O FMI estima em torno de US$ 240 bilhões para o Brasil (a Instituição Fiscal Independente tem estimativa similar), mas, mesmo que pudéssemos passar com algo menos, digamos, US$ 200 bilhões, o espaço para venda de reservas seria algo inferior a US$ 100 bilhões hoje, ou seja, pouco menos de 10% da dívida bruta, conforme ilustrado no gráfico abaixo.

 

Fonte: Autor (com dados do BC)

É verdade que um dólar mais caro faria aumentar as proporções acima calculadas. Ainda assim, cabe a pergunta: qual o nível do dólar que permitiria ao governo “zerar” sua dívida por meio da venda (total) das reservas líquidas? A conta não é difícil e sugere que precisaríamos do dólar na casa de R$ 21-22 para zerar a dívida; se o objetivo for reduzi-la à metade, então algo na casa de R$ 10-11 faria o truque. Usando apenas a parcela excedente das reservas sobre o “ótimo” os números são ainda maiores. Em outras palavras, trata-se de mato de onde dificilmente sairá qualquer coelho.

Vale dizer, a venda de reservas como estratégia de redução da dívida, embora possível, dificilmente mudaria dramaticamente o jogo.

Já o segundo problema refere-se à natureza finita das reservas. Só podemos fazer a “mágica” uma única vez; isto é, mesmo que fosse possível abater parcela significativa da dívida (contrariamente ao indicado pela análise anterior), se não mudarmos a dinâmica de endividamento por meio de um ajuste fiscal considerável, cedo ou tarde voltaríamos à mesma posição em que estamos hoje, mas sem reservas excedentes.

Não há “bala de prata” para a trajetória de endividamento crescente do país. Só sairemos dela de forma saudável se fizermos os esforços necessários, aprovando reformas que reduzam o peso dos gastos obrigatórios sobre o orçamento e dotando as administrações federal, estadual e municipal de instrumentos que permitam conter a tendência de elevação persistente desses gastos que vem de décadas.

Sem isso, toda e qualquer mágica que se possa cogitar conseguirá, no máximo, ganhar tempo, o mesmo tempo que desperdiçamos discutindo o acessório enquanto o essencial continua a se deteriorar a olhos vistos.



(Publicado 25/11/2020)

terça-feira, 24 de novembro de 2020

A inflação da Covid

Calculamos uma medida alternativa de inflação levando em conta mudanças no padrão de consumo durante a epidemia. Nossa medida mostra inflação mais elevada no período mais agudo da epidemia, mas ainda consistente com a trajetória de metas.

São comuns reclamações sobre o IPCA, a medida oficial de inflação, em parte por desconhecimento do que ele mede, em parte por dificuldades envolvidas na própria construção do índice. No que se refere ao primeiro tema, há uma confusão permanente que de maneira geral se reflete na pergunta: “como dizem que a inflação está em queda se estive ontem na feira/supermercado/padaria e os preços estavam mais altos?”.

A confusão, no caso, se refere à própria definição de inflação, que normalmente é expressa como um (a) aumento (b) persistente do (c) nível geral de preços. A primeira parte da definição distingue preços altos de preços em elevação. Se os preços subiram 10% em dado ano e 5% no ano seguinte, é correto dizer que a inflação caiu, embora os preços tenham ainda aumentado: apenas aumentaram menos do que no ano anterior.

O segundo componente requer que o aumento seja persistente, o que tem sido o caso brasileiro há décadas (embora a inflação, repitamos, tenha caído nos últimos anos – e nas últimas décadas também!). Ou seja, se todos os preços subirem em determinado período (um mês, digamos) e fiquem parados daí em diante, não seria considerado inflação, embora, deixemos claro, na prática não me lembro de nada remotamente parecido.

O terceiro componente se refere ao “nível geral de preços”, definição – como ocorre frequentemente em Economia – bem mais fácil em teoria do que na prática. O IPCA, por exemplo, acompanha 377 produtos (bens e serviços), alguns dos quais sobem e outros caem num dado período.

O número divulgado como a variação do nível geral de preços de um certo mês é na verdade uma média ponderada das variações de preços dos 377 produtos do IPCA, sendo o peso de cada um desses produtos fruto de uma pesquisa (Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF) realizada periodicamente pelo IBGE, de forma a atualizar o perfil de consumo das famílias brasileiras cujo rendimento vai de 1 a 40 salários mínimos, isto é, pessoas muito diferentes.

