Há
más ideias e há ideias fora do lugar. A proposta de criação de uma moeda única
para Brasil e Argentina, ventilada pelo presidente, se enquadra com méritos em
ambas as categorias. Ele já afirmou veementemente que nada sabe de economia; não
satisfeito, se esforça para provar esta verdade a cada declaração.
A
inspiração do monstrengo é o euro, ponto culminante (ou nem tanto) de um longo
processo de integração iniciado em 1951-52 com a fundação da Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço, que modestamente permitia a livre circulação
destas mercadorias num clube formado pela Alemanha, França, Itália e os países
da Benelux.
Este
embrião foi ampliado ao longo de várias décadas, tanto no conjunto de países
participantes como no escopo das mercadorias. A União Europeia (UE), formada
oficialmente pelo Tratado de Maastricht, é a versão mais moderna deste
processo.
Trata-se,
para começar, de união aduaneira, isto é, não há apenas livre circulação de bens
e serviços entre seus membros, como os países pertencentes à UE se comprometem
com uma estrutura tarifária comum. Em outras palavras, qualquer país-membro da
UE aplica a países fora da área as mesmas tarifas.
Adicionalmente
as regras também permitem a livre circulação de cidadãos da UE entre os
países-membros, como firmado no Tratado de Schengen (que também inclui alguns
países de fora da UE, como a Noruega, a Islândia e a Suíça).
Para
que a UE funcione a contento foram criadas instituições supranacionais, como a
Comissão Europeia, o Tribunal de Justiça Europeu, além de um vasto conjunto de
regras a que todos os membros estão submetidos.
Por
fim, antes da adoção do euro, exigiu-se a harmonização das políticas
macroeconômicas, inclusive limites para déficits e dívidas, que, sabe-se hoje,
não foram seguidos à risca. De qualquer forma, havia a necessidade de
convergência de políticas fiscal e monetária, esta última decorrendo da fixação
das moedas europeias contra o marco alemão, não só a principal economia do
continente, como também a de maior estabilidade inflacionária, herança do Bundesbank.
Apesar
disto, a Zona do Euro (ZE), o subconjunto dos países da UE que adotaram a moeda
única, passou por uma crise de grandes proporções, cujos efeitos ainda são
sentidos em vários países.
À
parte a convergência incompleta das políticas macro (como exemplificado no caso
grego), esta experiência revelou outras falhas na formulação do euro.
Ao
contrário, por exemplo, dos EUA, em que o governo federal realiza, de modo mais
ou menos automático, transferências fiscais para estados atingidos por choques
específicos (pensem, por exemplo, no pagamento de seguro-desemprego para trabalhadores
no Texas se o preço do petróleo cair muito), não há na Europa nada que amenize
os efeitos de choques negativos (ou positivos) em cada economia da região. Também
não havia (nem há) um instrumento de dívida supranacional que pudesse servir
como ativo de risco mínimo para o conjunto da ZE.
Afora
isto, mobilidade de mão-de-obra é muito menor do que nos EUA, de modo que
eventuais excessos de demanda por trabalho num país tipicamente se traduzem em
elevação dos salários e, portanto, do custo unitário de trabalho, equivalente a
uma apreciação da moeda. Salários espanhóis, por exemplo, cresceram muito no
pré-crise, elevando os custos no país relativamente à Alemanha. Apesar dos
salários maiores, não houve migração significativa de trabalhadores de outros
países.
Finalmente,
cada governo nacional ficou responsável por seu sistema financeiro. Assim,
quando houve a crise e governos tiveram – como no caso da Irlanda e Espanha – que
injetar recursos em seus respectivos sistemas bancários, a qualidade do crédito
destes países se deteriorou. Como os bancos de cada país detinham títulos do
seu próprio governo, cujo valor caía a cada nova emissão, criou-se um círculo
vicioso, do qual só foi possível sair com a postura do Banco Central Europeu,
que, na figura de seu presidente, se comprometeu a “fazer o que fosse
necessário” para manter o euro, inclusive adquirir trilhões de euros de títulos
dos governos da zona monetária.
A
descrição do processo europeu, com seus acertos e falhas, deixa claro o quão
distante estamos da possibilidade de uma moeda única.
A
começar porque o Mercosul não chega sequer a ser de fato uma zona de livre
comércio, muito menos uma união aduaneira: há uma Tarifa Externa Comum, que é
externa, mas longe de ser comum.
Quanto
à harmonização das políticas macro, a única que há entre Brasil e Argentina é a
má qualidade da política fiscal (e a nossa consegue ser ainda pior que a
platina – um feito para poucos).
As
taxas de inflação divergem enormemente, assim como taxas de juros. É verdade
que o histórico brasileiro tem sido melhor que o argentino nesta dimensão, mas,
exceção feita a alguns períodos nos últimos 25 anos, não é nada de que possamos
nos orgulhar.
Também
nos faltam instituições supranacionais (e nem estou falando de um banco
central, mas de coisa mais básicas, como uma corte binacional), livre
mobilidade de pessoas, integração financeira e fiscal.
Em
suma, não temos rigorosamente nada do necessário para sequer começar a pensar
em moeda única. Pior: pelo menos no caso do Brasil, dada a evolução do problema
previdenciário, mesmo as perspectivas para a estabilidade de preços se tornam
nebulosas, para dizer o mínimo.
O
que temos, portanto, é um caso clássico de um carro à frente dos bois, que,
sejamos sinceros, a esta altura do campeonato ainda são bezerros, ou melhor,
óvulos esperando fertilização no útero materno.
Tendo
dito isto, não há como deixar de notar a ironia: o presidente que ordenou a
retirada do símbolo do Mercosul dos passaportes nacionais em nome de sua
cruzada anti-globalista agora defende um processo que, para ser levado a cabo,
requer a cessão de soberania num conjunto de áreas que vão do estabelecimento
de políticas comerciais próprias à definição da taxa de juros de curto prazo,
passando pela livre mobilidade de pessoas e profunda integração fiscal e
financeira.
Se
havia alguma dúvida acerca da completa ausência de reflexão sobre o tema,
espero que este artigo ajude a dirimi-la.
(Publicado 12/Jun/2019)
2 comentários:
Nos anos 80, Montoro falava da moeda GAUCHO (palavra que existe nas duas línguas mas com pronúncia diferente.
A experiência do EURO já há muito que se sabe que é um fracasso. Feliz do Reino Unido que não aderiu ao EURO. O problema na Europa é como acabar com o Euro.
O desenvolvimento é concentrador por natureza - Não foi o espetáculo de investimento esperado. Sempre vai ter regiões atrasadas e adiantadas na Europa.
Parabéns
Pela materia
Sem cabimento cada pais do Mercosul possui uma saúde financeira diferente assim o Brasil seria prejudicado e a Argentina sairia de boa!
João Neto
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