Samuel
Pessôa, para variar, escreveu uma
bela coluna no domingo. Parte do pressuposto, para lá de razoável,
que o atual governo, apesar do evidente corpo mole do presidente, conseguirá
aprovar alguma reforma da previdência, porém bastante desidratada e mais tarde
do que se espera.
Conclui
que, a despeito disto, não haverá ruptura, e nos oferece quatro razões para tanto:
reservas internacionais elevadas (que evitam uma crise de balanço de
pagamentos); o teto de gastos públicos; algum efeito da reforma “desidratada”;
e, por fim, a inflação baixa, que permite manter o juro também baixo, reduzindo
o custo da dívida. Assim, as principais consequências da falta de apetite pelas
reformas seriam crescimento lento e, em algum momento, uma transição para algo
semelhante à Argentina hoje, com inflação alta complementando a expansão medíocre.
Minha
análise tem muito em comum com a do Samuel, mas confesso que, ao ler a coluna,
me vieram à mente dois relatos, em alguma medida aparentados.
Ernest
Hemingway, em “O sol também se levanta”, conta de um empresário que explica
como faliu: “Two
ways. Gradually; then suddenly” (de duas formas: devagar e então
de repente, em tradução livre).
Já
o grande economista Rudi Dornbusch, em frase memorável, afirmou (também em
tradução livre): “em
economia as coisas demoram mais para ocorrer do que você pensa e então
acontecem muito mais rápido do que você imagina”. A verdade é que
nossa capacidade como economistas de prever eventos descontínuos não é grande
coisa, mas vou me arriscar aqui.
Quem
teve a chance de analisar a Lei
de Diretrizes Orçamentárias (LDO), enviada há pouco ao Congresso
Nacional, deve ter notado algumas coisas interessantes. Em primeiro lugar,
quase uma curiosidade: embora durante a campanha Paulo Guedes tivesse prometido
zerar o déficit primário, a LDO prevê déficits recorrentes de 2019 a 2022. Neste
aspecto, pelo menos, o ministro parece ter calçado as sandálias da humildade e
se dobrado à necessidade de fazer um pouco de conta, atitude positiva, ainda
que tardia.
É
bem verdade que a trajetória de déficits é declinante no período, caindo a 0,3%
do PIB no último ano, consequência da premissa de obediência ao teto de gastos,
que força o conjunto da despesa federal a se reduzir relativamente ao PIB,
enquanto receitas se mantém aproximadamente constantes.
Por
outro lado, quando examinamos as principais contas de dispêndio público
projetadas na LDO é impossível deixar de notar que sua trajetória cadente só se
materializaria sob a suposição de contração extraordinária do gasto
discricionário, que viria de 1,7% do PIB em 2018 (11% da despesa) para 0,8% do
PIB (6% da despesa) em 2022, uma vez que benefícios previdenciários seguiriam crescendo.
Posto
de outra forma, a ser respeitado o teto de gastos, na ausência de reforma, a
contração necessária da despesa discricionária levaria à paralisação da máquina
federal em 2021, ou (mais provavelmente) em 2022, uma vez que requereria um
corte em termos reais pouco superior a 40% em quatro anos.
Se,
porém, a reforma for plenamente aprovada, seria possível limitar o corte do
gasto discricionário a algo como R$ 14 bilhões até 2022 (contra R$ 64 bilhões
no cenário sem reforma), o que, com um pouco de sorte, manteria o governo
federal operante. Vale dizer, caso a reforma seja muito desidratada haverá um
encontro sério com a realidade das contas públicas num horizonte de 3 a 5 anos.
Em
tal circunstância duas coisas me parecem prováveis. Em primeiro lugar, o
abandono do teto de gastos, que se tornaria insustentável sem uma reforma
parruda da previdência. Todavia, como isto significaria também a
impossibilidade de estabilização da dívida como proporção do PIB, também o BC
teria que deixar de pautar sua política de juros pela inflação, calibrando a
Selic para estancar o endividamento.
Neste
caso o BC perderia a capacidade de controlar a inflação, devagar e, então, de
repente. Se vale o dito de Dornbusch, quando isto ocorrer, provavelmente mais
tarde do que prevejo, será muito pior do que imagino.
(Publicado 28/Abr/2019)
4 comentários:
Posso não concordar com algumas de suas teses, mas agradeço por poder ler e ouvir seus comentários e textos. Obrigado por compartilhar.
Gosto de comparar com as barragens de rejeitos de Mariana e Brumadinho que romperam recentemente. Estavam lá há muitos anos, e certamente há muitas outras em condições semelhantes que não cederão. Mas é melhor não contar com a sorte, encarar os custos e fazer um projeto estrutural decente.
Como sempre, o encontro com a realidade sempre fica na nossa frente, e uma turma grande achando que é só um vidro fino, de onde dá para se ver tudo a frente...
Daqui a 3, 4 anos, lá vamos nós encarar outra batalha para aprovar uns caraminguás, e ganhar um folego, e... nem as galinhas vão querer serem comparadas aos nossos vôos.
A sociedade está doente mesmo Ale, e sua entrevista no começo do ano pra XP nunca se fez tão acertada.
deixa ver se entendi...
Recentemente foi noticiado que a década de 2010 foi outra década perdida (ainda pior que o trash'80)
Vc está dizendo que, diante do que virá na década de 20, éramos feliz e não sabíamos???
Postar um comentário