Obviamente, nenhuma família em particular é perfeitamente retratada pela POF e exatamente por este motivo a inflação divulgada pelo IBGE não é a inflação de cada família, mas da média das famílias.

Esse problema foi agravado durante a epidemia. Vários dos produtos (ou grupo de produtos) incluídos na POF não foram consumidos pela maior parte das pessoas ao longo de 2020. Exemplos abundam: alimentação fora do domicílio (bares e restaurantes), serviços pessoais (costura, manicure, barbearia, etc.), transporte aéreo, cinema, casa noturna, sem, é claro, esgotar a lista.

No caso de alguns desses produtos, como passagem aérea, houve queda expressiva de preços (quase 60% de janeiro a agosto), mas a verdade é que praticamente ninguém se beneficiou disso, já que poucos viajaram durante a epidemia (eu, por exemplo, não entro num avião nem carregado!).

Nesse sentido, o IPCA perdeu um tanto da sua capacidade de medir a evolução do “custo de vida” das pessoas, ponto já levantado por outros economistas (se a memória me serve, o primeiro que vi foi Eduardo Zilberman, da PUC-RJ).

Reestimei, assim, o IPCA levando em conta esse fenômeno, retirando do índice bens e serviços pouco (ou nada) consumidos durante a pandemia. O resultado me deixou com um conjunto de produtos cujos pesos equivalem a cerca de 75% do peso original do IPCA, devidamente recalculados para que o novo total somasse 100%. Com a nova estrutura de pesos é possível estimar (ainda que de forma imperfeita) a “inflação” da Covid, índice que denominei IPCA-C. Os resultados estão resumidos na tabela abaixo.

IPCA-C vs. IPCA – %

 

jan/20

fev/20

mar/20

abr/20

mai/20

jun/20

jul/20

ago/20

set/20

out/20

2020

IPCA-C

0,14

0,14

0,32

0,28

-0,06

0,24

0,34

0,20

0,51

0,60

2,74

IPCA

0,21

0,25

0,07

-0,31

-0,38

0,26

0,36

0,24

0,64

0,86

2,22

Diferença

-0,07

-0,11

0,25

0,59

0,32

-0,02

-0,02

-0,04

-0,13

-0,26

0,51

Fonte: Autor com dados do IBGE

 Como se vê, de março a julho o IPCA-C superou consistentemente o IPCA, isto é, a inflação sentida (em média) pelas famílias no período mais agudo da epidemia foi mais alta do que a calculada pelo IBGE, acumulando 1,33% nesses 6 meses contra 0,24%, diferença de mais de um ponto percentual. O padrão se inverteu em setembro e outubro, de modo que nos 10 primeiros meses do ano, como mostrado acima, a diferença ficou um tanto menor: 0,51% (2,74% medido pelo IPCA-C e 2,22% pelo IPCA).

Não se trata, quero deixar claro, de crítica ao trabalho do IBGE, que segue com cuidado a metodologia para a estimativa da inflação, mas do uso desses dados para compreender melhor o impacto econômico da epidemia sobre a população. No que diz respeito ao BC, mesmo considerando o IPCA-C, a inflação ainda deve ficar abaixo da meta para o ano (4%).

Dito isso, como notado brevemente acima, o padrão parece ter se invertido nos dois últimos meses (a amostra, porém, é reduzidíssima), já que o IPCA-C ficou abaixo do IPCA em setembro e outubro, apesar da forte alta da alimentação no domicílio, cujo peso no IPCA-C (em torno de 18,5%) é mais alto do que no IPCA (perto de 14,5%). Isso revela que os preços ausentes do IPCA-C (dos produtos em tese não-consumidos durante a epidemia) subiram mais fortemente no período mais recente.

Esse movimento, contudo, até agora me parece mais um realinhamento de preços depois de superada a fase mais aguda da crise sanitária (sigo, porém, preocupado com o aumento das infecções nos últimos dias) do que uma pressão inflacionária que, para recuperar o tema do início da coluna, seja persistente e generalizada, pelo menos não por ora.

