A pedidos, a análise do artigo de João Sicsú. Como expediente didático, é uma beleza. Como análise econômica é uma coleção única de atrocidades.
P.S. Devo o título do post ao Márcio Garcia.
Inflação de demanda e inflação de juros
João Sicsú
Em 2008, não houve inflação de demanda. Inflação de demanda ocorre quando a capacidade de realizar compras de uma economia é maior que a sua capacidade de produzir o que é desejado. Nessas condições, os empresários elevam os preços diante da impossibilidade de aumentar quantidades ofertadas. Cabe ser observado, contudo, que a identificação de uma situação de inflação de demanda deve ser feita de forma agregada, ou seja, olhando-se o conjunto da economia. Um fato isolado de aumento de preços por aumento de demanda não pode caracterizar uma economia contaminada por inflação de demanda. Aumento de preços em um setor de forma isolada é apenas um sinal de mercado, necessário, que atrai investimentos para aquele nicho.
O que aconteceu recentemente na economia brasileira?
(1) De 2006 a 2008, a taxa de crescimento do investimento foi superior entre 2 e 3 vezes a taxa de crescimento do PIB. Isto significa oferta crescendo mais velozmente que a demanda.
Verdadeiro ou Falso?
Falso, é claro. Já tratei deste assunto aqui (http://maovisivel.blogspot.com/2007/11/tese-tabajara.html), mas vale a pena voltar e explorar em detalhes a afirmação cretina.
Investimento certamente eleva a oferta, mas é também demanda, Aliás, como o investimento (exceto no mundo maravilhoso de Sicsú) requer tempo para se materializar em nova capacidade, ele é demanda antes de ser oferta. De acordo com estimativas que fiz com Cristiano Souza em 2007, pelo menos em termos de nova capacidade industrial, o melhor modelo indicava um prazo de 13 meses entre o investimento e a sua transformação em capacidade produtiva adicional.
Deixemos, porém, de lado um instante a questão nada trivial da defasagem e examinemos com mais cuidado a afirmação acima: investimento crescendo mais rápido que o PIB implica oferta crescendo mais velozmente que a demanda.
Concretamente o investimento em 2006 equivalia a algo como 16,4% do PIB. De lá para cá (período de 4 trimestres terminado em 3T08) o PIB cresceu 11% e o investimento 28%, o que sugere a relação investimento/PIB aumentando (1,28/1,11-1=15%), isto é, de 16,4% para 18,8% do PIB. Vale dizer, o investimento aumentou o equivalente a 2,4% do PIB e a pergunta é: quanto a mais de crescimento potencial resulta de 2,4% a mais de investimento?
Se outras contas que eu e Cristiano Souza fizemos forem corretas, cada ponto a mais de investimento como proporção do PIB gera algo em torno de 0,2% do PIB a mais de crescimento. Isto é, teria havido um ganho da ordem de 0,5% a.a. (levando em consideração a margem de erro isto pode ser um valor entre 0,35% e 0,60% a.a.).
Bom, entre 2006 e 3T08 o crescimento do PIB veio de 4,0% para 6,3%, um aumento de 2,3% a.a., superando largamente qualquer incremento do PIB potencial que pudesse resultar da maior taxa de investimento. Para que 2,4% do PIB a mais de investimento virassem 2,3% a.a. a mais de crescimento potencial seria necessário que cada ponto a mais de investimento se tornasse (imediatamente) um ponto a mais de crescimento potencial. Se isto fosse verdade, o país teria condições de crescer quase 19% a.a. (com uma taxa de investimento de 18,8% do PIB).
Antes que me apontem a diferença entre o retorno marginal e médio do capital (o que interessa é o marginal e no parágrafo anterior usei o médio), noto que um retorno marginal do capital na casa de 100% (necessário para que 1% do PIB a mais de investimento se transforme em 1% a.a. a mais de crescimento potencial), requereria um retorno médio ainda maior, ou seja, poderíamos crescer, de acordo com a peculiar lógica quermesseira, mais de 19% a.a.
