O
artigo de André Lara Resende na Folha de S. Paulo
deste domingo é um belo exemplar de uma combinação peculiar: a mistura fina de
obviedades com conclusões que não derivam delas.
Há
um tom sofisticado quando afirma que “a moeda contemporânea, como também a
dívida pública, é apenas um registro contábil eletrônico”, ecoando a tese de
Yuval Hariri em Sapiens, para quem a capacidade de abstração foi
a pedra fundamental para o desenvolvimento humano como o conhecemos. Inteligente,
sem dúvida, ainda que irrelevante para sua tese, a saber, que o governo
brasileiro pode partir sem medo para o financiamento monetário de seus
déficits, sem o menor risco de inflação à frente.
A
começar pela confusão em torno das operações compromissadas. Como se sabe (ou
deveríamos saber), tais operações são vendas (ou compras) de títulos públicos
(registros contábeis no Selic – Sistema Especial de Liquidação e
Custódia) com compromisso de recompra (ou revenda), usadas pelo BC para
garantir que a taxa a que os bancos trocam reservas bancárias no Selic (a taxa
Selic!) fique próxima àquela definida como meta pelo Copom a cada reunião.
Se
há excesso de reservas bancárias, a taxa Selic tende a ficar abaixo da meta; se
há falta, acima dela. No caso brasileiro, há muitos anos, as reservas bancárias
são excessivas, o que requer do BC a venda (com compromisso de recompra) de
títulos. Bancos tornam-se detentores (temporários) de papéis do Tesouro; em
contrapartida, há redução de reservas bancárias, o principal componente da base
monetária.
Para
Lara Resende, porém, afirma que as compromissadas “nada mais
são do que emissão de reservas, base monetária, para o sistema bancário”,
precisamente o oposto da realidade. Para um artigo que se propõe a superar
equívocos, nada como começar com um deles.
Aproveitando
o gancho, propõe que, ao invés de controlar a liquidez e, portanto, taxas de
juros por meio das compromissadas, passe a um sistema de “reservas
remuneradas”, isto é, como alternativa à venda de títulos do Tesouro, o BC
permita que bancos depositem no Banco Central, com remuneração pela taxa Selic,
seu excesso de reservas bancárias. Isto faria, segundo ele, desaparecer 40% da
dívida pública, que cairia de 75% para 45% do PIB.
Para
entender a mágica, é preciso dar um passo atrás. No Brasil, ao contrário do que
ocorre em outros países, o Banco Central é como que “consolidado” dentro do
governo geral. Como o Tesouro é seu único acionista, os títulos emitidos pelo
Tesouro para o BC não são contabilizados na dívida bruta, já que o Tesouro deve
para si mesmo. Por outro lado, os títulos usados nas compromissadas, que estão
fora do balanço do BC (portanto fora do balanço “consolidado” do governo geral)
são contabilizados na dívida.
Se,
argumenta Lara Resende, o BC passasse a usar depósitos remunerados no lugar de
compromissadas, estas sumiriam das estatísticas e, voilá, a dívida
deixaria de ser um problema, exceto pelo fato de continuar a sê-lo.
De
uma forma (compromissada), ou de outra (depósitos remunerados), o BC seguiria
pagando juros aos detentores de títulos ou depósitos. Para quem argumenta tão
eloquentemente sobre a similaridade intrínseca a ativos que nada mais são que
registros eletrônicos contábeis, Lara Resende parece não ver que essas
modalidades são rigorosamente a mesma coisa. Chamá-las por nomes diferentes não
muda esta simples verdade, nem faz 40% da dívida bruta se desfazer no ar.
Nos
demais países, como os bancos centrais tipicamente não são consolidados com o
Tesouro, não se faz esta distinção: a dívida já contabiliza títulos em poder
dos bancos centrais e também não é necessário incluir depósitos remunerados.
Fonte: BCB |
O
que nos leva a outro argumento de Lara Resende, qual seja, que a dívida do
governo brasileiro não é um problema. Para não haver dúvidas cito:
“Quando
a dívida é interna e denominada em moeda nacional, como é o caso da dívida
brasileira hoje, o problema não existe. O serviço da dívida interna denominada
na moeda nacional não exige transferência de recursos para o exterior.
O
Estado deve para os seus próprios cidadãos. É uma dívida de brasileiros com
brasileiros, ou de ‘Zé com Zé’, para usar um velho jargão do mercado
financeiro. O Estado pode sempre refinanciar a dívida e emitir, se necessário,
para cobrir o seu serviço.”
Se
a dívida não fosse um problema, apenas uma operação “Zé com Zé”, o corolário
disso seria que um eventual calote não deveria gerar qualquer impacto real
sobre a economia: “Zé”, que devia para “Zé”, simplesmente não se pagaria: o
ganho de um “Zé” é a perda de um “Zé” e o efeito líquido seria zero.