A combinação de desemprego elevado com expectativas de inflação ao redor da meta no horizonte relevante (2021 e 2022) deve manter a inflação ainda controlada ao longo do ano que vem. A principal ameaça segue vindo do lado fiscal, dada a ausência de medidas para recolocar a dívida em trajetória sustentável. Se nada fizermos, em algum momento, hoje difícil de precisar, não poderemos mais contar com as expectativas ancoradas, como ocorreu em 2015 e boa parte de 2016. Caso cheguemos a isso, mesmo com desemprego elevado, o risco inflacionário irá ressurgir.


(Publicado 18/Nov/2020)


terça-feira, 17 de novembro de 2020

A próxima pedalada

A criação de depósitos remunerados no BC para controle de liquidez abre perigosa brecha contábil no que se refere às estatísticas fiscais, permitindo que desequilíbrios orçamentários não apareçam na dívida. Para evitar novas “pedaladas”, devem ser devidamente contabilizados na dívida bruta.

Além da autonomia do Banco Central, o Senado aprovou na semana passada projeto de lei de autoria do líder do PT na casa, senador Rogério Carvalho, que cria um novo instrumento para a regulação da liquidez na economia: os depósitos remunerados no BC. Mesmo reconhecendo seus méritos, noto que há risco considerável de “maquiagem” das estatísticas referentes à dívida pública, bastante subestimado no presente contexto.

Para entender a relevância e os riscos associados a essa nova ferramenta precisamos antes entender como e por que o BC controla a liquidez no quadro atual.

A cada seis semanas o Comitê de Política Monetária se reúne e define uma meta para a taxa de juros básica, a Selic, sua principal ferramenta de política, atualmente 2% ao ano. Para garantir que a taxa Selic praticada fique próxima à meta, o BC se compromete a dar ou tomar emprestadas reservas bancária ao redor daquele valor.

Assim, se faltam reservas no sistema e a Selic tende a ficar acima da meta, o BC doará recursos ao sistema, tomando como garantias títulos públicos federais, situação muito rara hoje, mas que ocorria no início do século. Se, caso contrário, houver excesso de reservas bancárias e, portanto, a taxa Selic tender para baixo da meta, o BC toma recursos do sistema, também dando como garantia títulos públicos de sua carteira.

No primeiro caso o BC compra títulos com compromisso de revenda em determinada data; no segundo, vende títulos com compromisso de recompra. Por esse motivo, tais operações são denominadas de “compromissadas”. Como se destinam a manter a taxa de juros ao redor da meta Selic, o custo dessas operações fica normalmente ao redor dela: um pouco acima se o BC for doador de recursos; um tanto abaixo se for tomador de recursos.

Considere, por exemplo, o que ocorre quando o BC adquire dólares do mercado. Bancos entregam a moeda estrangeira ao BC que, em troca, os paga creditando as contas de reservas bancárias. Isso cria um excesso de liquidez que levaria, como vimos, à queda da Selic em relação à sua meta, contrabalançada, contudo, pelas operações compromissadas.

Sob a nova sistemática, o BC poderia conseguir o mesmo resultado utilizando-se de depósitos remunerados. O excesso de reservas bancárias poderia ser depositado junto ao BC, mantendo a Selic próxima à meta. A remuneração dos depósitos, dada pela Selic (menos uma margem), seria assim igual à remuneração das compromissadas, o que, do ponto de vista da política monetária, representaria a conhecida troca de seis por meia dúzia. Pela perspectiva do controle da liquidez, a nova sistemática é uma opção adicional.

Do ponto de vista de política fiscal, contudo, há uma diferença importante, cujas consequências são potencialmente danosas.

Note-se em primeiro lugar que o Brasil adota contabilidade própria no que diz respeito à dívida pública. O critério do FMI requer que todos os títulos públicos sejam incluídos na dívida, mas o Brasil não inclui os títulos em poder do BC; apenas aqueles usados nas operações compromissadas.

Imagine agora que o Tesouro tenha déficits recorrentes (como de hábito) e que não consiga colocar títulos (ou não queira, porque investidores demandam taxas altas para comprar papéis mais longos). Nesse caso, ele saca recursos de sua conta no BC (Conta Única) e os usa para pagar o excesso de gastos sobre receitas, bem como as dívidas que estão vencendo, elevando as reservas bancárias.