(2) A massa salarial como proporção do PIB vinha caindo de forma acentuada nos últimos anos. Cálculos preliminares indicam um estancamento desta queda no ano de 2008. Em outras palavras, a capacidade de compra dos trabalhadores (demanda) relativamente ao que era produzido pela economia (oferta) estava diminuindo.
Verdadeiro ou Falso?
Falso.
Para começar, os dados estão errados (segundo a PME-IBGE [tinha escrito PIM, mas o Martin Deschaps percebeu o erro] a massa de salários aumentou 29% de 2003 para cá, no mesmo período o PIB cresceu 26%). Mas suponhamos que estejam certos. Desde quando demanda só vem da massa salarial? Aliás, se parcela crescente vinha do investimento, qual a relevância da massa salarial?
A lembrar também que o consumo cresceu a taxas superiores ao PIB nos últimos 14 trimestres, de 2T05 a 3T08 (5,8% contra 4,9%). Não bastasse isto, os dados mostram a demanda doméstica cresceu mais rápido que o PIB no mesmo período (6,4% contra 4,9%).
(3) Houve a partir de 2004 um crescimento do crédito como proporção do PIB. A trajetória de crescimento tornou-se mais acentuada a partir de junho de 2007. De 2007 a 2008, o crédito para pessoa física cresceu, como proporção do PIB, de 10% para 12,5%. No mesmo período, o crédito para pessoa jurídica mais o crédito direcionado (BNDES, crédito agrícola etc.) cresceu de 20% do PIB para 25%. Isto significa, grosso modo, que o crédito para o lado da oferta crescia a uma velocidade muito maior que o crédito para o lado da demanda.
Verdadeiro ou Falso?
Falso.
Em primário lugar, de acordo com os valores acima ambas as modalidades cresceram à mesma taxa (25%).
Isto dito, suponhamos que as leis da matemática tenham mudado e o crédito para produção tenha mesmo crescido mais rápido que o crédito para o consumo. Do ponto de vista empírico acabamos de ver que a demanda doméstica, apesar da ginástica sicsuniana cresce mais rápido que o PIB. Também vimos que não basta o investimento crescer mais que o PIB para fechar a diferença entre crescimento do PIB efetivo e potencial. Ou seja, mesmo que os números estivessem certos (e não estão), a conclusão não se segue do argumento.
(4) O nível de utilização da capacidade instalada da indústria (NUCI) atingiu, em 2008, seu nível mais elevado 83,5%. Este foi um sinal positivo e necessário para que novos planos de investimento fossem implementados. Isto não significa, contudo, que a capacidade de produção da indústria estava se esgotando. Cabe ser lembrado que a produtividade do trabalho cresceu aproximadamente 10%, entre 2006 e 2008, uma taxa record. A produção pode ser aumentada quando o NUCI e/ou a produtividade aumentam. O NUCI, analisado isoladamente, não pode explicar absolutamente nada sobre a capacidade de ofertar da indústria.
Verdadeiro ou Falso?
Falso de novo (se fosse o exame do Ipea seria uma barbada, mas teríamos que marcar tudo verdadeiro). A começar porque não há sinais da produtividade do trabalho crescendo a 10%. A produção da indústria de transformação cresceu 6% em 2007 e 4,7% até Nov-08. Pelos dados da CNI as horas trabalhadas na indústria cresceram 3,6% em 2007 e 5,4% em 2008, o que sugeriria um aumento de produtividade da ordem de 2,4% em 2007 e -0,7% em 2008. Segundo a CNI, porém, salários reais médios aumentaram 5,1% em 2007 e 5% em 2008, bem acima do ganho de produtividade, o que implica custos unitários crescentes.
Além disto, não é esquisito que o aumento de utilização seja “um sinal positivo e necessário para que novos planos de investimento fossem implementados”, mas, ao mesmo tempo, não signifique “que a capacidade de produção da indústria estava se esgotando”. Para que estavam investindo mesmo?
Mais importante do que isto, porém, é a afirmação: “o NUCI, analisado isoladamente, não pode explicar absolutamente nada sobre a capacidade de ofertar da indústria.” Aqui precisamos de um investimento pequeno para entender o erro.
