E se a dívida sair de controle? O
resultado mais provável será o retorno da inflação elevada em conjunto com
repressão financeira.
Hoje
quero aproveitar “ganchos” de dois ótimos artigos publicados nos últimos dias,
juntamente com a conclusão a que cheguei na coluna da semana passada, a saber,
que o teto de gastos, na ausência de reformas profundas e rápidas (cuja chance
é mínima), se tornará insustentável num horizonte de poucos anos, talvez já em
2022.
O
primeiro é o excelente texto de Persio Arida na Folha de São Paulo
(Estabilizar
dívida a longo prazo importa mais que conter seu aumento na pandemia),
que reforça o nunca suficientemente enfatizado ponto que o fundamental é gerar
uma trajetória de endividamento que não seja explosiva. Posto de outra forma, o
crucial é garantir que a dívida, mesmo alta, não cresça indefinidamente a uma
velocidade superior à do produto.
Como
a capacidade de pagamento do governo está de alguma forma ligada à renda, por
meio da arrecadação de impostos, uma dívida que cresça mais rapidamente do que
o PIB por um período longo implica risco crescente de que não seja paga, ao
menos não nas condições em que foi originalmente contratada.
Vimos
este fenômeno ocorrendo em tempo real na Grécia e na Argentina, para não ter
que recuar mais que uns poucos anos no tempo. Interessados podem encontrar um
catálogo com todos os calotes de dívida pública, sob diferentes formatos, no
essencial This Time
is Different, de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff (que
aprendeu tudo sobre crises econômicas com uma economista brasileira!),
cobrindo nada menos do que 8 séculos de totós mais ou menos explícitos em
dívidas soberanas.
É
bem verdade que a maior parte desses eventos se verificou em cenário em que o
grosso de endividamento era “externo”, muitas vezes em ambos os sentidos da
palavra: eram dívidas contratadas em jurisdições estrangeiras, denominadas em
moeda internacional, e os credores eram, em sua maioria, não residentes.
Já
a dívida pública no Brasil é denominada majoritariamente em moeda nacional e
detida também por brasileiros. No caso, para quem ainda crê nas lorotas de Ciro
Gomes e assemelhados, os números do Tesouro Nacional mostram que os bancos
detêm algo como 22% da dívida, enquanto fundos de investimento (seu fundo DI,
caro leitor) têm 25% dela, mesma proporção que fundos de pensão, enquanto
não-residentes detinham cerca de metade disso (12,5%), ficando os 15% restantes
nas mãos de órgãos do próprio governo, seguradoras e demais investidores (por
exemplo, o Tesouro Direto).
Há
quem acredite que, já que devemos para nós mesmos e numa moeda que controlamos,
não deveríamos nos preocupar com a dívida, porque jamais chegaríamos à situação
de não ter como pagá-la. Há também quem, como a Rainha Vermelha,
acredite em seis coisas impossíveis antes do café da manhã, então isso não
deveria nos espantar.
De
qualquer forma, Reinhart e Roggof (capítulo 7) documentam também algumas
dezenas de episódios envolvendo dívidas doméstica, incluindo, para orgulho
nacional, o Plano Collor em 1990, que curiosamente fica esquecido nesse debate.
Há,
é claro, a possibilidade de “monetização” da dívida, isto é, da criação de
reservas bancárias por meio do BC para pagamento tanto do seu serviço quando do
principal, possibilidade defendida pelos discípulos da Rainha Vermelha em texto
recente, devidamente rebatido por Samuel Pessoa, o segundo dos artigos em que
me apoio (Imprimir
dinheiro contra a crise?) e também por Ilan
Goldfajn.
Como
lembrado pelo Samuel, mesmo se resolvida a restrição legal ao financiamento do
Tesouro Nacional pelo BC, esta “estratégia” implicaria o abandono do regime de
metas para a inflação. A bem da verdade, implicaria o abandono de qualquer
âncora nominal para o nível de preços, que se tornaria indeterminado.
A
âncora, no caso do regime de metas, é a regra de política monetária, que, muito
simplificadamente, envolve elevação mais que proporcional da taxa de juros em
resposta ao aumento da inflação esperada e vice-versa. É possível demonstrar
que qualquer regra que obedece a este princípio (conhecido como Princípio
de Taylor) tem a propriedade de estabilizar a inflação; já sua violação
implica perder o controle inflacionário.
O
que poderia, portanto, ocorrer caso a dívida, denominada em moeda nacional e
detida principalmente por residentes, continuasse a crescer mais rápido do que
o PIB, sem indicações de reformas que possam estabilizá-la em horizonte
razoável?
Dado
que o crescimento da dívida relativamente ao PIB depende da diferença entre a
taxa de juros e o crescimento nominal do PIB (ou seja, o crescimento real do
produto acrescido da inflação), uma alternativa seria fixar a taxa de juros
abaixo da inflação, ou seja, uma taxa real de juros negativa, presumivelmente
negativa o suficiente para compensar a existência de déficits primários que
continuariam requerendo a emissão de dívida nova.
Obviamente
isto requereria, além de considerável encurtamento do prazo e duração da dívida
(por meio de LFTs), também algum grau de
repressão financeira para forçar goela abaixo de poupadores rendimentos
inferiores à inflação (seria mais vantajoso gastar o dinheiro ou comprar bens
reais, como imóveis, para se proteger da alta de preços). Todavia, mesmo sob repressão
financeira, caso a taxa de juros não seja congruente com a manutenção da
inflação na meta, o que só ocorreria por coincidência mais que improvável, esta
última sairia de controle.
Colocado
de outra forma, a estabilização da dívida e seu eventual encolhimento
relativamente ao PIB se daria pela corrosão de seu valor mediante inflação
elevada, não reposta pela remuneração dos títulos públicos.
Fonte:
Autor, a partir das projeções da LDO
As
projeções de endividamento público que emergem do cenário explorado na minha
coluna da semana passada (algumas das quais estão resumidas no gráfico acima)
apontam para evolução preocupante da dívida. A estabilização ali aventada (apenas
a partir de meados da próxima década!) decorre da suposição de manutenção do
teto de gastos públicos, que, por sua vez, depende da capacidade de reformar
rapidamente a estrutura de gastos no país.
Face
à incapacidade de promover reformas profundas e rápidas, estamos nos
encaminhando para uma “solução” inflacionária de nosso endividamento. A tinta
em que este destino está escrito ainda não secou completamente, mas falta pouco
para que esteja definitivamente selado.
E
nem precisamos da Rainha Vermelha para acreditar nisso...
1 comentários:
A bolsa Bolsonaro veio para ficar.
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