“Despesa corrente é vida: ou você proíbe o povo de nascer, de morrer, de comer, ou de adoecer, ou vai ter despesas correntes”(O Estado de S. Paulo, 9/11/2005). Com estas palavras a então ministra da Casa Civil fulminou o projeto de ajuste fiscal de longo prazo patrocinado pelos Ministros da Fazenda e do Planejamento, gestado por técnicos do IPEA, de saudosa memória.
A proposta não era particularmente agressiva (muito menos “rudimentar”). Sugeria tão-somente limitar o crescimento dos gastos públicos correntes pouco abaixo da expansão do PIB nominal. Como este saiu de R$ 2,37 trilhões em 2006 para R$ 3,67 trilhões em 2010 (ao redor de 11,5% ao ano em média), o programa propunha que os gastos correntes crescessem a uma velocidade menor, de modo a fazer com que seu valor caísse ao ritmo de 0,3% do PIB a cada ano.
Não foi o que observamos. Entre 2006 e 2010 o gasto corrente federal cresceu a um ritmo pouco superior a 12% ao ano, levando a um aumento da sua razão relativamente ao produto, de 16,2% para 16,5% do PIB. Isto pode não parecer muito à primeira vista, mas, como tenho argumentado frequentemente neste espaço, uma política econômica não pode ser analisada pelo que produziu, mas sim face ao que teria ocorrido caso políticas alternativas tivessem sido adotadas.
Imagine, portanto, o que teria ocorrido se o ajuste fiscal de longo prazo tivesse sido posto em prática, contra a opinião da ministra. Neste caso, o gasto corrente teria caído 0,3% do PIB a cada ano, atingindo 15% do PIB no ano passado. Isto é, ao invés dos gastos correntes terem chegado a R$ 608 bilhões em 2010, teriam ficado em R$ 551 bilhões, uma diferença de R$ 56 bilhões apenas no ano passado (R$ 116 bilhões entre 2007 e 2010, medidos a preços de 2010). Ainda assim, corrigido pelo IPCA, o gasto corrente teria se expandido em torno de 4,5% ao ano, mais do que a população, sem impedir, portanto, a expansão da oferta de serviços públicos.
Caso este valor tivesse sido integralmente poupado, levando em consideração o custo observado da dívida doméstica, implicaria uma redução da dívida pública da ordem de R$ 125 bilhões (3,5% do PIB) em comparação aos valores efetivamente observados. E, é bom notar, trata-se, na verdade, de uma estimativa conservadora do ganho, pois supõe que a taxa de juros teria permanecido inalterada, mesmo em face de um ajuste fiscal de magnitude razoável. Provavelmente a taxa de juros teria sido menor, adicionando-se ao efeito de um superávit primário mais alto no sentido de reduzir a dívida.
Alternativamente, os R$ 116 bilhões poupados poderiam ter se transformado em investimento adicional. O investimento federal realizado entre 2007 e 2010, medido a preços do ano passado, acumulou R$ 140 bilhões. Assim, o investimento público poderia ter sido, em média, cerca de 80% maior que o observado, atingindo nos últimos 4 anos 1,9% do PIB contra um valor observado de somente 1% do PIB. Apenas em 2010 o investimento poderia ter atingido 1,5% do PIB acima do que o observado, o que elevaria, conservadoramente, o crescimento potencial da economia ao redor de 0,4% ao ano.
Obviamente, qualquer combinação das alternativas acima também poderia ter ocorrido, já descartando, por absoluto ceticismo, a possibilidade dos recursos poupados serem devolvidos ao setor privado sob a forma de impostos mais baixos. Em qualquer caso teríamos resultados superiores aos observados, tanto em termos de redução de dívida como do desempenho dos investimentos em infraestrutura.
Isto dito, se o controle de gastos correntes “(...) é como cortar as unhas, pois se você não olhar para alguns gastos eles explodem, (...) tem que cortar as unhas sempre” (Valor Econômico, 17/3/2011), é triste que se anuncie a intenção de fazê-lo apenas quando as unhas do governo federal já fazem inveja ao próprio Zé do Caixão.
À meia-noite cortarei suas unhas |
(Publicado 30/Mar/2011)