A ideia de suspender ou eliminar o teto de
gastos para aumentar o investimento público é uma das piores já propostas.
Começa por ignorar a necessidade de aprovação orçamentária, licitação e
licenciamento ambiental, que implicam prazo de resposta muito superior ao da
vigência da crise. Ignora também que 70% da queda do investimento público
resultou de estados e municípios, não sujeitos ao teto. Deixa, por fim, de
considerar as consequências do fim do teto sobre a taxa de juros. Ao contrário
de países desenvolvidos, aqui ainda temos espaço para reduzir consideravelmente
a taxa de juros.
Entre
as muitas ideias sem sentido na atual conjuntura se destaca, pelos piores
motivos possíveis, a de suspender (ou eliminar) o teto de gastos públicos para
aumentar os investimentos do governo de modo a evitar, ou mitigar, os riscos
recessivos decorrentes dos impactos da pandemia de Covid-19.
A
começar pelo assombroso distanciamento da realidade de como a política de
gastos (fiscal) é praticada em condições normais de temperatura e pressão. Ao
contrário do mundo dos livros-texto, em que o governo decide monocraticamente
sobre suas despesas, qualquer programa de investimento precisa – e trata-se de desenvolvimento
positivo em nome da democracia – de aprovação parlamentar.
Não
é bando de tecnocratas iluminados que
determina o melhor projeto de investimento possível, seja no que respeita ao
destino da aplicação (transporte? energia? saneamento?), onde será feita e em
que momento. O resultado do jogo, democrático, repito, é bem mais complicado,
fruto de negociações complexas, geralmente demorado e bem diferente do que
sairia da mente do tecnocrata bem interessado. Não seria impossível, mas
bastante provável, que tais programas, quando prontos, já tenham se tornado desnecessários
do ponto de vista de política anticíclica
Diga-se,
aliás, que mesmo que não houvesse interferência parlamentar, também não há
garantia que eventuais projetos de investimento fossem gerados apenas com o bem-estar
comum como norte. Se assim fosse, ditaduras mundo afora seriam modelos de
crescimento, algo consistentemente negado pelas evidências.
Em
particular, no Brasil o processo é adicionalmente complicado em pelo menos dois
outros aspectos. A lei 8666, que regula licitações, impõe condições severas
para gastos como os propostos, com o objetivo de evitar corrupção, sem muito
sucesso, como se vê. De qualquer forma, quem tem um mínimo de entendimento de
como funciona a máquina pública sabe que até a licitação de um projeto ser
aprovada, a pandemia já terá chegado ao fim.
Isso
para não falar do licenciamento ambiental, que – ao menos – pode ficar pronto
para quando a próxima pandemia nos atingir.
O
distanciamento da realidade também impera no diagnóstico quanto à queda recente
dos investimentos públicos, atribuindo-a ao teto de gastos.
Noto
que o teto de gastos se aplica única e exclusivamente ao governo federal, e que
a queda do investimento público afeta todas as esferas de governo. Em
particular, como mostrado na tabela abaixo, a redução do investimento federal
representa perto de 30% da redução total; estados e municípios, que não estão
sujeitos ao teto de gastos, respondem por 70% da queda. Governos estaduais são
responsáveis por metade da queda do investimento público entre 2014 e 2019.
Demonstrativo
do Governo Geral – R$ bilhões de 3T2019
2010
|
2014
|
2019 b
|
|
RECEITAS a
|
2.654,8
|
2.876,7
|
2.976,0
|
Governo central
|
1.971,9
|
2.044,1
|
2.053,0
|
Governos estaduais
|
833,1
|
894,0
|
901,8
|
Governos municipais
|
552,8
|
627,5
|
669,3
|
DESPESAS a
|
2.764,1
|
3.235,0
|
3.396,4
|
Governo central
|
2.097,6
|
2.314,7
|
2.473,9
|
Governos estaduais
|
855,1
|
929,7
|
926,9
|
Governos municipais
|
514,3
|
602,6
|
643,6
|
RESULTADO OPERACIONAL LÍQUIDO
|
-109,2
|
-358,3
|
-420,4
|
Governo central
|
-125,7
|
-270,6
|
-421,0
|
Governos estaduais
|
-22,0
|
-35,7
|
-25,1
|
Governos municipais
|
38,5
|
24,9
|
25,7
|
INVESTIMENTOS
|
185,4
|
182,3
|
92,3
|
Governo central
|
54,5
|
52,9
|
25,7
|
Governos estaduais
|
70,3
|
73,9
|
27,6
|
Governos municipais
|
60,5
|
55,5
|
38,9
|
a Devido a
transferências intergovernamentais as linhas totais de receita e despesa são
distintas da soma de cada linha individual
b Quatro trimestres até
setembro de 2019
Fonte: Secretaria do
Tesouro Nacional
Não
foi por falta de receita, que no conjunto do governo geral aumentou perto de R$
100 bilhões no período. Por outro lado, as despesas dos três níveis de governo
aumentaram pouco mais de R$ 160 bilhões, principalmente por conta de benefícios
sociais (aposentadorias e pensões majoritariamente), que cresceram R$ 173
bilhões, bem como o funcionalismo, R$ 39 bilhões, apenas parcialmente
compensadas por quedas em outras rubricas.