Imagine que a produção seja função dos serviços de capital (K, com participação a) e trabalho (L, participação (1-a)), com produtividade B aplicada ao trabalho, isto é:
Y = K^(a) x (BL)^(1-a)
O produto potencial (Y*) seria:
Y* = K*^(a) x (BL)*^(1-a), onde K* e L* são os níveis de pleno emprego de capital e trabalho. Logo a relação entre produto efetivo e potencial (y=Y/Y*) é:
y = k^(a) x (1-u)^(1-a), onde “k” é o NUCI e “u” a taxa de desemprego.
Se a produtividade cresce, é possível que o produto cresça com o NUCI (k) inalterado, pois o produto potencial cresce junto. Se, porém, k está se elevando, é sinal que o aumento da produtividade não é suficiente para evitar uma utilização mais elevada do estoque de capital. Portanto, sim, o NUCI é uma estatística suficiente para descrever a capacidade de oferta da indústria.
(5) O saldo em transações correntes tornou-se negativo em 2008. A conta de transações correntes é composta, grosso modo, de duas grandes partes: saldo comercial com o exterior e remessas de lucros e dividendos. O saldo comercial se reduziu drasticamente, mas continua positivo. Isto significa que a economia brasileira exporta parte do que produz. O que tornou o saldo em transações correntes negativo foi um problema estrutural da economia brasileira: a remessa de lucros para exterior de multinacionais é capaz de ser maior que todo o esforço de exportações da economia. Portanto, não é verdadeira a conclusão de que se gasta tanto que se consome tudo que é produzido aqui e ainda compra-se o que é produzido no exterior.
Verdadeiro ou Falso?
Falso de novo! (Está ficando chato).
Vamos usar os dados de contas nacionais, em particular aquilo que, no secretíssimo site do IBGE (SIDRA), é definido como capacidade de financiamento.
De início, as rendas de propriedade enviadas e recebidas (juros, lucros e dividendos) caíram de valores próximos a 3% do PIB em 2005 para 2,4% do PIB nos quatro trimestres até 3T08. Na verdade, no período 2006-2008 observa-se a menor remessa líquida referente a rendas de propriedade (2,4% do PIB entre 2006-2008 comparado com 3,2% do PIB entre 2000-2005). Qual a mágica? Nenhuma; apenas lembrar que o aumento da remessa de lucros foi compensado pela queda da remessa de juros e pelo aumento do PIB. Em bom português, o tal “problema estrutural” não existe.
Não bastasse isto, é só observar a evolução da despesa doméstica total. Em 2005 era 96,4% do PIB (consumo 60,3%, consumo público 19,9% e investimento 16,2%). Em 2008 99,7% do PIB (consumo 60,8%, consumo público 19,8% e investimento 18,8%). Como contrapartida do aumento da demanda doméstica 3,7% do PIB, as importações líquidas aumentaram 3,3% do PIB (o restante foi financiado pela diminuição da remessa líquida de rendas da propriedade, como já vimos).
Obviamente, foi o aumento do investimento que levou ao crescimento da despesa doméstica, o que não é um desenvolvimento ruim. No entanto, se tivesse sido acompanhado de redução do consumo público, não teria implicado aumento das importações líquidas no mesmo montante, mas Sicsú acredita que o governo deve gastar mais, não menos.
(6) As despesas totais do Governo Federal, como proporção do PIB, têm caído. Em 2006, eram 34,1%, e em 2007, foram 31,5%. Em 2008, as despesas realizadas entre janeiro e novembro totalizaram 25,5%. Sendo assim, o governo tem reduzido a sua demanda em relação à oferta total de bens e serviços da economia.
Verdadeiro ou Falso?