Assim, como no episódio da compra de dólares, o BC ajusta o nível de reservas por meio das compromissadas e, ao final das contas, títulos que o Tesouro não conseguiu vender para pagar o excesso de gastos e a dívida vincenda acabam aparecendo sob a forma das operações compromissadas, devidamente registradas na dívida bruta. O desequilíbrio fiscal é, portanto, corretamente capturado.

Se, porém, a adequação das reservas bancárias for feita por meio de depósitos remunerados, isso deixará de ser verdade, porque depósitos não são contabilizados como dívida. O Tesouro poderia, pois, incorrer em déficits (usando recursos da Conta Única) sem que as estatísticas de endividamento captassem o fenômeno.

Note-se que o BC pagará juros sobre os depósitos, o que reduz seus lucros e, portanto, o valor que transfere ao Tesouro. Em outras palavras, embora o BC faça o desembolso dos juros, o pagador em última instância ainda será o Tesouro, usando, na frase  imortal de Armínio Fraga, “o meu, o seu, o nosso dinheiro”. Desse ponto de vista, depósitos remunerados são, na prática, dívida, tanto quanto as compromissadas.

Dado que estas atingiram pouco mais de R$ 1,6 trilhão em outubro (equivalente a um quarto da dívida bruta, contra R$ 951 bilhões em dezembro do ano passado), principalmente por força da combinação de déficits e dificuldade de rolagem da dívida, fica claro que o potencial para distorção das estatísticas fiscais é gigantesco.

As “pedaladas” do governo Dilma ocorreram precisamente porque brechas contábeis permitiram ocultar desequilíbrios orçamentários; se não quisermos repetir a experiência, será necessário garantir que novas brechas não irão aparecer.

Concretamente, os depósitos remunerados no BC devem ser incluídos nas estatísticas de dívida pública. Com isso afastaríamos o risco de uso desse instrumento para fins para os quais não foi desenhado, mantendo, porém, sua utilidade para a regulagem da liquidez na economia. Sem isso, cedo ou tarde, testemunharemos pedaladas inesquecíveis.



(Publicado 11/Nov/2020)

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Escalada

Há indicações que o mercado de trabalho pode ter virado de julho para agosto. Todavia, o tamanho da devastação sugere que a recuperação será muito demorada.

O IBGE divulgou a pesquisa do mercado de trabalho (PNAD) com dados relativos a agosto, ou melhor, ao período de 3 meses encerrado naquele mês, revelando que o emprego caiu para 81,7 milhões ante 82,0 milhões em julho, o que, em termos dessazonalizados, significaria redução de 82,0 milhões para 81,6 milhões. A leitura crua dos números sugeriria, portanto, que o mercado de trabalho continuou afundando em agosto, mas creio que isso não seja verdade.

Aprendemos recentemente que há maneiras de estimar os valores mensais originais da série da PNAD, que podem jogar uma luz distinta nos movimentos de curtíssimo prazo do mercado de trabalho.

Fonte: IBGE (dessazonalizado pelo autor)

O gráfico acima apresenta as séries suavizadas (média de três meses), enquanto abaixo mostramos a estimativa das séries mensais. Como se vê, os dados mensais são muito mais voláteis do que a média móvel; no entanto, o uso desta implica risco de perder possíveis pontos de inflexão, como parece ser o caso na transição de julho a agosto.

Fonte: Estimativa do autor


As estimativas da série mensal sugerem que o emprego havia caído a 80,5 milhões em julho (80,1 milhões com ajuste sazonal), passando para 82,4 milhões em agosto (82,1 milhões com ajuste sazonal), ganho de 2 milhões que não aparece nos dados suavizados.

À luz de outras informações também indicando recuperação da atividade econômica ao longo do terceiro trimestre, há boa chance que, do ponto de vista da criação de empregos, julho tenha sido de fato o último mês de uma forte queda em termos de emprego total, desde o pico de 94,3 milhões (dessazonalizados)  em fevereiro

O desemprego, por outro lado, mesmo calculado com as estimativas dos dados mensais, não apresentou melhora, mas precisamos reconhecer que a métrica habitual também perdeu relevância no atual cenário.

