O orçamento de 2020 mostra as dificuldades
inerentes à manutenção do teto de gastos sem reformas que alterem o comportamento
da despesa obrigatória. Alterar o teto de gastos parece ser uma saída, mas nossa
história sugere que isto apenas empurrará o problema para o futuro.
No
final do mês passado o governo remeteu ao Congresso o Projeto de Lei
Orçamentária Anual (PLOA) para 2020, seguindo em grandes linhas as indicações
presentes na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), enviada em abril deste ano.
O
PLOA, conforme a tabela abaixo, indica déficit primário de R$ 124 bilhões no
ano que vem, equivalente a 1,6% do PIB, configurando o quinto ano consecutivo
no vermelho. Assim, a valerem as projeções da LDO, não deveremos ver contas
primárias equilibradas muito possivelmente até 2023, ou seja, só no primeiro
ano da próxima administração.
Se
há, portanto, alguma coisa indiscutível acerca do ajuste fiscal brasileiro é
que se trata de uma abordagem extraordinariamente gradual, apesar da histeria de
alguns: entre a ressurreição dos déficits e o
retorno do saldo primário a níveis que revertam a trajetória crescente da dívida
pública serão necessários ao menos 10 anos.
PLOA
2018
|
2019
|
2020
|
|||||||
R$ bi
|
% PIB
|
% desp
|
R$ bi
|
% PIB
|
% desp
|
R$ bi
|
% PIB
|
% desp
|
|
I - Receita total
|
1.484,2
|
21,7
|
1.540,5
|
21,5
|
1.644,5
|
21,6
|
|||
II - Transferências
|
256,7
|
3,8
|
276,2
|
3,9
|
289,0
|
3,8
|
|||
III - Receita líquida
|
1.227,5
|
18,0
|
1.264,3
|
17,7
|
1.355,6
|
17,8
|
|||
IV - Despesas
|
1.351,8
|
19,8
|
100,0
|
1.403,5
|
19,6
|
100,0
|
1.479,7
|
19,4
|
100,0
|
Previdência (RGPS)
|
586,4
|
8,6
|
43,4
|
630,9
|
8,8
|
45,0
|
682,7
|
9,0
|
46,1
|
Pessoal
|
298,0
|
4,4
|
22,0
|
324,6
|
4,5
|
23,1
|
336,6
|
4,4
|
22,7
|
Demais despesas obrigatórias
|
350,8
|
5,1
|
25,9
|
363,4
|
5,1
|
25,9
|
371,2
|
4,9
|
25,1
|
Demais discricionárias Executivo
|
116,6
|
1,7
|
8,6
|
84,6
|
1,2
|
6,0
|
89,2
|
1,2
|
6,0
|
Custeio
|
78,2
|
1,1
|
5,8
|
61,8
|
0,9
|
4,4
|
69,8
|
0,9
|
4,7
|
Investimento
|
38,4
|
0,6
|
2,8
|
22,8
|
0,3
|
1,6
|
19,4
|
0,3
|
1,3
|
V - Fundo Soberano
|
4,0
|
0,1
|
0,0
|
0,0
|
0,0
|
0,0
|
|||
VI - Resultado primário
|
-120,1
|
-1,8
|
-139,0
|
-1,9
|
-124,0
|
-1,6
|
|||
Tesouro Nacional/Banco Central
|
75,0
|
1,1
|
76,9
|
1,1
|
120,1
|
1,6
|
|||
Previdência
|
-195,2
|
-2,9
|
-215,9
|
-3,0
|
-244,2
|
-3,2
|
|||
Memorando:
|
|||||||||
Receita líquida (-) obrigatórias
|
-7,5
|
-0,1
|
-54,6
|
-0,8
|
-34,9
|
-0,5
|
Fonte:http://www.economia.gov.br/central-de-conteudos/apresentacoes/2019/2019-08-30_ploa_2020.pdf/@@download/file/2019.08.30_PLOA_2020.pdf
O
total da despesa primária orçada para 2020 atinge R$ 1,5 trilhão, ou 19,4% do
PIB, pouco acima do previsto pela LDO, por força da elevação de despesas
obrigatórias, tanto no que se refere aos gastos previdenciários como à miríade
de demais gastos mandatórios. Por outro lado, precisamente para compensar o
crescimento nestas rubricas, a proposta orçamentária reduziu adicionalmente o gasto
discricionário, que inclui tanto o custeio como o investimento da União.