Falso (alguém ainda está surpreso?). Pelo que acabei de mostrar, o consumo público se mantém praticamente inalterado na casa de 20% do PIB. Se, porém, formos usar os dados de gasto consolidado (incluindo transferências a pessoas) que apresentei aqui (http://maovisivel.blogspot.com/2009/01/nanismo-estatal-e-outras-tolices.html), a conclusão é que o gasto público primário teria aumentado de 30,5% do PIB em 2006 para 31,3% em 2007 e, usando os dados parciais da união e estados (sem municípios), teria chegado a 31,6% do PIB em 2008 (na verdade, até 3T08), ou seja, um aumento de 1,1% do PIB.
O que caiu no período foi o gasto com juros nominais: -0,9% do PIB, mas isto curiosamente não se menciona. Se fizer a conta com o juro real, então, a queda é ainda maior: de 5,5% do PIB em 2006 para 0,7% do PIB nos 12 meses até setembro de 2008.
A inflação que houve em 2008 foi causada principalmente por um choque de efeito passageiro do item alimentos. A inflação de 2008 foi de 5,9%. A inflação do item alimentos foi de 11,1% e a inflação de todos os demais itens foi de 4,4%. Resumo da ópera: se os alimentos tivessem se comportado como os demais preços, a variação do IPCA no ano teria sido inferior ao centro da meta perseguida pelo Banco Central, que é 4,5%. Os preços não subiram em 2008 por excesso de demanda, os números comprovam. O que houve, em 2008, foi “inflação” (aumento) de juros causada exclusivamente por excesso de demanda por sua elevação.
Verdadeiro ou Falso?
Falso, é claro. Já explorei este assunto aqui (http://maovisivel.blogspot.com/2008/05/inflao-e-o-p-de-feijo.html), mas volto a ele.
Comecemos pela seguinte afirmação: "a inflação que houve em 2008 foi causada principalmente por um choque de efeito passageiro do item administrados. A inflação de 2008 foi de 5,9%. A inflação do item administrados foi de 3.3% e a inflação de todos os demais itens foi de 7.1%. Resumo da ópera: se os administrados tivessem se comportado como os demais preços, a variação do IPCA no ano teria sido superior ao teto da meta perseguida pelo Banco Central, que é 6,5%." A semelhança é, claro, intencional.
Obviamente, se tirarmos da inflação o que mais sobe, o que sobra é mais baixo. Da mesma forma, se tirarmos da inflação o que menos sobe, o que resta é mais alto. É, em última análise, um exercício cretino.
Uma visão mais isenta levaria procuraria levar ambos em conta usando uma medida de núcleo. O núcleo que retira os efeitos de alimentação e administrados, porém, registrou a bagatela de 6,1% de inflação em 2008, bem acima da meta.
A notar que esta medida no final de 2007 era 4% (3,6% em 2006), acelerando para 6,1% a partir de maio de 2007. Aliás, o IPCA sem alimentação no domicílio também acelerou muito, vindo de 3% em maio de 2007 para 5,1% em 2008. Vale dizer, a inflação de não-alimentos, ainda que inferior à inflação cheia, também veio subindo, mas este fato foi solenemente ignorado.
A “inflação” (aumento) de juros de 2008 não tinha justificativa técnica. Para 2009, há justificativas técnicas evidentes para uma forte “deflação” (redução) dos juros. Crises não são situações para serem enfrentadas com conservadorismo que, neste momento, é sinônimo do cúmulo da moleza: “correr sozinho e chegar em segundo”. Portanto, é hora de “deflacionar” (reduzir) rapidamente os juros para que estes alcancem logo um dígito. Manter juros de dois dígitos em tempo de crise é amar o risco de morrer.
Verdadeiro ou Falso?
Para não perder o costume, falso. Por tudo que foi visto acima, dos sinais claros de excesso de demanda a todos os dados acerca da aceleração da inflação, claro que havia justificativa técnica para a elevação de juros. Obviamente, com base em 7 pressupostos falsos pode-se chegar a uma conclusão falsa, mas um pouquinho de respeito aos números, à análise econômica, e à inteligência do leitor desmonta a tese sem maiores dificuldades. Só não dá para tratar de tanta coisa errada num único artigo com 3500 caracteres de limite.
