Como
o Samuel,
fui ler o artigo
de André Lara Resende que tem gerado considerável ruído e frequentes perguntas.
Bem que queria escapar da velha piada, mas não dá: o texto tem coisas boas e
coisas novas; infelizmente as novas não são boas e as boas não são novas.
Há
tempos que Lara Resende está, justificadamente, incomodado com as altas taxas
de juros vigentes no Brasil e tem proposto explicações e medidas para lidar com
a óbvia discrepância entre o nível das taxas reais de juros brasileiras e as
observadas em países semelhantes e também os não-semelhantes. Em 2004, por
exemplo, publicou (com Pérsio Arida e Edmar Bacha) um ensaio em que atribuía a
elevada taxa de juros à “incerteza jurisdicional”.
Sem
entrar nos detalhes da tese, a verdade é que esta explicação não foi para a
frente. Andrei
Spacov (com Fernando Gonçalves e Marcio “ Maria
Antonieta” Holland) testou empiricamente a hipótese da incerteza
jurisdicional e concluiu que as taxas de juros no Brasil não guardam
relação com esta variável; por outro lado, encontrou correlações
estatisticamente significativas com a inflação e com a relação dívida-PIB,
sugerindo que fatores monetários e fiscais tradicionais “são mais relevantes
para explicar o nível da taxa de juros de curto prazo do que o binômio
incerteza jurisdicional/inconversibilidade da moeda”.
Mais
recentemente, em 2016, lançou outra tese inovadora, baseado em trabalho de John
Cochrane a partir da equação
de Fisher (que define a taxa real de juros como a diferença entre a
taxa nominal de juros e a inflação, isto é, r = i - p): ao contrário da
sabedoria “convencional”, segundo a qual a elevação da taxa de juros pelo BC
reduziria a inflação, a ação correta por parte da autoridade monetária seria a
redução do juro nominal. Dada a taxa real de juros, a redução da taxa nominal,
pela equação de Fisher faria com que a inflação caísse, pois p = i – r.
À
parte os
comentários de Eduardo Loyo, que explicitam as condições muito
particulares sob as quais a tese de Lara Resende seria válida (caso o BC não
respeitasse a regra tradicional de política monetária), cumpre notar que a evolução da inflação no Brasil
daquele momento em diante desmentiu de forma cabal a ideia de que seria
necessário reduzir a taxa de juros para baixar a inflação. O juro subiu e a
inflação, como sugerido pela “sabedoria convencional”, caiu.
Registre-se como um aparte que, se a tese de Lara Resende fosse verdadeira, seus seguidores
agora deveriam estar clamando pela elevação da Selic, já que a inflação se
encontra abaixo da meta. Na ausência
de tais clamores, se torna difícil evitar a conclusão que, mesmo entre os
apóstolos iniciais de doutrina, ninguém parece muito disposto a defendê-las nas
atuais circunstâncias.
A
tese agora é outra. Baseado no que se convencionou chamar de Teoria Monetária Moderna
(MMT, seu acrônimo em inglês), Lara Resende defende que o BC fixe a taxa
nominal de juros (no caso, a Selic) abaixo da taxa de crescimento do PIB
nominal (ou, de forma equivalente, que a taxa real de juros seja fixada abaixo
da taxa real de crescimento do produto).
Neste
caso, o crescimento da dívida pelo efeito da taxa real de juros seria inferior
ao crescimento do PIB e o governo não precisaria gerar um resultado primário
positivo para impedir que a relação dívida-PIB cresça indefinidamente.
Com
efeito, numa primeira aproximação, o resultado primário necessário (h*)
para estabilizar a relação dívida-PIB (d) seria dado por
h*
≈ (r-g)d
onde
r é, como antes, a taxa real de juros e g a taxa de crescimento real do
produto.
De
fato, quando r > g, o governo precisa gerar um superávit primário; quando,
porém, r < g, até mesmo um déficit primário pode ser consistente com a
estabilização da dívida. Dois exemplos podem ajudar.
Suponhamos
que a dívida seja 80% do PIB e que este último possa crescer a um ritmo
sustentável de 2% ao ano. Caso a taxa real de juros seja 4% ao ano, o superávit
necessário para manter a dívida estável ao redor de 80% seria:
h*
= (4%-2%)*80% = 1,6% do PIB
Caso,
porém, a taxa real de juros seja 1%, o superávit primário requerido para
estabilizar a relação dívida-PIB seria:
h*
= (1%-2%)*80% = -0,8% do PIB
Daí
Lara Resende conclui que “se a taxa de juros for inferior à taxa de
crescimento, a dívida não tem custo fiscal, pois não há necessidade de aumento
de impostos para seu carregamento”. A conclusão, diga-se, não é verdadeira em
geral, pois se o déficit primário observado for superior ao nível crítico (-h>-h*),
tanto a elevação de impostos quanto a
redução de gastos seriam necessárias para estabilizar a dívida, mesmo quando r
< g. Não é este, porém, o ponto principal.