Bom,
aproveitando a efeméride (30 anos) e o recente
pedido de desculpas do ex-presidente Fernando Collor,
basta lembrar do efeito da calote promovido pelo Plano Collor em 1990: uma das três
maiores recessões da história recente do país (ainda sem contar a atual). O PIB
caiu, de pico para vale, 8,6% (um pouco mais do que na recessão 2014-16, 8,2%),
ao longo de 11 trimestres (o mesmo que em 2014-16) e precisou de 7 trimestres
para recuperar o nível pré-crise (mais rápido que em 2014-16).
Se
alguém acredita que a dívida não é um problema, porque devemos para nós mesmos,
deve também arrumar um jeito de explicar porque não seu não pagamento teve
efeitos tão severos num passado não tão distante.
A
dívida é uma máquina do tempo: permite anteciparmos consumo de amanhã para
hoje, mas alguém terá que pagar pelo consumo de amanhã. Nossos “eus” futuros,
nossos filhos, netos, etc., terão em algum grau que consumir menos no futuro
para compensar o tanto que foi consumido agora.
Ah,
mas podemos pagar a dívida com moeda, que, conforme notado no início, é também
uma ficção contábil, não muito distinta da dívida. A prova disso seria a
experiência mundial com QE (afrouxamento quantitativo), quando BCs em vários
países compraram títulos públicos, ampliando em muito a base monetária sem
efeitos inflacionários.
O
que Lara Resende não conta, porém, é que BCs só se engajaram no QE quando não
foi mais possível reduzir a taxa de juros de curto prazo. De fato, como moeda
tem rendimento zero, ao menos numa primeira aproximação não seria possível
trazer a remuneração dos títulos de curto prazo abaixo de zero. Sabemos agora
que isso não é exatamente verdade por força de regulações e custos de se manter
moeda corrente, mas, ainda assim, se não precisamente zero, sabemos haver
limitações para reduzir a taxa de juros abaixo de algum patamar não muito
distante dele.
O
mecanismo de expansão quantitativa permite aos BCs atuar sobre outras taxas de
juros além daquela de curto prazo. Trata-se de extensão da forma de atuação
descrita acima, mas além do mercado de reservas bancárias. Um estudo do time
econômico da Goldman Sachs em 2010 (“QE2:
How Much is Needed?”) sugere que cada US$ 1 trilhão de
expansão quantitativa corresponda a um corte de 1% da taxa básica de juros.
BCs
calibram sua resposta de política monetária para manter a inflação na meta:
caso esteja acima, elevam a taxa de juros; se abaixo, a reduzem. Nenhum
economista que conheça esta dinâmica diria, de olhos arregalados, “o BC reduziu
a taxa de juros e a inflação caiu!”, mas sim “o BC reduziu a taxa de juros
porque espera que a inflação vá ficar abaixo da meta”. Por essa mesma ótica, a
expansão quantitativa não causa inflação porque se trata de resposta à
baixa inflação, similar a por o pé mais fundo no acelerador quanto o
carro sobe a ladeira para manter a mesma velocidade.
No
caso do Brasil, não chegamos lá, ao menos não ainda. Com argumentei semana
passada, parece haver espaço adicional para a redução de juro (além do que o BC
sugere, mas não voltarei a essa questão), que, todavia, permanece acima de
zero. Recorrer, portanto, à expansão quantitativa agora implicaria permitir que
a Selic ficasse abaixo do nível consistente com a inflação na meta em seu
horizonte relevante ou seja, seria sim inflacionário.
Alquimistas
buscavam a pedra filosofal, substância capaz de transformar metais
ordinários em ouro ou prata, que se tornou assim um símbolo de soluções mágicas
para problemas difíceis.
Vivemos
hoje busca semelhante por uma “bala de prata” contra a pandemia, que muitos, de
Nicolas Maduro a Jair Bolsonaro, passando por Donald Trump (e outros de calibre
similar), acreditam ser a cloroquina.
Lara
Resende se coloca nessa nobre companhia, na sua busca alquímica pela cloroquina
monetária (agradecimentos especiais a Rodrigo Azevedo pela sugestão da
analogia e do título do artigo).
(Publicado 20/Mai/2020)
4 comentários:
Com a coluna de 27 no info você esta querendo voltar para a Folha ou o Pravda?
O pior é que os governantes, sempre com a corda no pescoço diante da pressão dos gastos, tem ouvidos sensíveis a esse tipo de tese. Se o Keynes por exemplo não tivesse afirmado que uma expansão de gastos públicos além das receitas é positivo (em circunstâncias específicas, mas isso é esquecido), seria tão conhecido fora da academia como um Marshall.
“Com a coluna de 27 no info você esta querendo voltar para a Folha ou o Pravda?”
Naaaahhh, quero só abrir os olhos dos otários, mas seu comentário demonstra que preciso me esforçar mais.
Pra entender isso de "operações compromissadas" tem que saber como proceder com os lançamentos contábeis entre o setor monetário e o não-monetario da economia.Dica: capítulo 1 do livro de macro do Simonsen. A última edição revisada em 2006. Parece que o "Lara Desentende" não fez aula de Moedas E Bancos
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