André Lara Resende propõe que
investimentos fiquem fora do orçamento e que taxas de juros podem ser reduzidas
a zero sem consequências inflacionárias. Estas ideias não só estão muito
erradas, como caminham na contramão do processo de construção institucional do
país.
André
Lara Resende fez algumas observações polêmicas, tanto sobre a política fiscal,
como sobre a política monetária. Pensando bem, não são polêmicas; são erradas. Pior
do que erradas, pelo menos uma delas vai na contramão de um longo projeto de
construção institucional do orçamento e lembra os piores momentos da gestão de
contas públicas no Brasil. Isto dito, vamos por partes.
Lara
Resende afirma que o investimento público deveria ser “uma despesa extraorçamentária”
e que, portanto, limitá-lo por falta de recursos orçamentários seria “uma estupidez”.
Como defende que um governo que emita sua própria moeda não tem restrição
orçamentária (ou seja, não precisa de impostos, ou mesmo aumento de dívida
pública, para bancar seus gastos, bastando para tanto criar moeda por meio do
BC), não vê motivos para que, em nome do controle do gasto público, o
investimento seja sacrificado.
Curiosamente,
parece que prestou pouca atenção à história nacional (para não falar da
experiência internacional). Quem viveu nos anos 60 a 80, ou estudou o período,
deve se lembrar da coexistência de três (ou mais) orçamentos: o orçamento
fiscal (de pouca, ou nenhuma, importância), o orçamento monetário, financiado
diretamente pelo Banco Central do Brasil, e o orçamento das estatais, por onde fluía a
maior parte do investimento público (sem esquecer que a existência da agora
extinta “conta-movimento” fazia do Banco do Brasil uma outra autoridade
monetária, com poder de criar moeda para financiar ainda outros gastos).
Não
é por outro motivo que nenhum pesquisador consegue estimar o comportamento das
contas públicas no período anterior à crise da dívida. Até então a multiplicidade
de orçamentos sequer permitia que tivéssemos uma noção de quanto o governo
gastava (e, note-se, aqui nos referimos apenas ao governo federal, sem estados
e municípios). O Brasil emitia, como ainda emite, sua própria moeda (ou moedas,
dadas as diversas trocas de padrão monetário no período), “sem lastro metálico”
(sic) e realmente se comportava como se não tivesse restrição orçamentária.
O
resultado é conhecido: passamos por uma das maiores hiperinflações do mundo, e
possivelmente a mais longa. Nos 35 anos terminados em junho de 1994 a inflação
média anual brasileira rodou em torno de 250%; o aumento de preços no período
requer notação científica: 1,5x1019, isto é, 1,5 vezes 1o seguido
por 19 zeros. Não é uma distância, senão poderíamos medir a inflação brasileira
em parsecs...
Isto
mudou ao longo de 30 e tantos anos, com a criação da Secretaria do Tesouro
Nacional, a unificação dos orçamentos federais, a transferência da gestão da
dívida pública para o Tesouro, a Lei de Responsabilidade Fiscal e outras iniciativas
do gênero. Houve também sabotagens ao longo do caminho: não apenas as “pedaladas”
de Mantega-Augustin-Barboooosa-Dilma, mas também a exclusão de certas despesas
para fins de metas fiscais, o imenso orçamento parafiscal por meio dos créditos
de BNDES (bem como BB e CEF), isto é, um
conjunto de iniciativas que tornaram as contas públicas menos transparentes e,
portanto, menos sujeitas ao exame da sociedade.
Também
não por acaso, esta abordagem acabou em choro e ranger de dentes, na pior
recessão desde a hiperinflação e provavelmente a mais profunda da história do
país.
Não
precisamos sequer entrar nos méritos (se os há!) teóricos de Lara Resende:
basta olhar para nossa história relativamente recente (não falamos da Primeira
República, do Império, ou do período colonial). Nós nos comportamos exatamente
como Lara Resende sugere, inclusive do ponto de vista de destruição institucional,
e colhemos hiperinflação e crises, como, aliás, a teoria tradicional preveria.
Isto
já bastaria para relegar as ideias de Lara Resende a um quarto escuro onde se
escondem pensamentos inomináveis e crimes tenebrosos, mas, feliz ou
infelizmente, não esgotam sua colaboração para a população daquele cômodo.
Segundo
Lara Resende, o Banco Central pode “colocar a taxa de juros onde quiser”, sem
causar inflação, afirmando ainda que a “variável de instrumento do Banco Central
é a taxa de juros” e que “qualquer pessoa que conhece o Banco Central sabe disto”,
mas que “qualquer economista teórico não sabe disto”.
Tendo
lido parte (muito longe do todo) da literatura teórica a respeito, fiquei condoído
da ignorância de gente como John Taylor, que em 1993 (referência aqui)
descreveu a formulação de política monetária como uma regra de taxa de juros,
ou Michael Woodford, cujo livro, Interest and Prices (2003) é uma
das principais, senão a maior, referências no assunto, ou ainda Jordí Gala, em Monetary
Policy, Inflation and the Business Cycle (2008), para ficar só em
alguns nomes de teóricos que, coitados, não saberiam, de acordo com Lara Resende,
que BCs se utilizam da taxa de juros (em oposição aos agregados monetários)
para conduzir a política monetária.
É
verdade, porém, que o BC pode colocara a taxa de juros onde quiser, como memoravelmente
o fez o nosso BC, sob a inspirada liderança de Alexandre Pombini. Só é obrigado
a conviver com as consequências, no caso a inflação, que ao longo de todos os
anos pombianos ficou acima da meta, apesar da mão pesada do governo no controle
de preços públicos. Mais uma vez, não se pede que examinemos um período arcaico
da história, nem de um país pouco conhecido, mas a experiência brasileira nos
últimos 10 anos (9 na verdade, mas vá lá!).
Ah,
mas a taxa de juros é zero (ou perto disto) em vários países e a inflação
permanece baixa. Este argumento, porém, se assemelha a afirmar que o Japão tem
menos policiais por habitantes que o Brasil e menos assassinatos, de onde se
concluiria (erroneamente, antes que algum leitor apressado acredite que defendo
esta bobagem) que mais policiais geram mais assassinatos. Como deve ficar
claro, uma sociedade mais pacífica precisa de menos policiais; já países com
inflação baixa (quando não forte risco de deflação) precisam reduzir suas taxas
de juros (seguindo, quem diria, as orientações de John Taylor). Taxas de juros
próximas a zero são consequência, não causa, de inflação baixa.
Lara
Resende ainda afirma que o BC “nunca deveria colocar a taxa de juros acima da ‘eficiência
marginal do capital’”, isto é, a taxa de retorno dos investimentos. Como há
inúmeros investimentos, alguns de alto retorno, outros de baixo retorno, bem
como ainda alguns de retorno negativo (por exemplo, boa parte dos “campeões
nacionais”), imagino que, seguindo esta regra, o BC deveria cobrar juros da sociedade
(taxas negativas), para garantir que até micos possam voar.
And
that’s all I have to say about that...
(Publicado 12/Set/2019)
1 comentários:
Finalmente encontro uma argumentação com palavreado inteligível, ancorada em dados reais, para explicitar o contrassenso das propostas de LResende, que o Valor promove com tanto alarde. Parabéns Alex.
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