Economistas que defenderam em artigo
recente o aumento dos gastos públicos confundiram conceitos diferentes e consequentemente
chegaram à conclusão (errônea) que superávits primários não contribuíram para a
estabilidade da dívida pública anos atrás, nem para seu aumento no período
recente. Explicamos as razões da batatada.
Cinco
defensores do gasto público se uniram para cometer um artigo na Folha de S. Paulo do
último domingo em resposta à excelente peça
publicada por Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Marcelo Gazzano no mesmo jornal
uma semana antes. Na tentativa de justificar o injustificável tropeçaram com
gosto nas próprias pernas, demonstrando não fazer ideia do que estavam falando
e, consequentemente, chegando a conclusões insustentáveis.
Para
entender a magnitude da bobagem precisamos, perdão, entrar um pouco na
contabilidade do setor público.
Como
notei na semana passada, até a crise da dívida no começo dos anos 80 o Brasil
sequer sabia qual era o resultado fiscal do setor público, espalhado por
diversos orçamentos. No contexto do programa com o FMI, o país adotou a metodologia
conhecida como Necessidades de Financiamento do Setor Público (NFSP),
desenvolvida pelo Fundo.
Apesar
do nome um tanto aterrador, a ideia é relativamente simples: se alguém gasta
mais do que recebe, seu endividamento líquido aumenta: ou toma dinheiro emprestado,
ou usa dinheiro guardado para cobrir a diferença entre receitas e despesas. Assim,
se queremos saber se um governo gasta mais do que arrecada, tudo que precisamos
saber é como evolui sua dívida líquida. Se ela cresce, há excesso de gastos
sobre receita, ou seja, déficit; se cai, há excesso de receitas sobre
gastos (superávit).
Há,
é bem verdade, outras coisas que podem fazer a dívida subir ou cair, por
exemplo, as flutuações do dólar, caso um pedaço da dívida pública seja
denominado nesta moeda, mas há como aferir estes efeitos e corrigir as estimativas
para determinar se o governo gasta mais do que arrecada (ou não). Assim, numa
primeira aproximação, o déficit público pode ser definido apenas pela
variação da dívida entre um ano e outro:
Déficit
= Dívida líquida (hoje) – Dívida líquida (ontem)
Já
o déficit do governo se compõe de duas partes: o pagamento de juros e o
resultado sem o pagamento de juros, também conhecido como déficit primário:
Déficit
primário + Juros = Dívida líquida (hoje) – Dívida líquida (ontem)
O
BC, responsável pela estimativa das NFSP, divulga, entre outras, uma tabela que
explica a evolução da dívida líquida (link aqui)
de um ano para outro, com base na expressão acima, acrescentando outros fatores,
como a variação do dólar, o reconhecimento de dívidas (“esqueletos”), e as privatizações.
A
dívida líquida, contudo, perdeu relevância como indicador da saúde financeira
do governo em função de práticas adotadas durante o período em que Guido
Mantega foi Ministro da Fazenda, com Arno Augustin no Tesouro e nelson
barbooosa na Secretaria de Política Econômica. Quando o governo se endividou
para emprestar aos bancos públicos, notadamente o BNDES, a dívida líquida não
era afetada, pois apareciam simultaneamente passivos (nova dívida) e ativos (empréstimos
para bancos públicos), contribuindo para a desmoralização do indicador.
Assim,
para a maioria dos analistas, o melhor indicador passou a ser a dívida bruta do
governo (isto é, sem abatimento de ativos como empréstimos do Tesouro, ou reservas
internacionais), que conseguia, entre outras coisas, capturar fenômenos como os
empréstimos para bancos públicos, que, na prática, representavam um orçamento à
parte daquele aprovado pelo Congresso Nacional e sem a mesma supervisão
(conhecido como orçamento parafiscal).
Por
força disto, o BC passou a divulgar os números que mostravam os determinantes
da evolução da dívida bruta (link aqui).