Assim,
na LDO estas despesas montavam a R$ 100 bilhões, algo como 7% do total de gasto
primário; já no PLOA este valor cai para R$ 90 bilhões, ou 6% do total. Em
ambos os casos, ficarão substancialmente abaixo do verificado no ano passado,
quando representavam 8,5% dos gastos federais. Este valor, contudo, segundo o
secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues,
não deve permitir o pleno funcionamento da máquina pública.
Este
não é um problema novo. Pelo contrário, trata-se de bola cantada anos atrás (por
exemplo http://maovisivel.blogspot.com/2016/06/teto-de-pedra.html
ou http://maovisivel.blogspot.com/2017/08/os-fins-e-seus-meios.html): há uma
inconsistência entre o teto de gastos por um lado e a dinâmica do gasto
obrigatório por outro. Um mandamento constitucional diz “não gastarás”; outros
mandamentos constitucionais afirmam o contrário e, entre eles, fica o gasto
discricionário, espremido a cada ano.
A
reconciliação dos opostos só pode ocorrer quando um dos mandamentos for
relaxado: ou mudanças no teto de gastos, ou reformas que alterem a dinâmica dos
gastos obrigatórios. Fabio
Giambiagi e Guilherme Tinoco, economistas acima de qualquer suspeita,
defenderam recentemente alterações no teto
(sem, para ser justo, descuidar da necessidade de reformas).
Defendem
que a inconsistência eventualmente tornará o teto de gastos insustentável,
levando a seu abandono e propõem seu relaxamento para evitar um resultado ainda
pior, qual seja, o abandono do teto e consequente aprofundamento da crise
fiscal, cujas consequências, desconfiamos, nos levariam de volta à situação de
2015-16.
Embora
a proposta seja, do ponto de vista técnico, bem formulada e mais do que defensável
(envelhecer é uma droga, mas considere a alternativa...), os riscos políticos
de rediscutirmos o teto de gastos são gigantescos, pois ninguém garante que
desta discussão resultará o que foi proposto pelo Fábio e pelo Guilherme.
As
contas públicas brasileiras, não só do governo federal, mas de estados e municípios,
não chegaram ao estado lastimável em que se encontram por azar, muito menos por
falta de diagnóstico.
A
Constituição de 1988 trouxe, por desenho, uma expansão extraordinária de gastos
(cujas consequências são o aumento da carga tributária e da dívida pública),
resultado que os mais otimistas, como Samuel Pessôa, acreditam derivar de um
novo pacto social pós-redemocratização, e que os pessimistas interpretam como
expressão do poder das corporações, notadamente do serviço público, para impor
sua agenda e transferir para si o máximo possível de renda da sociedade. Independentemente de interpretações, porém, entre
1997 e 2016 o gasto federal saltou de 14% para 20% do PIB, estabilizando-se ao
redor deste patamar apenas por força do teto constitucional aprovado no final de
2016.
O
teto explicitou para o mundo político aquilo que economistas chamam de restrição
orçamentária, mas que só se torna aparente quando o caminho fácil do
endividamento adicional é de alguma forma obstruído, mesmo que parcialmente. Tentamos
isto de várias formas no passado: criamos a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF),
as dívidas estaduais e municipais foram renegociadas em troca da imposição de
regras de disciplina fiscal (e, supostamente nenhuma outra renegociação poderia
ocorrer, por força da LRF); mais recentemente novas rodadas de renegociação
impuseram novas medidas de austeridade.
Precisamos
admitir que nada disto funcionou. Se alterarmos a regra do teto de gastos apenas
adicionaremos mais uma tentativa à extensa lista de leis que fracassaram em conter
a voracidade fiscal do estado brasileiro. Pode ser até que adotemos a proposta de
do Fabio e do Guilherme, até que novos problemas levem ao afrouxamento
adicional, como sempre aconteceu. A verdade é que não há saída que não passe pela
reforma profunda do nosso regime fiscal: todo resto é perfumaria.
Quando
abrimos a caixa de Pandora, a tendência é que de lá saiam todos os males,
deixando no fundo dela apenas a esperança.
(Publicado 4/Set/2019)
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