João Sicsú
Em 2008, não houve inflação de demanda. Inflação de demanda ocorre quando a capacidade de realizar compras de uma economia é maior que a sua capacidade de produzir o que é desejado. Nessas condições, os empresários elevam os preços diante da impossibilidade de aumentar quantidades ofertadas. Cabe ser observado, contudo, que a identificação de uma situação de inflação de demanda deve ser feita de forma agregada, ou seja, olhando-se o conjunto da economia. Um fato isolado de aumento de preços por aumento de demanda não pode caracterizar uma economia contaminada por inflação de demanda. Aumento de preços em um setor de forma isolada é apenas um sinal de mercado, necessário, que atrai investimentos para aquele nicho.
O que aconteceu recentemente na economia brasileira?
(1) De 2006 a 2008, a taxa de crescimento do investimento foi superior entre 2 e 3 vezes a taxa de crescimento do PIB. Isto significa oferta crescendo mais velozmente que a demanda.
Verdadeiro ou Falso?
Falso, é claro. Já tratei deste assunto aqui (http://maovisivel.blogspot.com/2007/11/tese-tabajara.html), mas vale a pena voltar e explorar em detalhes a afirmação cretina.
Investimento certamente eleva a oferta, mas é também demanda, Aliás, como o investimento (exceto no mundo maravilhoso de Sicsú) requer tempo para se materializar em nova capacidade, ele é demanda antes de ser oferta. De acordo com estimativas que fiz com Cristiano Souza em 2007, pelo menos em termos de nova capacidade industrial, o melhor modelo indicava um prazo de 13 meses entre o investimento e a sua transformação em capacidade produtiva adicional.
Deixemos, porém, de lado um instante a questão nada trivial da defasagem e examinemos com mais cuidado a afirmação acima: investimento crescendo mais rápido que o PIB implica oferta crescendo mais velozmente que a demanda.
Concretamente o investimento em 2006 equivalia a algo como 16,4% do PIB. De lá para cá (período de 4 trimestres terminado em 3T08) o PIB cresceu 11% e o investimento 28%, o que sugere a relação investimento/PIB aumentando (1,28/1,11-1=15%), isto é, de 16,4% para 18,8% do PIB. Vale dizer, o investimento aumentou o equivalente a 2,4% do PIB e a pergunta é: quanto a mais de crescimento potencial resulta de 2,4% a mais de investimento?
Se outras contas que eu e Cristiano Souza fizemos forem corretas, cada ponto a mais de investimento como proporção do PIB gera algo em torno de 0,2% do PIB a mais de crescimento. Isto é, teria havido um ganho da ordem de 0,5% a.a. (levando em consideração a margem de erro isto pode ser um valor entre 0,35% e 0,60% a.a.).
Bom, entre 2006 e 3T08 o crescimento do PIB veio de 4,0% para 6,3%, um aumento de 2,3% a.a., superando largamente qualquer incremento do PIB potencial que pudesse resultar da maior taxa de investimento. Para que 2,4% do PIB a mais de investimento virassem 2,3% a.a. a mais de crescimento potencial seria necessário que cada ponto a mais de investimento se tornasse (imediatamente) um ponto a mais de crescimento potencial. Se isto fosse verdade, o país teria condições de crescer quase 19% a.a. (com uma taxa de investimento de 18,8% do PIB).
Antes que me apontem a diferença entre o retorno marginal e médio do capital (o que interessa é o marginal e no parágrafo anterior usei o médio), noto que um retorno marginal do capital na casa de 100% (necessário para que 1% do PIB a mais de investimento se transforme em 1% a.a. a mais de crescimento potencial), requereria um retorno médio ainda maior, ou seja, poderíamos crescer, de acordo com a peculiar lógica quermesseira, mais de 19% a.a.
(2) A massa salarial como proporção do PIB vinha caindo de forma acentuada nos últimos anos. Cálculos preliminares indicam um estancamento desta queda no ano de 2008. Em outras palavras, a capacidade de compra dos trabalhadores (demanda) relativamente ao que era produzido pela economia (oferta) estava diminuindo.
Verdadeiro ou Falso?
