A epidemia global mudou o cenário
econômico e as perspectivas de taxas de juros, mesmo com restrições à sua
efetividade. No Brasil deve se traduzir em afrouxamento adicional das condições
financeiras.
Segundo
a tradição judaica o feto não é considerado viável até se formar em medicina (discute-se
no Talmud se tocar violino como o Itzhak Perlman também tem esta propriedade,
mas divago...). Já no meu caso, o mais próximo que posso chegar a esse estágio
é pela discussão sobre o impacto do coronavírus na economia global em geral e no
Brasil em particular.
Houve
uma mudança inesperada de política monetária nos EUA: muito embora os futuros
de juros já indicassem 100% de chance de corte de 50 pontos-base na taxa de
juros na reunião de 18/março, o Federal Reserve se antecipou a reduziu a Fed
Funds rate de 1,50-1,75% ao ano para 1,00-1,25% ao ano. Estes mesmos futuros
indicam boa chance de nova redução para 0,75-1,00% ao ano em abril.
Em
linha com esse desenvolvimento, a taxa de juros de 10 anos nos EUA se encontra
agora próxima a 1,0% ao ano, contra 1,7% ao ano há cerca de um mês. Mercados de
renda fixa, portanto, voltaram a se preocupar com um cenário de recessão,
esperando que o Federal Reserve reaja de acordo, isto é, reduzindo de forma tão
agressiva quanto possível as taxas de juros de curto, notando, é claro, que o
espaço para isto não é tão grande. Resta saber se tal reação será, ou não,
eficaz.
A
resposta depende crucialmente da identificação da natureza do choque a que foi
submetida a economia: trata-se de um problema de insuficiência de demanda, ou
de restrições de oferta? Como sempre, a resposta é difícil.
Não
há dúvida que muitos dos problemas enfrentados no momento pela economia
americana apresentam características de restrições de oferta. Há muitos anos as
empresas americanas estenderam suas cadeias de suprimentos para fora do país,
com forte ênfase na China, o epicentro da epidemia. Além disso, graças à
modernização da logística, também reduziram significativamente o nível de
estoques de partes e componentes, operando de forma “just in time” para
reduzir custos.
A
produção chinesa, todavia, sofreu um baque sem precedentes. Embora eu tenha cá
minhas restrições aos Índices de Gerentes de Compras (PMI, na sigla
inglesa), a informação que vem da China não pode ser ignorada. Tais índices
definem a medida 50 como estabilidade, de modo que leituras acima de 50 indicam
expansão e contração abaixo desse nível.
Pois
bem, em fevereiro o PMI da indústria chinesa registrou 37,5 (contra 50 em
janeiro), simplesmente o mais baixo desde o início da série em 2005, inferior
inclusive à marca observada no auge da crise financeira (38,8 em novembro de
2008). Há receio que, pela primeira vez desde a Revolução Cultural, o PIB
trimestral possa se contrair. Aparentemente só um vírus altamente contagioso
conseguiu fazer o mesmo estrago na economia chinesa que as políticas de Mao
Tsé-Tung.
Com
isso, foram rompidas várias cadeias de suprimentos: há relatos, por exemplo,
que a Apple teria que adiar o lançamento do novo modelo do iPhone devido a
problemas com as fabricas da FoxConn na China. Tal efeito não se limita a uma
única empresa ou mesmo país, dado que a China responde hoje por cerca de 12%
das exportações globais e perto de 28% do produto industrial mundial.
Contra
esse fenômeno a redução de taxa de juros terá pouca, se alguma, eficácia. Juros
mais baixos não recomporão as cadeias de suprimentos, nem farão os
trabalhadores chineses retornarem ao trabalho sem receio da epidemia.
Fosse
esse, portanto, o único motivo de receio para a recessão global, não haveria porque
imaginar qualquer papel para os bancos centrais e a política monetária. No
entanto, não é o caso.
A
epidemia trouxe um aumento brutal de incerteza, incluindo a sobrevivência de
cada um. Já nós, como espécie, somos evolucionariamente mal adaptados para
lidar com incerteza: o australopiteco que, ao ouvir um ruído de galho seco na
savana, ficou fazendo contas para ver se valia a pena ainda procurar pelo
alimento ao invés de fugir a toda velocidade provavelmente virou comida de
leopardo sem deixar descendentes.
Quando
o atual predador, no caso o coronavírus, ataca, nossa resposta programada é
deixar que o medo prevaleça sobre a cobiça. Assim, bolsas mundiais despencam,
talvez mais do que seria de se esperar em face de restrições de oferta que,
embora severas, podem ter duração reduzida na comparação com o horizonte no
qual empresas operam.
As
implicações da queda dos preços das ações alcançam muito além dos eventuais
especuladores. Seus detentores se tornam mais pobres, reduzindo gastos com
consumo; empresas veem seu custo de capital (que se relaciona de maneira
inversa ao preço das ações) aumentar, diminuindo o apetite por investimento.
Menores
taxas de juros amenizam, em algum grau, tais desenvolvimentos e podem,
portanto, mitigar os riscos de recessão. Posto de outra forma, há espaço para
ação dos bancos centrais, embora limitado ao lado da demanda; não resolverão o
problema, mas provavelmente será melhor ter a reação de política monetária no
que não a ter.
Especificamente
no caso do Brasil, espero que o componente de demanda seja mais relevante que o
de oferta. Em que pesem os relatos de
falta de componentes para a indústria nacional,
levando inclusive a férias coletivas, o principal efeito sobre o país deve se
dar pela queda dos preços internacionais de commodities. Tomando preços
médios (em dólares) de fevereiro, observamos redução na casa de 5% do complexo
soja, 8,5% do minério de
ferro e por volta de 13% no caso do petróleo,
notando que esses produtos representam praticamente 40% das exportações
nacionais.
É
verdade que a depreciação da moeda permite que nem todo o impacto seja
transmitido diretamente ao produtor, mas, ainda assim, falamos de piora visível
das relações de troca (preços exportação versus preços de importação), cujo
efeito costuma deprimir a atividade.
Há,
por certo, discussão relevante sobre possíveis efeitos sobre a inflação
associadas ao enfraquecimento do real, mas o consenso que parece se formar – e
do qual faço parte – sugere que a recuperação ainda modesta e a queda dos
preços de commodities devam limitar o potencial inflacionário. De fato,
a expectativa de inflação para 2020 segue em queda e há sinais incipientes de
redução das expectativas referentes a 2021 também.
Em
tal contexto, é natural que volte também ao debate a possibilidade de redução
da Selic. Apesar do alerta do BC no mês passado, a mudança das condições
internacionais deve levar a uma discussão mais intensa no comitê. De qualquer
forma, mesmo que não se materialize agora novo corte da Selic, sua estabilidade
deve perdurar mais do que esperado antes dos últimos desenvolvimentos, o que
traduz em queda nas taxas de juros no horizonte dos próximos dois anos, sem, é
claro, eliminar a possibilidade de novo afrouxamento monetário caso fique claro
que o cenário de epidemia tende a reduzir adicionalmente a inflação.
Será
que o Talmud abre exceção para economistas?
(Publicado 03/Mar/2020)
2 comentários:
O Talmud até abre, o problema e a liga das idishe mames unidas.
O Talmud até abre, o problema e a liga das idishe mames unidas.
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