O recente pacote de até € 100 bilhões para o
resgate dos bancos espanhóis seguiu o padrão dos anteriores: meses de
negativas, relutância por parte dos tomadores e, finalmente, o anúncio em meio
a certo embaraço por parte do governo resgatado. Dado o histórico pouco
estimulante dos resgates passados me pergunto se a mesma sequência de eventos
poderia ser tomada como uma profecia (nada lisonjeira) do resultado do pacote.
A resposta dos mercados, uma rápida euforia,
dissolvida ao longo de um dia, aponta precisamente nesta direção. De fato,
embora o resgate possa evitar um desastre de grandes proporções ele não resolve
o problema espanhol (ou europeu) e, a depender da definição de alguns pontos
importantes, pode reforçar o elo negativo entre problemas bancários e
soberanos.
Vamos, porém, por partes. Em primeiro lugar deve
ficar claro que o pacote não ataca o cerne do problema espanhol, que talvez
seja o exemplo mais bem acabado da natureza da crise europeia. Já foi dito, mas
vale a pena repetir, que, por mais que as dificuldades ibéricas se manifestem
no lado fiscal, sua origem está longe daí.
Com efeito, a Espanha antes da crise registrou
seguidos superávits fiscais, resultantes, é verdade, do forte desempenho da
arrecadação por conta do seu expressivo crescimento à época. Todavia, segundo
as estimativas do FMI, mesmo ajustando o saldo fiscal espanhol ao ciclo
econômico, seu déficit estrutural ficou em média próximo a 1% do PIB, do início
do euro até a eclosão da crise. Para fins de comparação, a Alemanha apresentou
déficit estrutural médio pouco inferior a 2,5% do PIB no mesmo período. A
dívida do governo espanhol em 2007 atingia modestos 36% do PIB (contra 65% do
PIB na Alemanha).
Por outro lado, o déficit externo espanhol era
da ordem de 10% do PIB às vésperas da crise contra 4% do PIB em 2000. O forte
crescimento da demanda interna espanhola, em particular o investimento em
construção, foi possibilitado pelo financiamento barato do centro europeu,
levando a taxas de inflação sistematicamente mais altas e, portanto, apreciação da sua taxa real de câmbio vis-à-vis à alemã.
Isso não foi problema enquanto o capital fluía
do centro para a periferia, mas, quando, por conta da crise, houve a reversão,
a vulnerabilidade espanhola foi desnudada, em particular a impossibilidade de
ajuste rápido da taxa real de câmbio por meio da depreciação da moeda. O que
restou à Espanha foi o duro caminho da deflação, ou seja, desemprego e
recessão, que, por sua vez, levou à deterioração fiscal.
Uma vez que o pacote não endereça, contudo, as
dificuldades de ajuste da taxa de câmbio no contexto de uma moeda única, não há
motivo para crer que seja a solução para a crise espanhola, nem para países que
sofrem problemas semelhantes.
É verdade, porém, que o foco do programa é mais
limitado, a saber, recapitalizar os bancos para evitar uma crise bancária. Ainda
assim há pontos que precisam de esclarecimento urgente.
Como notado, o país passou por uma onda
extraordinária de construção, financiada por seus bancos, que assim reciclaram
os recursos obtidos do centro europeu. Todavia, na esteira da recessão e da
queda dos preços de imóveis, a qualidade dos empréstimos se deteriorou
consideravelmente. Segundo a mais recente avaliação FMI, seriam necessários €
40 bilhões para que os bancos ibéricos possam absorver as perdas de suas
carteiras, em particular as imobiliárias, assim como trazer seus níveis de
capitalização para os requeridos, emulando a bem sucedida experiência americana
de 2008-09 (TARP).
Neste sentido os recursos europeus são mais do
que bem-vindos, mesmo porque, face às perdas esperadas nas carteiras de
crédito, é pouco provável que o setor privado vá fazer este papel. Há, contudo,
dois problemas relacionados que podem afetar em muito a efetividade do resgate.
Em primeiro lugar, ao invés de serem diretamente
injetados nos bancos, estes recursos serão emprestados ao governo espanhol que,
através do seu fundo de capitalização bancária (FROB), se responsabilizará pelo
processo. Desta forma a dívida espanhola se elevará pelo exato montante
requerido para a capitalização (cerca 10% do PIB no máximo), o que deve levar a
dívida pública para algo em torno de 85-90% do PIB. O problema no caso é que
isto piora as condições de solvência do governo e, portanto, afeta os bancos,
detentores dos títulos públicos espanhóis.
Este efeito pode ser magnificado dependendo da
senioridade destes recursos relativamente aos dos demais credores. Caso, como
quer a Alemanha, a União Europeia tenha direito de receber antes dos demais em
caso de calote, a perda esperada para os credores remanescentes será tão maior
quanto mais recursos vierem da UE. Isto realimentaria os problemas bancários,
agora pelo canal da dívida soberana, ao invés de mitigá-los, gerando o efeito
inverso ao originalmente pretendido.
Para mí, en primer
lugar, señor Rajoy!
