Além de misturarem resultados primários
com aquisição de reservas e empréstimos para bancos públicos, os Defensores do Gasto
se esqueceram de separar a inflação do crescimento real do PIB. Quando se faz
esta correção, conclui-se que os resultados primários tiveram importância bem
maior para as variações da relação dívida-PIB do que o crescimento real do
produto.
O
erro crasso dos Defensores do Gasto que demonstrei na
minha última coluna não esgota, como notei, o estoque de bobagens
cometidos pelo coletivo.
Em
sua (na falta de melhor palavra) “análise”, afirmam
que:
“Nesse
período [2007 a 2014], os juros nominais contribuíram em média com 5,7 p.p.
(pontos percentuais) do PIB por ano para o aumento da dívida, enquanto o
crescimento do PIB nominal contribuiu em montante semelhante (5,6 p.p.) para a
redução da dívida (...)
Já entre 2015 e 2018, o aumento da dívida
bruta se deveu a dois condicionantes principais: a péssima performance do
crescimento econômico (2,8 p.p.) e o aumento do efeito dos juros nominais (cuja
contribuição passa de 5,7 p.p. para 7,1 p.p.).”
O
problema dos Defensores, neste caso, é tratar de variáveis nominais, isto é,
sem levar em conta o efeito da inflação.
De
fato, entre 2006 e 2013 o PIB nominal cresceu à velocidade média de 12,0% ao
ano, mas o crescimento do PIB real, isto é, descontada a inflação, foi bem
menor, 3,9% ao ano. A inflação média naquele período (medida pelo deflator do
PIB, que não é o IPCA) atingiu nada menos do que 7,8% ao ano.
PIB
2006
|
2013
|
2018
|
|
PIB (R$ bilhões)
|
2.409,4
|
5.331,6
|
6.827,6
|
Crescimento nominal % aa
|
12,0%
|
5,1%
|
|
Crescimento real % aa
|
3,9%
|
-0,9%
|
|
Inflação % aa
|
7,8%
|
6,0%
|
Já
entre 2013 e 2018 o PIB nominal cresceu bem menos, apenas 5,1% ao ano, por
força da recessão iniciada no segundo trimestre de 2014. O PIB real caiu em
média 1,2% ao ano no período, enquanto a inflação ficou em 6,0% ao ano.
Se
queremos, porém, fazer uma análise econômica digna do nome, temos que usar
variáveis reais, não nominais, isto é, o crescimento real do PIB, bem como a
taxa real de juros.
Ocorre
que a tabela do BC não entrega o prato já pronto, só os ingredientes. É preciso
certo esforço algébrico para destrinchar o número (interessados podem ver no Apêndice
as contas para tanto), o que não parece sequer ter passado pela cabeça dos
Defensores.
Vou
poupá-los deste trabalho.
A
tabela abaixo refaz as contas dos fatores condicionantes do aumento da dívida
bruta entre 2007 e 2018, no caso subdividindo este intervalo em dois períodos:
de 2007 a 2013, quando o governo geral (União, estados e municípios) registraram
superávits primários; e entre 2014 e 2018, quando o governo geral passou a
registrar déficits primários. A subdivisão não é igual à adotada pelos Defensores,
embora seja bastante parecida, precisamente porque, se queremos medir a eficácia
de superávits primários para reduzir a relação dívida-PIB, nos parece de bom
tom usar períodos em que houve tais superávits, isto é, de 2007 a 2013.
Fatores
condicionantes da evolução da dívida bruta do Governo Geral - % PIB
Total
|
Média anual
|
|||
2007-13
|
2014-18
|
2007-13
|
2014-18
|
|
Juros nominais
|
40,5
|
33,7
|
5,8
|
6,7
|
Emissões líquidas
|
-4,0
|
4,8
|
-0,6
|
1,0
|
Emissões para bancos oficiais
|
9,3
|
-4,2
|
1,3
|
-0,8
|
Resultado primário do Governo Geral
|
-18,0
|
7,0
|
-2,6
|
1,4
|
Operações com reservas internacionais
|
11,2
|
0,3
|
1,6
|
0,1
|
Demais
|
-6,5
|
1,6
|
-0,9
|
0,3
|
Reconhecimento de dívidas
|
0,7
|
0,3
|
0,1
|
0,1
|
Impacto de variações cambiais
|
0,1
|
1,7
|
0,0
|
0,3
|
Efeito do crescimento do PIB real
|
-13,4
|
2,3
|
-1,9
|
0,5
|
Efeito da inflação
|
-26,8
|
-17,4
|
-3,8
|
-3,5
|
Efeito cruzado PIB real x inflação
|
-1,1
|
0,2
|
-0,2
|
0,0
|
Variação da dívida
|
-3,9
|
25,7
|
-0,6
|
5,1
|
Memorando:
|
||||
Juros
reais (Juros nominais (-) Efeito da inflação)
|
13,7
|
16,3
|
2,0
|
3,3
|
Fonte:
Cálculos do autor, com dados do BCB
Assim,
entre 2006 e 2013 a dívida bruta caiu de 55,5% para 51,5% do PIB, queda de 3,9%
(há, como se vê, certo arredondamento). O superávit primário respondeu por
queda de 18% do PIB (2,6% do PIB por ano, em média). Já o aumento do PIB real
colaborou com 13,4% do PIB (1,9% do PIB por ano). A maior contribuição para a
queda, contudo, veio precisamente do fator ignorado pelos Defensores: a
inflação “comeu” o equivalente a 26,8% do PIB (3,8% do PIB por ano).