Repetindo
descaradamente o que escrevi em várias colunas, esse padrão, sobretudo no que
se refere aos governos locais, reflete prioridades distorcidas, assim como a
rigidez dos gastos, que poderia ser reduzida por meio de reformas,
especialmente a PEC emergencial, aquelas mesmas que alguns dizem ser não
prioritárias.
Além
do assustador distanciamento da realidade, os proponentes da suspensão (ou
eliminação) do teto também ignoram as consequências da medida.
A
primeira é o impacto do teto sobre a taxa de juros. Por força de alguma
esquizofrenia ainda não totalmente diagnosticada, os defensores da eliminação
do teto o fazem em nome de elevar a demanda interna, mas, curiosamente, não
consideram qualquer efeito da demanda mais elevada sobre a taxa de juros.
Independentemente
de crenças esquizofrênicas, porém, a taxa de juros que vigora com uma política
fiscal mais frouxa tem que ser mais elevada do que a que vigora sob política
fiscal mais apertada por uma razão simples: para manter a mesma velocidade do
carro (ie, a inflação), teremos que pisar mais forte no freio (taxa de juros) se
pisarmos mais forte no acelerador (gastos). Tão simples quanto isso.
Outra
consequência, mais sutil, mas não menos importante diz respeito à fragilidade
institucional. O teto não foi colocado na Constituição por acaso. Percebeu-se
que mesmo leis complementares, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, podem ser
contornadas, ou mesmo facilmente modificadas, caso o governo de plantão esteja
realmente disposto a enfiar o pé na jaca fiscal, como amplamente demonstrado no
período Dilma.
A
ideia de suspender um mandamento constitucional por um motivo supostamente
“nobre” depende fundamentalmente do que consideramos ‘nobre”, o que abre as
porta para toda espécie de “pedaladas” sempre com a melhor das intenções (a
Bolsa Família e o Programa de Sustentação de Investimento foram alguns dos fins
“nobres” das pedaladas fiscais). Depois de aberta a caixa de Pandora, porém, os
males se espalham e no fundo só fica a esperança.
Por
fim, um argumento recentemente utilizado refere-se à queda recente da taxa real
de juros, que melhorou a dinâmica da dívida. Sabemos, em particular, que o
superávit primário necessário para estabilizar a relação dívida-PIB pode ser
aproximado como a diferença entre taxa real de juros e a taxa de crescimento do
PIB multiplicada pela relação dívida-PIB.
Assim,
se a relação dívida-PIB é de 80%, com taxa real de juros a 4% e PIB crescendo
1%, o superávit primário requerido é (0,04-0,01) x 0,8 = 2,4% do PIB. Caso,
porém, o juro caia a zero, como pode ocorrer em 2020 (sem impulso fiscal,
diga-se, mas deixemos para lá), mesmo com o crescimento de 1% o superávit
requerido seria (0,00-0,01) x 0,8 = -0,8% do PIB, isto é, até um déficit
primário daria conta do recado.
O
pequeno problema é que o déficit primário estimado para este ano se encontra na
casa de 1,5% do PIB, ainda maior do que seria necessário para estabilizar a
dívida. Adicionalmente, o déficit recorrente, sem receitas e despesa
extraordinárias será ainda maior, possivelmente ao redor de 2% do PIB. Vale
dizer, mesmo a queda da taxa de juros não abre nenhum espaço hoje para elevação
do gasto sem comprometer a dinâmica da dívida pública.
Tendo
dito isto, noto que despesas derivadas de problemas como uma epidemia de
coronavírus podem, sim, ser tratados dentro do arcabouço institucional do teto
de gastos. Como notado por Letícia Dias (Créditos
extraordinários no novo regime fiscal da EC 95/2016),
a legislação permite abertura de créditos extraordinários em casos de
calamidade pública. Não falamos, é claro, de investimentos em infraestrutura,
mas da possibilidade de mobilizar recursos caso a epidemia se instale no país,
hipótese na qual precisaremos de munição fiscal seca para usar, devidamente
enquadrada nas regras constitucionais.
À
luz de toda discussão acima, e considerando que – ao contrário de países desenvolvidos
– o Brasil ainda apresenta taxas nominais de juros positivas, deveria ser claro
que o melhor instrumento para lidar com a consequências do Covid-19 sobre o
crescimento é a redução adicional da Selic. Quem diria que autodenominados
progressistas se oporiam a essa ideia?
(Publicado 12/Mar/2020)
5 comentários:
Como a União registra o repasse de recursos aos municípios (e estados) para investimentos (p. ex. construção de escola, posto de saúde, compra de ambulância)? Sei que os municípios registram como receita de transferência de capital e na saída como despesa de capital (investimento). Isso para poder comparar a queda nos repasses da União para despesas feitas pelos outros entes.
A queda dos investimentos nos municípios não pode estar sendo afetada pela diminuição dos repasses da União para os municípios (e estados)? E portanto, pelo teto?
Os municípios pequenos (que são a maioria) praticamente só fazem obras com recursos de repasses da União/estado.
Excelente análise!
Parabéns pelo texto, extremamente lúcido.
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