Confesso
que não sei se a
proposta de usar os recursos da conta única do Tesouro Nacional como
alternativa às reformas fiscais é má-fé ou mera ignorância (mera, no
caso, não quer dizer “pequena”) e nem quero saber. Basta dizer que não resiste
a 30 segundos de investigação por qualquer um que tenha estudado o assunto e
possua noções básicas de contabilidade.
Isto
dito, nem todo mundo passou pelo curso de Moeda e Bancos, que, se não me falha
a memória, é dado no quinto ou sexto semestre do curso de Economia na FEA-USP
(estou com preguiça de pesquisar). Vale, assim, uma breve exposição do balanço
patrimonial simplificado do Banco Central, conforme o quadro abaixo.
Ativo
|
Passivo
|
Títulos
públicos
|
Base
monetária (reservas bancárias e papel moeda)
|
Crédito
ao sistema financeiro
|
Conta
única
|
Reservas
internacionais
|
Patrimônio
líquido
|
Do
lado dos ativos o BC possui títulos públicos, através dos quais conduz a
política monetária (mais sobre isto num instante), recursos que empresta a
instituições financeiras e, por fim, as reservas internacionais do país.
Já
seu passivo contempla a base monetária (as reservas que bancos mantêm junto ao
BC, bem como o papel-moeda em poder do público), a conta única do Tesouro
Nacional, e seu patrimônio líquido (“capital”).
Quando
o Tesouro Nacional recebe recursos (por exemplo, pagamento de impostos, ou o
dinheiro levantado em seus leilões de dívida), ele os deposita no BC. Da mesma
forma, o pagamento de despesas do Tesouro ou a amortização de sua dívida
implicam saques da conta única. Nada diferente de uma empresa que mantém seu
caixa num determinado banco, exceto que, neste caso, o Tesouro é o único
acionista do BC.
O
Tesouro se torna acionista do BC por meio da entrega de títulos públicos à
autoridade monetária. Contabilmente, ao aumento do lado esquerdo do balanço (o
ativo) corresponde um aumento do lado direito (o passivo), expresso na elevação
do patrimônio líquido do banco.
Considere
o caso em que o Tesouro registre um déficit persistente, isto é, suas despesas
(pessoal, previdência, juros, assistência, etc.) superam suas receitas. Sem
entrar ainda na possibilidade de endividamento adicional do Tesouro junto ao
mercado, vamos examinar a mecânica do ajuste.
Como
o déficit do Tesouro não altera o ativo do BC, também seu passivo tem que se
manter constante. Isto ocorre automaticamente porque as entradas na conta única
reduzem a base monetária, enquanto as saídas a elevam. Sob a suposição de
déficits fiscais (ainda sem considerar o endividamento do Tesouro), a base
monetária aumenta, dado que o BC credita as reservas dos bancos que
operacionalizarão os pagamentos do Tesouro (por exemplo, o Banco do Brasil). Posto
de outra forma, o passivo do BC permanece inalterado, mas sua composição muda: cai
o saldo da conta única e aumenta a base monetária.
Ocorre
que o aumento das reservas bancárias faria com que a taxa de juros caísse
abaixo da meta da taxa Selic determinada pelo BC a cada reunião do Copom, o
que, na ausência de medidas corretivas, faria a inflação seguir trajetória mais
alta do que a projetada pelo BC.
Para
evitar que isto ocorra, o BC vende títulos públicos da sua carteira, com o
compromisso de recomprá-los em alguma data futura, reduzindo as reservas
bancárias (bem como seu ativo). Estes títulos lastreiam as famosas e pouco
compreendidas “operações compromissadas”, precisamente o mecanismo de condução
da política monetária a que me referi acima. Desta forma o BC mantém o volume
de liquidez compatível com sua meta para a taxa de juros.
Alternativamente,
o Tesouro pode vender seus títulos no mercado e depositar o dinheiro que tomou
emprestado na conta única. Da mesma forma que ocorre quando o BC vende os
títulos, isto reduz as reservas bancárias e, portanto, a necessidade de o BC
operar neste mercado. Isto dito, como o Tesouro jamais foi superavitário (isto
é, as saídas de caixa associadas ao pagamento de suas despesas historicamente
superaram as entradas ligadas a tributos e outras receitas), todo seu caixa é contrapartida do seu
endividamento.
