A natureza do impacto econômico da
pandemia está se transformando no exterior e no Brasil: o efeito mais
importante deverá ser a restrição à oferta de trabalho, com reflexos negativos
no produto. Muito embora seja temporário, há mecanismos de propagação que – se
não combatidos – podem causar contração ainda mais séria. Medidas de proteção
social e adiamento de recolhimento de impostos podem ajudar e são compatíveis
com o arcabouço legal do país. A bola está com os políticos, o que não me anima
em nada.
A
natureza econômica da crise do Covid-19 está mudando nos países ocidentais,
inclusive no Brasil. Até há pouco o impacto da pandemia sobre a atividade nos
países desenvolvidos se dava principalmente por meio dos problemas nas cadeias
de suprimentos. Como se originou na China, responsável por parcela considerável
dessas cadeias, indústrias nos EUA, Europa e Japão, principalmente, passaram a
ter dificuldades de abastecimento de componentes e peças.
Assim,
os efeitos da crise nesses países se manifestaram inicialmente no setor industrial,
como ficou aparente na queda mais expressiva deste setor comparativamente ao
setor de serviços naquele momento. À medida, porém, que vários países
começaram, corretamente, diga-se, a impor restrições sobre a aglomeração de
pessoas, seja no trabalho, seja nos transportes públicos, o problema maior
deixou de ser a cadeia de suprimentos e passou a ser a queda do número de horas
trabalhadas, tanto na indústria, como, de maneira ainda mais séria, no setor de
serviços.
Houve
(e continua a existir) um corte descontínuo na oferta do insumo trabalho, cuja
manifestação mais óbvia é a queda, também descontínua, da produção. Posto de
outra forma, a restrição à produção do lado da oferta se tornou muito mais severa.
Há também, é bom deixar claro, impactos sobre a demanda, mas o fator mais sério
no momento é a menor capacidade de produção derivada do corte da mão-de-obra
disponível.
Já
no Brasil, apesar de algum impacto em termos de abastecimento, a manifestação
inicial da crise se deu principalmente pelo lado da demanda, pela queda direta
das exportações para a China, destino de quase 30% das vendas externas, bem
como pela queda expressiva dos preços das commodities (exportadas também
para outros países).
À
luz, porém, do agravamento da epidemia em território nacional, há iniciativas
similares às adotadas nos países mais atingidos pela crise (também corretas).
Apesar da completa irresponsabilidade do Presidente da República, os adultos
remanescentes no governo federal, bem como outras autoridades, já começam a
discutir medidas para atrasar a difusão do coronavírus, como a paralisação de
aulas, fechamento de cinemas, etc.
Em
breve teremos muito provavelmente que adotar também medidas de restrição à
circulação de pessoas se não quisermos causar uma sobrecarga boçal sobre o
nosso sistema de saúde (talvez já tenhamos passado do ponto de não-retorno, mas
não tenho condições de aferir esta possibilidade). Quando isso acontecer,
também nossa economia sofrerá efeitos primordialmente por restrições de oferta,
sem, é claro que tenham desaparecido os problemas pelo lado da demanda.
Se
houver um mínimo de competência na gestão da crise de saúde pública (uma
hipótese que me parece pouco provável agora, confesso), haverá forte baque na
produção, no setor industrial e no de serviços, em particular nesse último,
mais intensivo em mão-de-obra, mas o impacto deverá ser temporário. Passado o
pico da epidemia, a restrição de mão-de-obra gradualmente desaparecerá.
Contudo,
mesmo que o choque negativo seja temporário, há mecanismos de propagação cujos
efeitos são mais duradouros. Muito embora trabalhadores formais (cerca de 48%
dos empregados no Brasil, entre os com carteira de trabalho e funcionários
públicos estatutários e militares) disponham de certo colchão de proteção, os
informais e os empregados por conta própria não se beneficiarão desse seguro.
Já
empresas que perderem receitas, com baixas perspectivas de recuperação dessas
perdas nos próximos trimestres (em particular no setor de serviços, como, por
exemplo, restaurantes), também se descapitalizarão. O risco, no caso, é que a
perda de receita, mesmo por um período limitado, possa levar a problemas de
crédito, cujas repercussões agravariam o choque inicial.
O
desafio de política econômica então é limitar os efeitos “secundários” da
possível parada na produção por força da pandemia. Ao contrário de propostas de
suspensão, ou eliminação, do teto dos gastos para projetos de infraestrutura
(que só ficarão prontos a tempo da próxima pandemia), há outras que permitem
resposta muito mais eficiente para lidar com isto dentro do arcabouço
institucional vigente.
Cito,
dentre elas, o adiamento do pagamento de tributos federais durante um período
limitado, mas suficiente para diminuir a pressão sobre o caixa das empresas. Na
mesma toada, alguma forma, também temporária, de extensão de seguro-desemprego
pode ajudar famílias a transporem um intervalo de alguns meses com um tanto de
renda.
A
propósito, as medidas anunciadas pelo governo federal, antecipando pagamentos a
aposentados e o abono salarial ajudam em algum grau, mas não são tão focadas
quanto o necessário. Aposentados e pensionistas já têm renda garantida,
enquanto o abono é pago a trabalhadores formais; quem não pertence a essas
categorias, justamente os mais fragilizados, seguem expostos. Por outro lado,
como se trata apenas de uma antecipação de um gasto que ocorreria mais tarde no
ano, não afeta o resultado anual.
Isso
dito, eventuais gastos podem ser acomodados dentro do teto porque a
Constituição Federal (CF), em seu artigo 167, §3º,
permite a abertura de créditos extraordinários em caso de “guerra, comoção
interna ou calamidade pública”. E mais: o texto constitucional remete ao artigo
52 da CF, que trata das medidas provisórias. Em particular, em tal artigo, §1º, inciso I, alínea d,
é ressaltada a possibilidade de abertura dessa modalidade de crédito
extraordinário por medida provisória. Há, portanto, do ponto de vista legal e
institucional amplo espaço para a ação do governo sem necessidade de alterar o
teto dos gastos.
Do
ponto de vista fiscal não resta dúvida que tais medidas, se adotadas, elevarão
o déficit do governo, portanto sua dívida. Todavia, desde que limitadas no
tempo (pensamos num horizonte de alguns meses) e em reação à calamidade
pública, dificilmente teriam um efeito negativo sobre a percepção de risco-país
e taxas longas de juros como as resultantes de alterações profundas no
arcabouço legal do país.
De
resto, se bem focalizadas, teriam impacto bem mais poderoso no sentido de
conter os efeitos secundários da crise de saúde do que a ideia ingênua de um
programa mágico de investimentos em infraestrutura sem projetos prontos e
dependentes de aprovações regulatórias que demandariam meses antes de seu
início.
Isso
dito, não há como dourar a pílula. Caso o desenvolvimento da epidemia nos leve,
como creio, a um cenário de quase quarentena (ou quarentena propriamente dita)
não haverá como escapar de um, talvez dois, trimestres de contração severa da
atividade.
Noto
ademais que a resposta adequada, da forma como entendo o problema, requer um
grau de competência política que, à luz do relacionamento recente entre
Executivo e Legislativo, parece estar a parsecs de
distância. A ausência de adultos na sala, em particular no Executivo, gera um
risco considerável de inação, ou ainda de respostas equivocadas, comuns quando
falta comando ao processo de articulação política.
(Publicado 18/Mar/2020)
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