Deixando de lado fatores como a variação do câmbio, esqueletos e privatizações,
a evolução da dívida bruta é dada por:
Dívida
bruta (hoje) – Dívida bruta (ontem) = Emissão líquida + Juros
À
primeira vista se parece com a anterior, mas a semelhança é apenas formal. Os
juros na expressão acima são os juros brutos (ou seja, desconsidera-se o
pagamento de juros ao governo) e a emissão líquida não corresponde ao resultado
primário (ver tabela abaixo).
Resultado
primário vs. emissão líquida
2007
|
2008
|
2009
|
2010
|
2011
|
2012
|
2013
|
2014
|
2015
|
2016
|
2017
|
2018
|
|
Resultado primário governo geral (R$ bilhões)
|
89,4
|
101,9
|
63,4
|
99,4
|
126,0
|
107,6
|
91,6
|
-28,3
|
-107,0
|
-154,8
|
-110,9
|
-112,7
|
Emissão líquida (R$ bilhões)
|
-43,0
|
42,0
|
-74,3
|
180,9
|
40,1
|
-77,7
|
130,9
|
-168,7
|
-135,8
|
18,5
|
-24,7
|
31,6
|
Resultado primário governo geral (% PIB)
|
3,2%
|
3,3%
|
1,9%
|
2,6%
|
2,9%
|
2,2%
|
1,7%
|
-0,6%
|
-1,9%
|
-2,5%
|
-1,7%
|
-1,6%
|
Emissão líquida (% PIB)
|
-1,6%
|
1,3%
|
-2,2%
|
4,7%
|
0,9%
|
-1,6%
|
2,5%
|
-2,9%
|
-2,3%
|
0,3%
|
-0,4%
|
0,5%
|
De
fato, a emissão líquida incorpora, além do resultado primário, outros fatores que
requerem o aumento do endividamento do governo, como, por exemplo, os acima
mencionados empréstimos para bancos públicos, aquisição de reservas
internacionais, movimentações em depósitos compulsórios e outras operações. Os
interessados podem explorar a tabela explicativa neste link (tabela 10 do arquivo) e ver como se trata
de conceitos absolutamente distintos.
Ocorre
que os Defensores não se deram ao trabalho de pesquisar um pouco mais e confundiram
emissão líquida com resultado primário. Escrevem, portanto, que:
Para
que não reste dúvida acerca de que números estão falando, seguem na tabela abaixo
as médias dos períodos citados. É óbvio que usam a emissão líquida como
sinônimo de resultado primário, um erro crasso (a propósito, embora seja
verdade que o resultado primário tenha se mantido positivo entre 2007 e 2014 –
como mostrado na tabela acima, o mesmo não pode se dizer da emissão líquida).
2007-14
|
2015-18
|
|
Resultado primário do governo geral (% PIB)
|
2,2%
|
-1,9%
|
Emissão líquida (% PIB)
|
0,1%
|
-0,5%
|
Na
verdade, pois, os resultados primários entre 2007 e 2014 contribuíram para reduzir
a dívida bruta em média o equivalente a 2,2 p.p. do PIB por ano e, como trocaram
o sinal (para negativo) no período mais recente, contribuíram para elevar
a dívida bruta o equivalente a 1,9 p.p. do PIB em média nos últimos quatro anos.
Posto
de outra forma, os Defensores – por falta de entendimento do assunto – simplesmente
inverteram a contribuição da política fiscal para o comportamento da dívida. A
imagem pode ser batida, mas não deixa de ser válida: equivale a concluir que
comer muito emagrece e que uma dieta balanceada leva à obesidade.
À
luz disto, o atentado de um dos defensores à língua pátria em um post no Twitter fica até pequeno. Isto não esgota os erros no
artigo, mas esgota o espaço e paciência dos leitores por hoje. Nos próximos
dias exploro algumas outras barbaridades, que terminam de invalidar qualquer
resto de credibilidade que possa ter restado depois de batatada tão solene.
(Publicado 18/Set/2019)
1 comentários:
Muito interessante, não havia observado sob essa ótica!
Todavia, ainda que mais lento, o ajuste da relação dívida/pib é mais interessante de ser feito pela elevação da atividade econômica, pois ataca o desemprego, eleva a renda e a arrecadação pública.
No fim, o ganho geral é mais elevado.
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