Há uma guerra em curso e para vencê-la
teremos que passar por uma recessão inédita. Para evitar que dure muito mais
que o necessário e para salvar vidas teremos que aumentar substancialmente o
endividamento público. Quando emergirmos, espero, da crise, a tarefa de
estabilização se tornará ainda mais difícil do que já era.
Normalmente
escrevo minha coluna na segunda, logo cedo; excepcionalmente, dado que terá que
ser publicada na quarta, a preparo na terça à tarde, quase uma violência para
um CDF assumido, que sempre entregou trabalhos e lições com antecedência (menos
minha tese de doutorado: um dia conto a história). Não é por acaso, mas sim
porque a situação é incrivelmente fluida e novas informações surgem a cada
minuto. Mesmo assim, sinto que a coluna estará irremediavelmente datada ao ser
publicada.
Sabemos
algumas coisas, mas nada, ou quase nada, sobre várias outras.
Está
claro que a estratégia mais adequada no momento para conter a pandemia envolve
uma quarentena generalizada, mantendo uns poucos setores essenciais (saúde, por
óbvio, segurança, supermercados e farmácias, etc.). Parece ter funcionado em
Hubei e há sinais, ainda incipientes, que pode reverter o quadro de infecção e
mortalidade na Itália. Há cada vez mais países adotando medidas nesse sentido,
mais recentemente o Reino Unido e a Índia e, se não quisermos problemas ainda
maiores, também devemos enveredar por esse caminho.
Obviamente
os custos econômicos são gigantescos. Mesmo com minhas restrições pessoais aos
PMIs (índices de difusão que tentam medir a atividade quase em tempo real), não
há como não se espantar com a divulgação do índice para a Zona do Euro, que
caiu de 51,6 em fevereiro (leituras acima de 50 indicam expansão da atividade;
abaixo, contração) para 31,4 em março. Em particular, no setor de serviços,
mais fortemente atingido, a queda foi ainda mais marcante: de 52,6 para 28,4, o
menor da história.
Nos
EUA a queda não foi (ainda) tão pronunciada (de 49,6 para 40,5 entre fevereiro
e março), mas já indica contração considerável e mais por vir.
Tal
retração é necessária, ainda que dolorosa. Sem ela os riscos de os hospitais
não darem conta dos infectados que necessitam de tratamento mais específico
sobem demais e a taxa de mortalidade se torna ainda maior. Os números estão
longe de ser definitivos, mas, até onde consigo entender, com o tratamento
adequado a mortalidade ficaria próxima a 0,2% dos infectados; sem o tratamento,
ao redor de 4%, inaceitável no século XXI.
Há,
claro, os custos, inclusive em vidas humanas, da recessão por força das medidas
de distanciamento social, mas a este respeito cito trabalho
recente de Robert Barro, José Ursua e Joanna Weng sobre a “Gripe Espanhola” de
1918-19 que tenta estimar os efeitos da influenza
sobre a atividade, chegando a um impacto ao redor de 6% de queda no PIB per
capita (e 8% para o consumo per capita) para mortalidade ao redor de 2%. Se
corretos, tais números sugerem que não combater a infecção por meio da
quarentena terá resultados econômicos mais severos e por motivos ainda piores.
Nesse
sentido, como notado por N. Gregory Mankiw, a recessão resultante
dessas medidas é “ótima”, não por ser desejável, claro, mas por ser o melhor a
fazer nas circunstâncias.
A
questão passa a ser então mitigar os efeitos econômicos da recessão, tentando
evitar que o impacto, esperamos, temporário da pandemia sobre a atividade se
prolongue.
Há,
ao menos, dois canais. Um deles é o aumento do desemprego, que tira renda de
parcela substancial da população, reduzindo, portanto, seu consumo muito além
do período de quarentena. O outro é a parada e possível, se não provável,
destruição de empresas, principalmente de pequeno e médio portes, que podem não
sobreviver no período pela restrição de caixa e dificuldade de obter o capital
de giro para se manter em dia com despesas, em particular sua folha de
pagamento.
Do
lado do desemprego, as políticas mais bem sucedidas foram as empregadas pela
Alemanha nos meses seguintes à Grande Recessão (embora existam bem antes
disso): a redução de jornada e salários, mas com o Tesouro bancando parcela dos
salários, com foco naqueles com renda mais baixa. Para o caso do Brasil,
trabalho de Carlos Góes e Ricardo Dahis (que recebi recentemente) estima, com
base na RAIS, em R$ 29 bilhões/mês o custo para o Tesouro no caso de
compensação integral para quem receba até 1 salário-mínimo (SM), 93% para quem
recebe até 2SM e 83% para quem ganha até 4SM.
Noto,
assim como os autores, que tal proposta só atende o mercado formal de trabalho,
que, pelos dados da PNAD, é algo como 3 vezes maior, em termos de massa
salarial, que o mercado informal (incluindo nessa conta os trabalhadores por
conta própria sem CNPJ), mas com prevalência de salários mais baixos, portanto
uma ajuda proporcionalmente maior. Numa primeira aproximação, falamos, assim,
de algo na casa de R$ 45 bilhões/mês (da ordem de 20% da massa salarial
mensal), ou R$ 135 bilhões presumindo (por enquanto) que este esquema dure um
trimestre.
Estimo,
ao mesmo tempo, contração do PIB no ano ao redor de 5% (a certeza quanto a este
número é baixa, mas os resultados que apresentarei não são tão sensíveis a esta
suposição), o que pode reduzir a arrecadação em R$ 130 bilhões. Somados à meta
fiscal para 2020 (déficit primário de R$ 124 bilhões), teríamos um resultado
primário negativo ao redor de R$ 390 bilhões (5,3% do PIB, o maior da
história).
Por
outro lado, a taxa de juros deve cair além do já definido pelo Copom, de modo a
reduzir a conta de juros para R$ 145 bilhões, portanto um déficit total de R$
520 bilhões (7,3% do PIB, longe do nosso recorde, 8,5% do PIB em 2015).
Já
no que se refere a empresas, Armínio Fraga, Vinícius Carrasco e José Alexandre
Scheinkman propõem um programa de crédito de R$ 120 bilhões, bancado também
pelo Tesouro (remeto os interessados nos detalhes ao artigo
original).
Somados
o déficit fiscal e a linha de crédito (cuja contrapartida, não esqueçamos, é
aumento da dívida do governo), a dívida bruta saltaria de R$ 5,5 trilhões (75,8%
do PIB) no final do ano passado para R$ 6,2 trilhões (86,7% do PIB) em 2020.
Não
é um aumento trivial. Em particular, com 10 pontos percentuais de PIB a mais de
dívida as condições para sua redução nos próximos anos ficam ainda mais
complicadas, isto é, os resultados primários requeridos para conter a dívida se
tornam tipicamente maiores.
Não
é, reitero, motivo para deixar de fazer o que está sendo proposto. A questão agora
não é estabilizar a dívida, mas vencer o vírus e manter vivas pessoas e
empresas ao longo de um período dificílimo. Independentemente de tais méritos,
porém, quando retornarmos (se retornarmos) a um certo grau de normalidade,
nossa tarefa vai ser ainda mais árdua do que era antes da pandemia.
Passada
a crise, as reformas serão ainda mais necessárias do já eram e os riscos à
estabilidade bem maiores. Façamos, então, tudo que deve ser feito para
preservar vidas, mas não se esqueçam que há tarefas também hercúleas quando o
pior tiver sido (como espero) superado.
(Publicado 25Mar/2020)