Assim,
embora o efeito do juro nominal no período seja grande, 5,8% do PIB por ano, o
efeito do juro real (deduzida a inflação) é bem menor, embora significativo:
aumento de 2% do PIB por ano.
Entre
os demais fatores que elevaram a dívida no período destacam-se a aquisição de
reservas internacionais (1,6% do PIB ao ano) e a Bolsa-Empresário, isto é, os
empréstimos do Tesouro para os bancos oficiais (principalmente o BNDES), 1,3%
do PIB por ano, prática que não mereceu qualquer comentário por parte dos
Defensores.
Vale
dizer, no período de queda da dívida o superávit primário desempenhou papel
mais importante do que o crescimento do PIB, precisamente o contrário do que
afirmado pelos Defensores.
Já
entre 2014 e 2018 a dívida cresceu 25,7% do PIB (5,1% do PIB por ano). Neste
período também a influência do resultado primário (no caso déficits primários)
foi maior do que a queda do PIB real: 7% do PIB contra 2,3% do PIB.
O
efeito da inflação foi similar, em termos das médias anuais, ao observado no período
anterior: -3,5% do PIB ante -3,8% do PIB. Já a conta do juro nominal foi mais
salgada: 6,7% do PIB por ano, contra 5,8% do PIB por ano, o mesmo se
verificando no caso do pagamento de juros reais, 3,3% do PIB por ano contra
2,0% do PIB por ano.
Resumindo,
graças a mais um erro grosseiro (diferenciar variáveis nominais de reais é algo
que nos ensinam no curso de Introdução à Economia), os Defensores chegaram a
outra conclusão errada. Demonstramos aqui que a disciplina fiscal desempenha um
papel muito mais importante do que o crescimento real do PIB para a
estabilidade do endividamento do governo.
Note-se
que até agora tratamos apenas de uma questão contábil, sem considerar a interação
econômica entre política fiscal, política monetária, inflação e crescimento,
que, reforçam ainda mais a nossa tese. Isto, porém, será objeto de outra
coluna.
Apêndice:
Decomposição do efeito do crescimento do PIB nominal
Vamos
denotar a dívida hoje, medida em reais, como Dt e a dívida no ano
anterior, também medida em reais, como Dt-1. A diferença entre a
dívida hoje e a do ano passado é explicada pelos chamados fatores
condicionantes no ano, que, por praticidade, denominaremos Ft,
também medidos em reais.
Estamos,
porém, interessados na relação dívida-PIB, isto é, no valor da dívida em reais
dividido pelo PIB também em reais (o chamado PIB nominal, o produto do PIB
real, Yt, pelo nível de preços, Pt). Assim, dividindo os
dois lados da equação acima por PtYt obtemos:
O
primeiro termo da equação é a relação dívida-PIB hoje, que chamaremos dt,
enquanto o último termo representa os fatores condicionantes do aumento da
dívida, também medidos como proporção do PIB, ft.
Já o segundo termo não é a relação dívida-PIB do ano anterior, porque a dívida é a do ano anterior, mas o PIB é deste ano. Isto dito, o PIB deste ano é o PIB do ano passado, acrescido da inflação (o aumento do nível geral de preços) entre o ano passado e o atual, que chamaremos de p, e do crescimento, denotado por g, isto é:
Já o segundo termo não é a relação dívida-PIB do ano anterior, porque a dívida é a do ano anterior, mas o PIB é deste ano. Isto dito, o PIB deste ano é o PIB do ano passado, acrescido da inflação (o aumento do nível geral de preços) entre o ano passado e o atual, que chamaremos de p, e do crescimento, denotado por g, isto é:
Substituindo esta expressão na anterior e denotando a relação dívida-PIB no ano passado por dt-1 temos:
A
primeira fração, g/(1+p)(1+g), captura o efeito do crescimento real do
PIB. Note o sinal negativo, já que crescimento mais forte ajuda a
reduzir a relação dívida-PIB. A segunda fração, p/(1+p)(1+g), reflete o efeito da inflação,
que também corrói a relação dívida-PIB. Já a terceira fração, gp/(1+p)(1+g),
reflete o efeito cruzado de preços e quantidades, que não pode ser atribuído separadamente
nem ao crescimento real, nem à inflação. Trata-se, porém, de valor tipicamente
baixo, como mostrado na tabela.
Com
auxílio da expressão acima podemos separar o crescimento do PIB nominal em
crescimento do PIB real e inflação, como fizemos em nossa tabela.
3 comentários:
É necessário que as análises levem em conta esse raciocínio.
Não deixando de lembrar que embora mais lento, o ajuste da relação dívida/pib é mais interessante de ser feito pela elevação da atividade econômica, pois ataca o desemprego, eleva a renda e a arrecadação pública.
No fim, o ganho geral é mais elevado.
Durante a sua gestão no BC isso não foi feito.
https://www.google.com/amp/s/exame.abril.com.br/economia/bolsonaro-permite-que-bc-autorize-capital-estrangeiro-em-bancos-no-brasil/amp/
"Durante a sua gestão no BC isso não foi feito."
Nem poderia. A Constituição delega isto ao presidente da República, não ao diretor de Assuntos Internacionais do BC. Acho ótimo, mas me cheira a preguiça...
Postar um comentário