O distanciamento social reduziu drasticamente a taxa de participação, ou seja, a relação entre a força de trabalho (empregados ou procurando emprego) e a população em idade ativa, de uma média em torno de 61-62%, que prevaleceu de 2012 ao começo deste ano, para apenas 54,6% nos últimos dois meses. Com isso, o desemprego medido subestima o impacto real da crise no mercado de trabalho, revelando alta relativamente moderada de 11,5% para 14,5% (série mensal com ajuste sazonal) entre fevereiro e agosto.

Nossas estimativas de como seria o desemprego caso a taxa de participação tivesse permanecido em sua média histórica (“desemprego sombra”), no entanto, indicam quadro bem pior. Como não temos estimativas da taxa de participação mensal usamos a série suavizada, concluindo que o “desemprego sombra” saltou de 11% em fevereiro para 23,2% em julho, antes de cair levemente para 22,6% em agosto, o que reforça a tese da inflexão em julho.

Fontes: IBGE e estimativas do autor (dados dessazonalizados pelo autor)

Ao mesmo tempo, alertamos – por mais óbvio que pareça – que a recuperação, se verdadeira, é extraordinariamente modesta comparada às perdas ocorridas desde fevereiro. Houve destruição, segundo nossas estimativas, de cerca de 14 milhões de empregos, enquanto a taxa de “desemprego sombra” praticamente dobrou.

Isso indica que, por qualquer medida razoável, apesar dos sinais de recuperação ao longo do terceiro trimestre, o hiato do produto, capturado por medidas de folga no mercado de trabalho, continua muito negativo.

Outra medida mais ampla de folga nesse mercado, que leva em consideração a força de trabalho potencial (pessoas que não buscaram emprego, mas estariam disponíveis para trabalhar), os desalentados, e os que trabalham menos do que gostariam, permanece perto de 30%, ante 23% no início do ano. Da mesma forma, mesmo com dados do Caged sugerindo o contrário, o IBGE ainda não captou sinais de vida no mercado de trabalho formal.

Em suma, o mercado de trabalho pode mesmo ter atingido o fundo do poço em julho, mas não devemos perder de vista a devastação observada nos últimos seis meses, muito menos o tamanho do hiato negativo do produto a ela associado. Assim, enquanto as expectativas de inflação permanecerem controladas, o risco de retomada da inflação permanecerá pequeno, apesar do forte soluço no final deste ano.

Dito isso, se a deterioração fiscal chegar a um ponto em que percamos o controle das expectativas de inflação, nem o hiato negativo haverá de segurar a inflação, como ficou claro no período 2015-16.

Ainda não chegamos lá, mas temos nos esforçado um bocado.



(Publicado 4/Nov/2020)

Apatia e apetite

A promessa de manutenção da Selic a 2% aa pode cair antes do que se imagina, caso persistam a apatia governamental quanto às reformas e o enorme apetite dos que veem na expansão do gasto um atalho para seus planos políticos. Basta que continuemos a não fazer nada relevante no campo do ajuste fiscal.

Desde agosto o BC incorporou oficialmente a “prescrição futura” (forward guidance) ao seu arsenal de instrumentos monetários, em adição à taxa de juros básica, a Selic, bem como outras ferramentas, por exemplo, depósitos compulsórios, ou requerimentos de capital.

Convencido da (quase) impossibilidade de redução adicional da Selic – diagnóstico que não compartilho, mas fazer o quê? – o BC busca estimular a economia por meio da promessa de manutenção da Selic nos níveis atuais por um período longo de tempo. Espera-se, assim, influenciar as taxas mais longas de juros e, portanto, a atividade, empurrando a inflação de volta à trajetória de metas.

Dessa forma, dado que não se espera nova rodada de corte da taxa de juros de curto prazo, a tarefa dos analistas, no caso eu e os demais economistas que seguimos o Copom, passou a ser antecipar até quando vale a promessa do BC.

A primeira coisa a lembrar é que não se trata de um juramento incondicional: não foi prometido que, sob qualquer circunstância, a taxa de juros permaneceria inalterada.

