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terça-feira, 24 de abril de 2018

Black mirror


Viciado que sou na leitura de jornais (quatro por dia, só um pouco menos que as xícaras de expresso) não posso dizer que tenha sido surpreendido pela notícia publicada pelo Estado de S. Paulo acerca dos magistrados do Rio Grande do Norte terem se concedido licença-prêmio retroativa desde 1996, prebenda que poderia resultar em pagamentos de até R$ 300 mil reais para os beneficiários da generosidade dos desembargadores para com seus semelhantes, se não tivessem recuado depois da divulgação.

Como aprendi com Pedro Fernando Nery, a tal licença foi criada em 1952 para beneficiar servidores que não faltavam ao trabalho (o que em si já é revelador da mentalidade nacional: premiar um comportamento que deveria ser padrão) com folga de 90 dias a cada 5 anos, ou seu uso em dobro para a contagem de tempo até a aposentadoria.

A lei 9527/97, porém, acabou com o privilégio, mantendo apenas uma possibilidade: em caso de morte do servidor que não o houvesse usufruído, seus dependentes poderiam receber um complemento na pensão por morte. Independentemente da lei, contudo, órgãos com autonomia financeira continuaram a pagar para quem se aposentasse sem usar a licença-prêmio. A Procuradoria Geral da República, contudo, decidiu que sequer seria necessário esperar a aposentadoria, interpretação que o Tribunal de Justiça do RN tentou emplacar.

Obviamente não falta quem defenda a legalidade do pagamento que, diga-se, por ser considerado indenização, não entra na base de cálculo do imposto de renda, ou contribuição previdenciária, nem para fins de determinação do teto de vencimentos.

Nem este evento, nem o pedido da ex-ministra Luislinda Valois para somar a seu salário também o valor que recebia como aposentada (superando em muito o teto constitucional), nem várias outras instâncias de órgãos da administração pública acumulando vantagens são casos isolados. Ao contrário, revelam que há muito o setor público foi capturado por interesses privados, tema que explorei em coluna publicada no final do ano passado.

Segundo estimativas do Tesouro Nacional, os três níveis de governo do Brasil desembolsaram em 2015 R$ 2,5 trilhões (37,5% do PIB) referentes às suas despesas primárias. Naquele ano, pouco mais de metade delas (R$ 1,3 trilhão, ou 19% do PIB) foram destinadas à remuneração de empregados e ao pagamento de pensões e aposentadorias do setor público, segmento que insere, com sobra, na parcela mais rica da população.

Não temos ainda os dados detalhados no que se refere às pensões e aposentadorias para 2017, mas noto que no ano passado a parcela referente à remuneração do funcionalismo aumentou, sugerindo situação ainda mais grave nos dois últimos anos.

Na verdade, para o período para o qual dispomos de dados o que se observa é um aumento persistente dessas despesas relativamente ao produto, enquanto o investimento governamental perde fôlego, assim como os gastos associados mais diretamente à prestação de serviços públicos.

O estado brasileiro se tornou um espelho obscuro da sociedade, instrumento para grupos privilegiados se apropriarem de parcelas crescentes da renda. Apesar disto, ou cegos, ou anestesiados, nada fazemos para alterar o processo que, a se manter o status quo, em poucos anos se tornará insustentável.




(Publicado 18/Abr/2018)

terça-feira, 17 de abril de 2018

As ilusões perigosas


Alertei novamente na última semana sobre as perspectivas complicadas para as contas públicas nos próximos anos caso não avancemos com reformas que reduzam o grau de rigidez dos orçamentos. Soa repetitivo, sei, mas, dado que ninguém parece querer tratar do assunto e não falta quem negue a existência do problema, fazer o quê?

Há, porém, os que, embora de acordo acerca do mau estado das finanças públicas, acreditam que haverá conserto, independentemente de quem for eleito em 2018.

O exemplo, frequentemente citado, é o comportamento observado no primeiro governo Lula, quando, apesar de retórica em contrário (em 2001, é bom lembrar, o PT apoiou um referendo sobre o não pagamento da dívida), houve aprofundamento do ajuste fiscal. Naquele momento a despesa federal caiu de R$ 614 bilhões em 2002 para R$ 590 bilhões em 2003 (a preços de hoje) e o superávit primário do setor público se manteve até 2008 na casa de 3,5% do PIB.