Lara
Resende reconhece que, ao fixar a taxa de juros num nível inferior ao ritmo de
crescimento do PIB, o BC pode perder o controle da demanda, e, portanto, da
inflação. Sua recomendação, no caso, é que se use a política fiscal. Em suas
palavras
“A visão Cartalista da MMT compreende que o
excesso de demanda deve ser necessariamente controlado através da política
fiscal. A política monetária, além de pouco eficiente, como indica o desaparecimento da Curva da Phillips [grifo
meu], quando eleva a taxa de juros acima
do crescimento, tem altos custos fiscais e bem-estar”.
Antes
de entrar na recomendação propriamente dita, cumpre assinalar que o
“desaparecimento da Curva de Phillips”, se real, afeta tanto a política fiscal
quanto a monetária. Concretamente, para uma dada expectativa de inflação, a
curva de Phillips mapeia para cada nível de hiato do produto (a distância entre
o PIB observado e o potencial) determinado nível de inflação.
O
nível do hiato depende, dentre outras variáveis, tanto da política fiscal como
da política monetária. Todavia, se variações do hiato não afetam a inflação (o
tal “desaparecimento” da curva de Phillips), a conclusão inescapável é que
tanto a política monetária quanto a fiscal seriam pouco eficientes; não há
razão para concluir que apenas uma delas, no caso a monetária, teria perdido a
eficácia.
Feita
a correção, o cerne do argumento traz pouco de realmente novo.
A
mera inspeção do modelo utilizado pelo BC brasileiro para projetar a inflação
(e não falo aqui de nada tão sofisticado quanto as versões DGSM, mas sua versão
de pequeno porte), como, por exemplo, descrito pelo Relatório
de Inflação publicado em junho de 2017, revela que a
curva de demanda agregada da economia (a curva IS) “descreve a dinâmica do hiato de produto como função de suas defasagens,
da taxa real de juros ex-ante, de variáveis fiscais e externas e
de variáveis de controle” [grifo meu].
Posto
de outra forma, a modelagem da demanda agregada na abordagem tradicional
reconhece a existência de infinitas combinações entre taxa real de juros e
resultado fiscal que produzem o mesmo nível de hiato do produto. Caso a
política fiscal seja mais apertada, menos será exigido da política monetária e
vice-versa, ou seja, o que Lara Resende propõe como inovação nada mais é do que
a já conhecida troca (trade-off)
entre política monetária e política fiscal. Trata-se uma coisa boa da proposta
de Lara Resende, mas que dificilmente poderia ser classificada como coisa nova.
Nos
termos muito bem colocados pelo Samuel, o atual arranjo atribui à política
monetária a tarefa de controlar a inflação, enquanto a política fiscal lida com
a sustentabilidade da dívida; Lara Resende propõe inverter as atribuições,
dando à política fiscal o encargo de controlar a demanda (portanto a inflação),
enquanto a política monetária ficaria responsável por garantir a solvência da
dívida.
A
este respeito, porém, como assinalado pelo Samuel “[a]
experiência do pós-guerra nos ensinou que a política fiscal é muito lenta, pois
depende essencialmente do tempo da política, enquanto a política monetária tem
a agilidade necessária para manter a inflação controlada”. Complemento
notando que a inflação é tipicamente um problema de curto prazo, enquanto a
(in)sustentabilidade da dívida é um fenômeno que se manifesta ao longo de
vários anos, o que permite resposta mais lentas do que no caso inflacionário.
Caso,
porém, reste alguma dúvida a respeito, basta notar que entre 2015 e 2018 o
déficit primário no Brasil caiu de 1,9% para 1,6% do PIB (o resultado
recorrente, mais relevante para aferir o efeito da política fiscal sobre a
demanda, mostra queda ainda mais lenta, de 2,6% do PIB em 2015/16 para 2,3% do
PIB no ano passado), requerendo, entre outras coisas a aprovação de emenda
constitucional estabelecendo um teto para o gasto público. Neste meio tempo a
Selic subiu de 11,75% aa para 14,25% aa antes de ser reduzida a 6,5% aa, o que
ilustra muito claramente a diferença em termos de capacidade de reação de uma e
outra.
Neste
caso temos uma coisa nova, que, porém, não é boa.
Isto
dito, é curioso que Lara Resende invoque a MMT para embasar algo tão
corriqueiro como a troca entre política monetária e fiscal para fins de
controle da demanda. De fato, como argumenta Paul
Krugman em artigo recente, os defensores da doutrina não aceitam
esta possibilidade.
Krugman
nota que, em condições “normais” (quando a taxa de juros não está sujeita à
restrição de não-negatividade), a visão convencional é exatamente a descrita
acima, ou seja, “desde que a política monetária esteja disponível, há um
intervalo de déficits fiscais consistente com o objetivo [pleno emprego]. A
questão então se torna uma de trocas: as coisas que o governo conseguiria
comprar com um déficit mais elevado valeriam mais do que o investimento privado
perdido devido à taxa de juros mais alta? Frequentemente a resposta será sim.