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(Publicado 14/Jun/2012)
13 comentários:
Pergunta de engenheiro: se até eu entendo isso - graças às explicações suas, do Krugman, e do Nouriel, é verdade - como é que políticos, banqueiros centrais, e editores do Wall Street Journal aparentemente não entendem?
Perguntas estupidas pra quem puder ajudar ...
1 - Se a Espanha tivesse moeda propria, qd acabasse o financiamento externo, a moeda se depreciava e isso teria se ajustado ? è assim que vai acontecer com o deficit brasileiro ?
2 - Pelo que entendi a Espanha teve por um bom periodo inflaçao superior a da Alemanha. Com a moeda constante, foi isso que deixou a Espanha mais cara e menos competitiva ?
Se sim e sim - não existe nenhuma solução pra nenhum pais DENTRO do Euro, existe ?
abs
Não subestime o papel dos seres humanos.
Muitos dos diretores de bancos centrais e altos burocratas de países da zona do euro passaram 20 anos de sua vida profissional participando de comissões para viabilizar a moeda única, harmonizar regras etc. Existe um grande envolvimento emocional do establishment europeu com a idéia da moeda única. A constatação que o euro foi uma má idéia é equivalente a reconhecer que 20 anos de realizações e trabalho ingrato foram por nada. Não é fácil.
Assim como mudar de partido. A constatação que roubaram e fizeram **** por anos é equivalente a reconhecer que votou errado nas últimas 3 eleições.
Parabéns por mais um texto claro e racional.
Podemos concluir o a seguir? As baixas taxas de juros internas na Espanha (originadas nas sobras de liquidez do centro europeu - excesso de monetização), insustentáveis no lp, provocaram inflação interna (aumento de custos) superior à externa (apreciação da taxa real de câmbio), inclusive de ativos que não moeda (no caso bolha de imóveis). A queda dos preços dos imóveis e outros ativos (furo da bolha) provocaram os atrasos nos pagamentos (alguns perdas quase totais). Um pouco semelhante aos USA (a diferença fundamental é que os USA emitem a moeda). Diferente dos USA os espanhóis capitaram as sobras de liquidez do centro europeu. A fonte secou. Se a crise fosse apenas de liquidez a saída seria mais fácil: dar liquidez. Se é de crédito, perdas terão que ser absorvidas, ou é possível salvar com mais prazo. Empresas insolventes são salvas com mais prazo. Ou a briga é quem absorverá as perdas? Os alemães ou os acionistas dos bancos? Todos os espanhóis, os acionistas dos bancos ou os alemães? Os bancos têm que ser salvos (evitar crise sistêmica), mas os acionistas não.
Enfim: juros (artificialmente) baixos provocaram a crise?
COMENTANDO "O" Anonimo says:
14 de junho de 2012 15:40 “Não subestime o papel dos seres humanos”
Principalmente quando estes “seres humanos” estão com a cabeça cheia de “gauchisme”
Se tivessem ouvido Milton Friedman não entrariam nessa fria. Milton Friedman, um dos papas do Liberalismo económico, deu dez anos para o Euro. Talvez erre por alguns meses.
Uma prça do quebra-cabeça é que grande parte dos bancos espanhóis com problemas, as cajas, são entidades estatais ou semi-estatais, ligadas a governos provinciais.
os estados sozinhos nao conseguem mais nacionalizar os bancos como antes. O Sistema financeiro ficou muito maior que o PIB de muitos paises. Alguns vao quebrar, outros salvos por uma monetizacao da divida do estao talves seja a solucao. Parece que chegamos ao ponto em que os mercados entendem que mais divida para solucionar divida nao resolve mais. Mas fico otimista quando assisto aos jogos da Eurocopa. Nao vao deixar o projeto Europeu afundar.
Cada vez mais claro que a combinação câmbio fixo (e suas variantes) + déficit no BP é a fórmula para a ruína.
O corolário é que um país que tenha câmbio administrado precisa temer o déficit em C-C tanto quanto o déficit público.
Matou a pau, Alex. Texto rigoroso, com pitadas de Drummond, no final. Parabéns pela excelente explanação do tumulto europeu.
Depois de anos de guerras e divisões e criação de organismos de união, como a CECA, CEE, Euratom, CE, UE, não é fácil crer ser fácil abandonar muito mais do que uma moeda única.
Achava-se impossível um reunificação da Alemanha e integração econômica da parte oriental do país.
Fizeram isso em cerca de dez anos e são a locomotiva européia.
"O" Anônimo, só pode ser isso. Mas é penoso assistir.
há um engano no artigo: a possibilidade de ajuste cambial seria um "jeitinho" para desvalorizar o papagaio, mas a ausência do jeitinho não é a causa do problema!! Isso parece clichê !! O problema da Espanha é ativo podre pela supervalorização das garantias na construção civil, e, agora sim uma questão estrutural, o fato derivado que o grosso da dívida não corresponde a investimento produtivo, e sim meramente foi "enterrado" na construção civil, que não gera continuidade
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