É um bom argumento, mas acredito que não se aplica às condições atuais. Em primeiro lugar porque o problema fiscal não era tão agudo. Entre 1999 e 2002, por exemplo, o superávit primário médio já superava 3% do PIB. Não havia, pois, necessidade premente de um ajuste considerável; assim, por mais que uns e outros esperneassem, o esforço fiscal adicional foi relativamente modesto comparado ao que se acredita ser necessário hoje.

Em segundo lugar, porque as condições políticas não poderiam ser mais distintas. Em que pese a ambiguidade da “Carta ao povo brasileiro”, o desempenho fiscal no primeiro governo Lula não foi percebido como afronta ao que foi dito na campanha, a não ser, é claro, pelos economistas do PT, devidamente excluídos (ainda bem!) da tarefa de gerir a política econômica naquele momento. (Quando assumiram, nos colocaram na pior recessão dos últimos 40 anos).

Já a experiência do segundo governo Dilma não poderia ser mais ilustrativa. Depois de negar, anos a fio, a existência de problemas e sugerir, durante a campanha, que banqueiros roubariam a comida dos pobres, a ex-presidente colocou como ministro da Fazenda um vice-presidente de um dos maiores bancos privados do país (e apenas porque o presidente do dito banco recusou o convite) e tentou, de forma desastrada, reverter o rumo de sua (não menos desastrada) política econômica.

O fracasso veio daí, não de “pautas-bomba”, o atual mimimi dos responsáveis pelo fiasco. A começar porque seu próprio partido jamais apoiou a iniciativa; ao contrário, quando não se omitiu, simplesmente a sabotou. E também porque a população, ao perceber o logro de que fora vítima, se mostrou indignada: a popularidade do governo, que superava 40% no final de 2014, despencou para menos de 10% seis meses depois. A perda de apoio no Congresso (e, portanto sua incapacidade para avançar a pauta de reformas) resultou destes processos.

À luz da história recente, a crença que um governo pode se eleger omitindo o que pretende fazer, para uma vez no poder, aprovar medidas complexas e impopulares me parece um claro caso de esperança ilusória (wishful thinking).

Reformas não serão aprovadas por quem não as defender na eleição e tentativas em contrário podem nos levar a crises políticas tão graves quanto vivemos em 2015-16.



(Publicado 11/Abr/2018)

terça-feira, 10 de abril de 2018

À espreita


Apesar da melhora modesta, embora visível, as contas públicas no Brasil são um desastre à espreita.

Tomando o governo como um todo (ou seja, União, estados, e municípios, bem como suas empresas), o balanço primário aponta para um déficit equivalente a 1,4% do PIB nos 12 meses terminados em fevereiro (R$ 95 bilhões a preços daquele mês), pouco menos da metade do registrado em setembro de 2016, quando atingiu 3,0% do PIB (R$ 203 bilhões a preços de hoje).

Já o resultado “recorrente”, sem receitas extraordinárias, mostra também progresso, mas em menor escala: depois de bater 3,7% do PIB em 2016 o déficit primário recorrente caiu a 2,6% do PIB em fevereiro, ainda longe, porém, dos níveis que permitiriam a estabilização da dívida pública relativamente ao PIB.

Parcela considerável desta melhora reflete o comportamento das despesas federais a partir de 2017, logo após a aprovação do teto constitucional no final do ano anterior. Em dezembro de 2016 o governo federal gastava R$ 1,317 trilhão (20% do PIB), valor que se reduziu para R$ 1,305 trilhão (19,5% do PIB) agora em fevereiro.  

Não é pouca coisa: depois de praticamente 20 anos consecutivos de crescimento acima da inflação (e também acima do crescimento do PIB), o gasto federal finalmente se estabilizou. Posto de outra forma, a política fiscal, que foi expansionista ao longo de décadas, tornou-se bem mais moderada de 2016 em diante, mérito inegável da equipe econômica.

No entanto, se olharmos com mais cuidado como o resultado foi obtido, os limites da estratégia ficam bastante claros. As despesas obrigatórias (benefícios previdenciários, pessoal, abono e seguro desemprego, o benefício de prestação continuada, BPC, entre outros) continuaram a subir, chegando a R$ 1,047 trilhão em fevereiro contra R$ 1,018 trilhão em dezembro de 2016. Em 2016 estas despesas equivaliam a 77,3% do gasto federal; em fevereiro esta proporção se elevou a 80,2%.