Mas há uma troca”.
Esta,
porém, não é a visão da MMT, que parece afirmar que há apenas um nível de
déficit consistente com o pleno-emprego, o que só seria verdade quando a política
monetária estivesse constrangida por não conseguir reduzir a taxa de juros (muito)
abaixo de zero.
Em
suma, não há nada de revolucionário, do ponto de vista teórico, nas prescrições
de Lara Resende. Sim, a MMT se desvia consideravelmente da teoria macroeconômica
tradicional, mas sua sugestão não parece amparada na MMT e sim na abordagem que
admite a possibilidade de troca entre a política monetária e a fiscal no que se
refere ao controle da demanda agregada.
Por
outro lado, a mudança de atribuições dos instrumentos de política parece para lá
de problemática. Nossa própria experiência recente revela as dificuldades de
ajuste da política fiscal, o que já é um problema quando enfrentamos a questão
de sustentabilidade da dívida. Concretamente, há certo consenso que, na ausência
de reforma da previdência, o teto de gastos se tornará insustentável ainda
antes de levar à estabilização da dívida. Imagine-se, portanto, se fosse necessário
ajustar a política fiscal para lidar com as vicissitudes do ciclo econômico.
Neste
aspecto não há muito o que discutir: a experiência também mostra que a política
monetária não é apenas mais ágil que a fiscal, como também os resultados mostram
sua eficiência, pois a inflação caiu. O
modelo de médio porte do BC sugere, ademais, que a resposta a uma
elevação de 1 ponto percentual na Selic reduz a inflação em cerca de meio ponto
percentual ao fim de 4 trimestres, enquanto o efeito (negativo) sobre o hiato
de produto tem seu máximo 2 trimestres após a elevação da taxa de juros. Em
contraste, com boa vontade, se espera que a reforma da previdência, apresentada
em fevereiro, seja aprovada no segundo semestre do ano...
É
mesmo muito barulho por nada...
8 comentários:
Acabei de ver em outro lugar: "As Dick Cheney declared, to the horror of beltway centrists: ‘Reagan showed that deficits don’t matter.’"
Bom, nos EUA não, talvez ele tenha pensado, porque depois vêm os democratas e consertam. No Brasil, a Dilma demonstrou que os déficits importam sim.
Esse me parece mais um caso em que discussões teóricas baseadas na esperiência dos EUA e outros países desenvolvidos repercutem aqui, onde as condições são bem diferentes. Lá são comuns inflações muito baixas acompanhadas de certa estagnação econômica, e juro quase zero. A discussão sobre política fiscal é então sobre como ser mais expansionista. E aumentar despesas é muito mais viável politicamente que reduzí-las.
Escaparam uns erros de português:
1) "À parte os comentários de Eduardo Loyo, que explicita [explicitam] (...)";
2) "Registre-se, [sem vírgula] como um aparte que (...)";
3) "tanto a elevação de impostos quanto a redução de gastos seriam necessários [necessárias] para estabilizar a dívida";
4) "Trata-se uma coisa boa da proposta de Lara Resende, mas que dificilmente poderia ser classificado [classificada] como coisa nova."
"Escaparam uns erros de português"
Valeu! Obrigado pela leitura atenta.
Muito barulho por nada...e na hora errada: em 2016 o juro sobe e funciona; agora em 2019 quando se inicia um combate sério ao deficit estrutural.
Caro Alexandre,
Desculpe utilizar este espaço para fazer uma solicitação não relacionada com o artigo acima. Caso você ache que valha a pena, poderia dar seu parecer sobre esse estudo recém publicado e provavelmente furado de um certo Marcelo Manzano de que a reforma da previdência vai gerar meio milhão desempregados por ano?
https://www.revistaforum.com.br/reforma-da-previdencia-de-bolsonaro-vai-gerar-meio-milhao-de-desempregados-por-ano-avalia-economista/
Um ponto que caia o juro, quanto de dólar que foge do Brasil? Quanto de real que fugiria da poupança? Quanto de real que aumentaria de consumo a prazo? Quanto aumentaria de investimento? Quanto de %%% cairia na ponta de quem toma emprestado? Quanto cairia de inadimplência e provisão para ela?
"(...) cumpre assinalar que o “desaparecimento da Curva de Phillips”, se real (...)"
Olha, Alexandre... sei não, hein! Acho que este pessoal está utilizando períodos excessivamente longos para tentar capturar a relação, e acabam falhando em detectar seu achatamento (o que é muito diferente de um suposto "desaparecimento"):
https://www.caixabankresearch.com/sites/default/files/styles/cbr_img_detail/public/documents-10180-1148227-i1502IM_D3_01_ING_fmt.png?itok=R4OAJtf8
Ocorre também que tem gente encontrando uma correspondência muito mais forte ao usar não a tx de desemprego, mas a tx de participação da força de trabalho:
https://www.cfr.org/blog/phillips-curve-dead-long-live-phillips-curve
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