Imagine
agora que um dos autores da proposta assuma o comando da economia (como ouvi do
saudoso Rudi Dornbusch: “in your country
it can happen to anyone”) e ordene ao Tesouro que use os recursos da conta
única para pagar novas despesas, porque – afinal de contas – “há R$ 1,2 trilhão
[sobrando] no Caixa do Tesouro”.
Isto,
como vimos, implicaria aumento da mesma magnitude da base monetária. Como esta montava
a pouco menos de R$ 300 bilhões no final de abril, o uso de toda conta única (R$
1,2 trilhão) quintuplicaria a base monetária, com efeitos devastadores sobre a
inflação. Se o BC quisesse mantê-la constante, teria que vender perto de 2/3 de
sua carteira de títulos públicos (hoje na casa de R$ 1,8 trilhão) na forma de
compromissadas, ou esperar que o Tesouro se endividasse em novos R$ 1,2
trilhão.
De
uma forma (compromissadas) ou de outra (emissão de novos títulos pelo Tesouro),
a dívida pública saltaria dos atuais R$ 5,5 trilhões (quase 80% do PIB) para R$
6,7 trilhões (96% do PIB). Só um “gênio” não consegue entender os efeitos disto
sobre a solvência do governo.
No
final das contas, a ideia que existe uma “bala de prata” que evitaria a
necessidade de controlar as despesas do governo nunca, jamais, em hipótese
alguma, sobrevive a um exame minimamente mais detalhado e, claro, não seria
diferente desta vez.
Como
há picaretas no mundo!
(Publicado 5/Jun/2019)
12 comentários:
Não foi consertado ainda o 1,8bi. É tri.
As dívidas internas são impagáveis mundo afora. Implicaria, seu pagamento, sim, em explosão da base monetária, e, já é assim há décadas.
Também é impensável ter taxas de juros altos como em 1908-1982 pois o total dos juros pagos por ano seria imenso. Ex.: Com taxas de 1% ao ano, o Japão paga US$ 100 bi de juros por ano.
Parabéns pelo artigo, este é o texto que melhor resume o funcionamento do BC que já li.
Alex, que baita aula. Parabéns!
Sensacional o texto...
Só uma duvida de leigo:
Se historicamente o Tesouro jamais foi superavitario, por que tem 1,2tri na conta unica?
Digo, nao deveria ir esvaziando com o tempo, etc?
Nao entendi esse ponto.
"Se historicamente o Tesouro jamais foi superavitario, por que tem 1,2tri na conta unica?"
Os recursos que o Tesouro toma no mercado, ie, a grana que recebe pelos títulos que vende nos seus leilões, são depositados na conta única.
Pagamento de "amortizações"?! Como amortizações, se o estoque da dívida não pára de aumentar?
"Como amortizações, se o estoque da dívida não pára de aumentar?"
Pense um pouco e refaça a pergunta.
Pensei.
Como amortizações, se o estoque da dívida não pára de aumentar?
Pergunta refeita.
"Pensei."
Não, não pensou... Força aí!
Desculpe, mas não concebi mais nada.
Se você ou qualquer outro leitor do blog puder tirar minha dúvida, agradeço!
"Se você ou qualquer outro leitor do blog puder tirar minha dúvida, agradeço!"
http://maovisivel.blogspot.com/2018/06/ignorancia-ma-fe-e-covardia.html
O autor do artigo usou uma explicação estranha.
Ele diz que a amortização não pode ser classificada como gasto financeiro.
Ora, as amortizações são pagas e o montante da dívida continua subindo! Nesse caso o que se tem é uma despesa financeira corrente que continuará a ser paga, pois a dívida só aumenta.
A menos que todos os elementos de análise financeira estejam errados, se uma dívida é amortizada, ela diminui. Não pode ser classificado como amortização algo que não possui efeito amortizador.
De qualquer forma, obrigado!
Postar um comentário