Foi apenas o corte das chamadas despesas “discricionárias” (na verdade metade delas é obrigatória) que permitiu a redução geral do gasto, em particular no caso das despesas do Executivo, cuja queda chega a R$ 30 bilhões neste mesmo período, principalmente no que se refere ao investimento.

Este arranjo não é sustentável. A despesa discricionária não pode, claro, ser negativa e, para ser sincero, bem antes de chegarmos a isto o governo deixaria de funcionar. Para que se dê continuidade à redução do gasto público é necessário domar as despesas obrigatórias, dentre elas a previdenciária, responsável, de longe, pela maior fatia do orçamento (quase 60% entre o INSS, aposentadorias e pensões do funcionalismo e o BPC).

Neste caso, em particular, o progresso foi nenhum, cortesia da pressão das corporações, de um Congresso que não está à altura do desafio, e de um executivo que perdeu o ímpeto, por força de suas óbvias limitações políticas, reforçadas na semana que se passou.

Caberá, portanto, aos eleitos em 2018 a tarefa de tornar permanente o ajuste fiscal que ora se desenha, por meio de reformas que poucos candidatos (e nenhum dentre os líderes das pesquisas) têm coragem de defender.

Não se enganem: apesar da calmaria, a situação é delicada e inação nesta frente terá severas consequências negativas no futuro não tão distante.




(Publicado 4/Abr/2018)

terça-feira, 3 de abril de 2018

Falsas soluções


Por qualquer métrica que se escolha o Brasil permanece como uma das economias mais fechadas do mundo no que se refere ao comércio global. Em que pesem características como a dimensão continental do país e custos de transporte, resta pouca dúvida que a baixa integração comercial com o resto do mundo decorre de uma postura protecionista há muito enraizada.

É verdade que as tarifas médias de importação caíram bastante entre 1990 e 1995 (de 40% para 15% no que se refere a manufaturas) e um pouco mais até 2003 (para os atuais 10%, contra cerca de 3% na média global), mas depois disto não demos nenhum passo adicional no sentido de liberalizar o comércio exterior. Pelo contrário, foram tomadas medidas de proteção, como, por exemplo, exigências de conteúdo nacional para equipamentos destinados à exploração de petróleo, para citar apenas o caso mais gritante.

Existem evidências que a redução da proteção nos anos 90 resultou em crescimento expressivo da produtividade no país, como registrado por Marcos Lisboa, Naércio Menezes Filho e Adriana Schor. Por outro lado, a produtividade estagnou no período mais recente, fenômeno que, se não pode ser integralmente atribuído ao fechamento da economia, deve ter nele ao menos parcela relevante da responsabilidade.

Há, contudo, iniciativas para começar a reverter este quadro desolador, em particular a proposta de redução das tarifas de importação de bens de capital, informática e telecomunicações de 14% para 4% em média. Tal medida, se levada a termo, deveria reduzir o custo do investimento, não apenas colaborando para a retomada da economia, mas também para aumento da produtividade de trabalho e, provavelmente, ainda para a produtividade geral, pela incorporação de tecnologia mais avançada a custos mais baixos.

Como seria de se esperar, contudo, os suspeitos de sempre já começaram a se movimentar para barrar a ideia, apresentando dois argumentos.

Um deles é de política comercial: a redução unilateral de tarifas nos deixaria com menos “fichas” para trocar no caso de uma negociação com a União Europeia. Melhor seria, segue a toada, guardá-la para a negociação mais à frente.

Além de velho, trata-se de um falso argumento. A começar porque quem o formula jamais apoiou a negociação com a UE; trata-se apenas de chicana, para usar um termo em voga. Mais importante, porém, é que o beneficiário principal da redução de tarifas não será o exportador europeu, mas o importador brasileiro, assim como o perdedor no caso da UE não reduzir as tarifas para o produto brasileiro será o consumidor europeu.

O outro argumento, quase tão antigo quanto o primeiro, é o “Custo Brasil”, ou seja, o encarecimento do produto nacional por problemas que se originam desde a logística até a tributação. Ora, é precisamente este o motivo pelo qual se defende a liberalização comercial: dar ao usuário nacional a opção de produtos mais baratos.

Se o problema da falta de competitividade do produto doméstico resulta da tributação (parcial, mas não inteiramente verdade), a solução virá da reforma tributária, não da restrição às importações.

À luz da nossa própria experiência, deveria ficar claro que o protecionismo é um extraordinário fiasco: ajuda o protegido, mas a um custo enorme para o país.




(Publicado 28/Mar/2018)