Se
eu já não tenho mais paciência com a discussão da reforma previdenciária, que dizer
do coitado do leitor, assombrado pelas obsessões tanto do colunista como do
mercado. Fazer o quê? É o principal tema da agenda política e econômica do
país, e por boas razões.
Isto
dito, tenho sérias ressalvas ao relatório do deputado Samuel Moreira, mas não
as mesmas expostas, entre a histeria e a choradeira, pelo ministro Paulo
Guedes. Em particular não desgostei da retirada da capitalização do texto da
proposta por uma série de motivos. A começar porque em momento algum houve
clareza acerca do que se pretendia nesta frente.
Aventou-se,
por exemplo, a possibilidade de uma capitalização nocional (aos interessados
recomendo o belo artigo de Pedro Nery a respeito em https://tinyurl.com/y4j3r5fw),
que não seria uma má ideia, mas, por outro lado, o ministro frequentemente
mencionou que as economias resultantes da reforma seriam utilizadas para bancar
a transição para o regime de capitalização, proposição que, além de contrária
ao regime “nocional”, desafia a contabilidade e a aritmética.
Podemos
(e devemos) abrir esta discussão mais à frente, preferivelmente na forma de um
complemento à repartição, como defendido por Paulo Tafner e Pedro Nery em seu
indispensável Reforma da Previdência: Por Que o Brasil Não Pode Esperar, mas,
nas condições de hoje, possíveis economias com a reforma serviriam apenas para
estancar (ou reduzir levemente) o gasto previdenciário como proporção do PIB.
Posto de outra forma, a proposta essencialmente evitaria a necessidade de corte
ainda maior nos investimentos e demais gastos do governo.
Para
ser curto e grosso, não me preocupa muito o abandono deste tópico, apesar do mimimi do ministro.
Ficaram
de fora também as mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a
aposentadoria rural, temas politicamente tóxicos. Contudo, de acordo com as
estimativas oficiais, o BPC representaria menos de 3% do impacto da reforma,
enquanto a aposentadoria rural equivaleria a pouco mais de 5% do total. No
conjunto da obra seriam anéis pequenos na permuta pelos dedos, do ponto de
vista das contas públicas.
Permanece,
isto sim, um problema de tratamento desigual que deveria ser corrigido (os que
não contribuem para a previdência se “aposentam” em condições similares a quem
contribuiu, o que fere qualquer noção de justiça), mas que, novamente, pode ser
objeto de discussão menos acalorada no futuro, sem grande prejuízo em termos de
estabilização dos gastos.
O
custo maior, do ponto de vista do governo federal, refere-se a regras de
transição e manutenção de exceções aos princípios gerais em nome das
especificidades de algumas carreiras (notadamente professores). De qualquer
forma, a valer o relatório, o governo federal sairia da história com economias
entre R$ 850 bilhões e R$ 900 bilhões em 10 anos: menos do que o objetivo
inicial de R$ 1,2 trilhão, sugerindo a necessidade de voltar ao tema em 4 ou 5
anos, mas ao redor do que se imaginava ser o efeito da reforma quando do seu
lançamento.
Se
a coisa parasse por aí valeria uma comemoração discreta: daria para abrir uma
boa cerveja (não um baita vinho) e brindar com gosto, principalmente
considerada a alternativa de manutenção do status
quo, uma receita para o desastre.
Ocorre
que não paramos por aí. Estados e municípios foram excluídos da reforma e pelos
motivos mais mesquinhos. Deputados não querem facilitar a vida de governadores
e prefeitos, potenciais rivais em 2022 e 2018 respectivamente, que, com a
reforma, teriam melhores condições de gestão sem incorrer no desgaste político
de promover suas próprias mudanças. O cálculo político mais vil determinou a
exclusão.
Isto
não é tão relevante na perspectiva dos municípios; contudo, no caso dos estados
é óbvio que o dispêndio com inativos é o principal problema, ainda mais considerados
policiais e professores (que se aposentam mais cedo e têm peso maior nos gastos
comparado ao governo federal). Algumas estimativas sugerem que a adoção da
reforma para estados e municípios implicaria redução de gastos da ordem de R$
300 bilhões em 10 anos na comparação com o cenário sem reforma.
A
miopia não se restringe aos deputados. A experiência histórica é acachapante em
demonstrar que, cedo ou tarde, o desequilíbrio dos governos locais termina nos
cofres federais, sob forma de assunção e reestruturação de dívidas, pacotes de
ajuda, etc. É, portanto, uma ilusão acreditar que não haverá repercussões sobre
as contas do governo central num horizonte não muito distante, desfazendo à
noite o que se tenta tecer de dia.
Se
houvesse um mínimo de articulação política por parte do governo federal este
monstrengo jamais deveria ter visto a luz da manhã. Os custos da inação e da
fabricação de crises desnecessárias aparecem precisamente neste fato. A verdade
é que o Congresso tem sido até mais colaborativo do que se esperava e Rodrigo
Mais, frequentemente objeto da ira presidencial, é o responsável maior por este
comportamento.
Falta,
porém, a ação mais decidida do presidente e de seu ministro da Casa Civil (quem
é mesmo?) para orientar o Congresso. O desleixo de ambos neste aspecto, em
contraste com a frenética atividade presidencial para tratar de assuntos
secundários na agenda de costumes, expõe de forma clara os preocupantes limites
da atual administração.
(Publicado 19/Jun/2019)