A divisão entre “PIB privado” e “PIB
público” faz tanto sentido quanto chamar os gastos da mesada dos filhos de “PIB
infantil”. Embora o componente privado da demanda tenha de fato predominado,
trata-se de padrão que vigora na maior parte do tempo fora de períodos
recessivos.
Tabela
publicada pela Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) sobre o
resultado do PIB do ano passado causou polêmica, em particular, como não
poderia deixar de ser, nas redes sociais. Segundo o material divulgado, apesar
de o crescimento do PIB ter atingido apenas 1,1% no ano passado, o “PIB
público” teria caído 2,25%, enquanto o “PIB privado” teria crescido 2,75%.
Tal
cálculo foi baseado em metodologia divulgada pela Secretaria de Política
Econômica (SPE), publicada por meio de nota técnica (“Retomada Via Setor Privado”) em 19 de novembro de
2019. Em tal nota, a SPE lembra que a abertura usual do PIB pela ótica da
demanda normalmente desagrega o resultado em seis componentes: (1) o
consumo das famílias; (2) o consumo do governo; (3) a formação bruta de capital
fixo (conhecida como investimento); (4) exportações; (5) importações; e,
finalmente, (6) a variação dos estoques.
Por
definição, o segundo componente acima captura a contribuição dos gastos do
governo para a demanda total; já no caso do terceiro componente, o
investimento, não é possível fazer tal atribuição apenas com os dados das
contas nacionais trimestrais. Com efeito, dentro da formação bruta de capital
fixo há investimentos realizados pelo setor privado (fábricas, armazéns, casas,
máquinas) e pelo governo (estradas, viadutos, postos de saúde, escolas); não
podemos, pois, saber a distribuição deste gasto sem outra fonte de informação.
Há,
contudo, outra fonte: as Contas Econômicas Integradas, também calculadas pelo
IBGE, que, no entanto, só são apresentadas em frequência anual (ou seja, não há
dados trimestrais) e com grande defasagem. O último número disponível, por
exemplo, refere-se a 2017.
Isto
dito, desde 2015 o Tesouro Nacional tem estimado e divulgado números em bases
trimestrais harmonizados com o Sistema de Contas Nacionais (os leitores já
foram apresentados a eles algumas vezes nos últimos meses),
dentre os quais a estimativa de investimentos do governo, devidamente apelidada
de Aquisição de Ativos Não-Financeiros, nome que afasta imediatamente
qualquer interessado. Torna-se possível, assim, estimar dentro do investimento
total (a Formação Bruta de Capital Fixo) a parcela governamental (Aquisição
de Ativos Não-Financeiros).
A
soma do consumo do governo com o investimento governamental consiste no que a
SPE chama de “PIB público”, enquanto a restante se enquadraria na categoria
“PIB privado”.
Noto,
porém, para começar que o último dado disponível para
a série de investimento governamental se refere ao terceiro trimestre de 2019,
ou seja, não é possível calcular a contribuição dos setores público e privado
para a demanda agregada no ano passado. Os dados divulgados pela Secom,
descobrimos, referem-se ao terceiro trimestre de 2019, e, no caso, cotejando
apenas esse trimestre com igual período de 2018, ou seja, não passível de
comparação com o crescimento de 2019, que reflete a média dos quatro trimestres
do ano sobre os quatro do ano anterior.
O
gráfico abaixo apresenta minhas estimativas desses componentes da demanda, que,
embora semelhantes, não são iguais às da SPE, no caso medidos ao longo de
quatro trimestres sobre os quatro imediatamente anteriores.
Fonte: Autor (com dados do IBGE e STN) |
Ressalto
também que o predomínio do componente privado não representa exatamente uma
novidade: em 20 dos 31 trimestres de nosso período amostral ele superou o do
governo. A maior exceção ocorreu durante os 11 trimestres de recessão, quando o
componente privado superou o público em apenas 3 deles. Vale dizer, fora de
períodos recessivos – quando o componente privado da demanda costuma cair mais
fortemente – a normalidade, ao menos no período para o qual dispomos de dados,
é exatamente a predominância do setor privado.
Por
fim, mas não menos relevante, não é correto tratar tais variáveis como “PIB
privado” e “PIB público”.
O
PIB, como aprendemos em contabilidade nacional, é a soma do valor dos bens e
serviços finais produzidos na economia. Também aprendemos que o PIB pode
ser analisado pela ótica da demanda, exatamente os seis componentes que
destacamos acima. Todavia, não há como atribuir por tal perspectiva cada pedaço
do que é produzido aos setores público e privado, ao menos não como dá a
entender a metodologia da SPE.
A
ótica da demanda apenas destaca o destino que foi dado a cada
parcela da produção. No caso em questão, quanto do produto foi usado para
bancar o consumo do governo, como funcionalismo e manutenção da máquina pública
(19,5% do PIB em média nos últimos 10 anos, bem mais do que em países de renda
per capita semelhante à nossa) e quanto foi destinado para os investimentos
públicos (1,9% do PIB e cadente de 2014 em diante). Diga-se, aliás, que a queda
do investimento público – conforme exploramos em colunas anteriores – não
decorre de falta de recursos, mas da priorização da manutenção da máquina de
governo sobre os serviços prestados à população.
Não
se trata, portanto, do “PIB do governo” (que certamente não é responsável por
mais de 20% da produção nacional), nem, por consequência, de “PIB privado”, daí
a insistência ao longo da coluna de denominá-los de contribuição pública e
privada para a demanda agregada.
Se
tal ponto ainda não ficou claro, pensem numa família com crianças fora da idade
produtiva. O “PIB” familiar é resultado do trabalho de adultos, embora
presumivelmente as crianças representem parcela do gasto (bancado por sua
mesada). Nesse contexto faz tanto sentido definir o gasto realizado pelos
filhos como o “PIB infantil” quanto chamar o conjunto de gastos do governo (em
consumo e investimento) de “PIB público”.
No
final das contas, o desafio do governo não é, ou não deveria ser, energizar
suas bases em redes sociais com comunicados sem sentido da Secom. A verdade é
que, depois da bem sucedida mudança na previdência, o processo de reforma está
travado. Medidas importantes, como a PEC emergencial, esperam um mínimo de
impulso por parte do Executivo, que se omitiu depois de enviá-las ao Congresso.
Já
outras reformas, como a administrativa e a tributária, são sempre remetidas à
“próxima quinta-feira”, enquanto o presidente resmunga que o Congresso não quer
aumentar o número necessário de pontos para suspender a carteira de habilitação
de motoristas incapazes de seguir as regras. Enquanto forem essas as
prioridades da atual administração não podemos esperar nada muito melhor do que
observamos no ano passado.
(Publicado 11/Mar/2020)
3 comentários:
Muito bom texto. Fiquei na dúvida quando o senhor disse que o gasto do governo em educação é investimento. Não seria gasto primário? Ou seja, tal gasto não entraria no consumo do governo (G)?
Onde está escrito?
No terceiro parágrafo: "Com efeito, dentro da formação bruta de capital fixo há investimentos realizados pelo setor privado (fábricas, armazéns, casas, máquinas) e pelo governo (estradas, viadutos, postos de saúde, escolas)".
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