Ao contrário do que afirma o slogan,
água é sim uma mercadoria e é sob esta ótica que temos as melhores condições de
prover água limpa e saneamento, ainda que com regulamentação e subsídios.
“Água
é um direito; não uma mercadoria”. Foi com este slogan que os partidos
de esquerda no Congresso Nacional rejeitaram o novo marco regulatório do
saneamento. Por ser essencial à vida, água não deveria, segundo esta visão, ser
objeto de produção mercantil. Como de hábito, esta perspectiva não corre
qualquer risco de estar certa.
Propriedade bem definida
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Propriedade mal definida
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Rival
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Bens privados (comida, bicicletas, computadores)
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Bens comuns (parques, mar)
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Não-rival
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"Clubes" (TV a cabo, teatro)
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Bens públicos (segurança, justiça, defesa)
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De
acordo com suas características, bens podem ser classificados como “rivais” ou
“não-rivais”. Bens rivais são definidos como aqueles cujo consumo por
alguém torna impossível o consumo para os demais. O almoço que devorei há
pouco, por exemplo, é um bem rival: o que comi não está disponível para ninguém
mais. O mesmo se aplica ao computador no qual escrevo estas mal traçadas.
Há,
em contraste, bens cuja utilização por alguma pessoa não previne seu uso pelos
demais (não-rival). Informação é um exemplo óbvio. Este artigo pode ser
lido por mais de uma pessoa ao mesmo tempo (espero que sim!), sem que o consumo
de uma afete os das demais. Outros exemplos incluem a defesa do país, a
segurança pública, ou uma série, num serviço de streaming.
Já
pela ótica institucional, bens podem ter direitos de propriedade bem definidos
ou mal definidos. Não há dúvida sobre quem pertence minha casa, ou, ainda mais
importante, minha bicicleta. Por outro lado, uma área comum (um parque, ou o
mar) não tem um “dono”. Todos podem utilizá-la sem pagamento, o que caracteriza
a fraqueza do direito de propriedade.
Quando
os bens não são rivais e os direitos de propriedade são fracos, temos o caso de
bens públicos: o estado fornece serviços como defesa (um exército), ou
segurança (policiamento), se financiando por meio de impostos.
Há
bens não-rivais, mas com direitos de propriedade melhor definidos. Assinamos os
serviços de streaming, ou TV a cabo, por exemplo, para ter acesso
(legal) a estes bens, o que os caracteriza como bens de clube. Ocorre,
claro, pirataria em algum grau, porque nem sempre é possível fazer valer 100%
do direito de propriedade.
Temos
também bens rivais, mas cuja propriedade não é bem definida. Quando meu carro
está na Marginal Pinheiros às 18:00 ele ocupa um espaço que não pode ser
ocupado por outro veículo. Todavia, como nada me custa ocupar este espaço, nem
aos demais, tipicamente ignoramos os custos impostos a terceiros pelo uso deste
bem (espaço na Marginal).
O
resultado típico de bens rivais cujo direito
de propriedade é mal definido é a sobreutilização
destes recursos, no caso, congestionamentos, mas que, de maneira geral, são
caracterizados como a Tragédia
dos Comuns, isto é, utilização exagerada de um
recurso escasso devida a incentivos incorretos. O
fracasso da COP25 esta semana ilustra
uma das facetas deste dilema: sem direitos de propriedade bem definidos sobre a
emissão de carbono (os créditos de carbono, por exemplo), a racionalidade
individual leva à produção além do ótimo social.
Já
no caso de bens rivais, mas com direitos de propriedade bem definidos, vale a
relação mercantil. O que a teoria econômica sugere desde Adam Smith, também
validado pela experiência histórica, é que a produção de bens cujo consumo seja
exclusivo e cujos direitos de propriedade sejam fortes, a melhor forma de
organização da produção é mercantil, isto é, para usufruir de um bem não rival,
o consumidor deve pagar ao produtor.
Sob
certas circunstâncias, em particular competição (mais sobre isto num segundo),
é possível demonstrar que esta forma de organização da produção e de consumo
tipicamente gera os melhores resultados possíveis em termos de provisão destes
bens. É precisamente por isto que, ao entrarmos num supermercado, temos uma
enorme variedade de coisas à nossa disposição, enquanto um venezuelano,
norte-coreano, ou cubano, como regra, só encontra prateleiras vazias.
Como
deve ficar claro a esta altura do texto, a água é um bem rival. Ao usá-la, para
qualquer fim, impeço que outros a utilizem. Da mesma forma, direitos de
propriedade são bem definidos, sem o que haveria sobreutilização de um recurso
valioso (basta imaginar o desperdício que haveria se nada fosse cobrado por ela).
Água é, portanto, sim uma mercadoria e é isto que garante sua disponibilidade
para o consumo.
Cabem,
todavia, ressalvas. A começar que a distribuição de água é um monopólio
natural. É puro desperdício duplicar (ou triplicar) a rede de distribuição para
criar competição. Neste caso, como em qualquer monopólio, cabe um papel central
para a regulação, que deve manter o equilíbrio entre os incentivos para a
produção e os limites à exploração do poder monopolista. Como resolver este
problema é tarefa que deixo para meus colegas microeconomistas.
Não
menos importante, há consequências da provisão destes bens (água limpa e
saneamento) que vão além de lucros gerados pelas concessionárias e mesmo do
bem-estar de quem paga por estes serviços. A saúde da população melhora além
daquilo que cada um está disposto a pagar, o que, em jargão da profissão,
significa uma “externalidade positiva”. Neste caso, faz sentido subsidiar a
provisão destes bens para que o comportamento individual seja congruente com o
benefício social.
Posto
de outra forma, mesmo que a provisão de água e saneamento seja privada, cabe
definir tarifas, em particular para a população mais pobre, que encorajem seu
uso.
Só
não é possível manter o status quo atrás de slogans vazios, cujo
maior feito até agora foi manter quase metade da população brasileira sem
acesso a saneamento.
(Publicado 18/Dez/2019)
1 comentários:
poderia fazer um comentario sobre as medidas do novo governo argentino, como por exemplo os novos impostos sobre obtencao de dolares? abraco
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