Ao contrário, o BC estabeleceu dois conjuntos de condições para manter seu compromisso. O primeiro deles diz respeito ao comportamento esperado da inflação em 2021 e, ainda em menor grau, 2022. No caso, enquanto as projeções do próprio BC e dos analistas de mercado (capturadas pela pesquisa Focus) não se aproximarem da meta para a inflação (3,75% em 2021 e 3,50% em 2022), a Selic seguirá no seu nível atual (2,0% ao ano).

A Focus mais recente aponta para inflação de 3,1% em 2021 (algo acima dos 3% registrados desde meados do ano), ainda bastante abaixo da meta. Não temos ainda, é bem verdade, as projeções mais atualizadas do BC, que deverão ser informadas depois da reunião do Copom, mas as mais recentes, que incorporavam tanto o dólar a R$ 5,30 (7-8% mais barato do que os níveis atuais), como a estabilidade da Selic até outubro do ano que vem, sugeriam inflação próxima a 3%, valor que deve subir, mas não muito, apesar da alta nos meses finais de 2020.

O primeiro conjunto de condições deve, portanto, ser atendido.

Já o segundo conjunto incorpora outros dois elementos. Em primeiro lugar a manutenção do atual regime fiscal (ou seja, o teto de gastos), “já que sua ruptura implicaria alterações significativas para a taxa de juros estrutural da economia” no entender do BC. Além disso, as expectativas para prazos mais longos deveriam também permanecer próximas à meta, pois seu descolamento “indicaria que os custos derivados do estímulo monetário estariam se sobrepondo a seus benefícios”.

No caso, ambos os requerimentos do segundo conjunto ainda são satisfeitos. Expectativas para 2023 e 2024 permanecem próximas à meta e, ainda que aos trancos e barrancos, bem como sujeito a ameaças de toda sorte, o teto de gastos sobrevive.

À luz dessas considerações espera-se, pois, que o BC mantenha sua prescrição futura nessa próxima reunião.

A questão mais interessante, porém, diz respeito à capacidade de manutenção desse compromisso à frente, nem tanto na reunião final de 2020, mas já nas reuniões de 2021.

Confesso que minha preocupação maior a respeito não está relacionada ao comportamento da inflação no ano que vem. Apesar dos números salgados de outubro e de alguma revisão para cima das projeções e expectativas para 2021, permanece distância considerável com relação à meta do próximo ano.

Se dependêssemos apenas dessa métrica, a Selic seguiria em 2% até o BC começar a mudar o foco de sua política monetária para 2022, o que normalmente ocorreria a partir de meados de 2021, lembrando que projeções e expectativas para aquele ano já se encontram ao redor de 3,5%.

O jogo, porém, vai além disso. O teto de gastos se encontra debaixo de fogo cerrado, a despeito das juras de amor a ele mesmo por parte de quem não tem o menor interesse em sua manutenção. Um dos esportes favoritos em Brasília, o ciclismo fiscal (de triste memória), envolve encontrar alguma maneira de contornar as restrições impostas pelo teto, como, por exemplo, a tentativa fracassada de financiar um programa mais parrudo de transferências aos mais pobres por meio do calote nos precatórios, por vezes até preservando a letra da lei, mas passando longe, bem longe, de seu espírito.

Não é por outro motivo que o presidente do BC, Roberto Campos Neto, alertou mais de uma vez para essa condicionante.

A bem da verdade, como notado aqui mesmo em colunas recentes, bem como por outros economistas, a evolução das taxas de juros no futuro não tão longínquo captura precisamente esse temor. As taxas reais de juros dos títulos do Tesouro atrelados ao IPCA para um horizonte de 9-10 anos, que chegaram a alcançar abaixo de 4% ao ano logo após a aprovação da reforma da previdência, têm ficado teimosamente na casa de 5% ao ano (quando não um tanto acima) desde meados de 2020.

Dados o prazo (longo) e a natureza (indexada ao IPCA) desses papéis, deve ficar claro que não se trata de reavaliação da trajetória de política monetária, mas elevação da “taxa de juros estrutural”, como teme o BC, motivada principalmente pelo aumento do risco fiscal no país.

A prescrição futura, portanto, pode cair antes do que se imagina, caso persistam a apatia governamental no que se refere à reforma e o enorme apetite dos que veem na expansão do gasto um atalho para seus planos políticos. Para isso, basta que continuemos a não fazer nada relevante no campo do ajuste fiscal.



(Publicado 28/Out/2020)