Falso.
Para começar, os dados estão errados (segundo a PME-IBGE [tinha escrito PIM, mas o Martin Deschaps percebeu o erro] a massa de salários aumentou 29% de 2003 para cá, no mesmo período o PIB cresceu 26%). Mas suponhamos que estejam certos. Desde quando demanda só vem da massa salarial? Aliás, se parcela crescente vinha do investimento, qual a relevância da massa salarial?
A lembrar também que o consumo cresceu a taxas superiores ao PIB nos últimos 14 trimestres, de 2T05 a 3T08 (5,8% contra 4,9%). Não bastasse isto, os dados mostram a demanda doméstica cresceu mais rápido que o PIB no mesmo período (6,4% contra 4,9%).
(3) Houve a partir de 2004 um crescimento do crédito como proporção do PIB. A trajetória de crescimento tornou-se mais acentuada a partir de junho de 2007. De 2007 a 2008, o crédito para pessoa física cresceu, como proporção do PIB, de 10% para 12,5%. No mesmo período, o crédito para pessoa jurídica mais o crédito direcionado (BNDES, crédito agrícola etc.) cresceu de 20% do PIB para 25%. Isto significa, grosso modo, que o crédito para o lado da oferta crescia a uma velocidade muito maior que o crédito para o lado da demanda.
Verdadeiro ou Falso?
Falso.
Em primário lugar, de acordo com os valores acima ambas as modalidades cresceram à mesma taxa (25%).
Isto dito, suponhamos que as leis da matemática tenham mudado e o crédito para produção tenha mesmo crescido mais rápido que o crédito para o consumo. Do ponto de vista empírico acabamos de ver que a demanda doméstica, apesar da ginástica sicsuniana cresce mais rápido que o PIB. Também vimos que não basta o investimento crescer mais que o PIB para fechar a diferença entre crescimento do PIB efetivo e potencial. Ou seja, mesmo que os números estivessem certos (e não estão), a conclusão não se segue do argumento.
(4) O nível de utilização da capacidade instalada da indústria (NUCI) atingiu, em 2008, seu nível mais elevado 83,5%. Este foi um sinal positivo e necessário para que novos planos de investimento fossem implementados. Isto não significa, contudo, que a capacidade de produção da indústria estava se esgotando. Cabe ser lembrado que a produtividade do trabalho cresceu aproximadamente 10%, entre 2006 e 2008, uma taxa record. A produção pode ser aumentada quando o NUCI e/ou a produtividade aumentam. O NUCI, analisado isoladamente, não pode explicar absolutamente nada sobre a capacidade de ofertar da indústria.
Verdadeiro ou Falso?
Falso de novo (se fosse o exame do Ipea seria uma barbada, mas teríamos que marcar tudo verdadeiro). A começar porque não há sinais da produtividade do trabalho crescendo a 10%. A produção da indústria de transformação cresceu 6% em 2007 e 4,7% até Nov-08. Pelos dados da CNI as horas trabalhadas na indústria cresceram 3,6% em 2007 e 5,4% em 2008, o que sugeriria um aumento de produtividade da ordem de 2,4% em 2007 e -0,7% em 2008. Segundo a CNI, porém, salários reais médios aumentaram 5,1% em 2007 e 5% em 2008, bem acima do ganho de produtividade, o que implica custos unitários crescentes.
Além disto, não é esquisito que o aumento de utilização seja “um sinal positivo e necessário para que novos planos de investimento fossem implementados”, mas, ao mesmo tempo, não signifique “que a capacidade de produção da indústria estava se esgotando”. Para que estavam investindo mesmo?
Mais importante do que isto, porém, é a afirmação: “o NUCI, analisado isoladamente, não pode explicar absolutamente nada sobre a capacidade de ofertar da indústria.” Aqui precisamos de um investimento pequeno para entender o erro.
Imagine que a produção seja função dos serviços de capital (K, com participação a) e trabalho (L, participação (1-a)), com produtividade B aplicada ao trabalho, isto é:
Y = K^(a) x (BL)^(1-a)
O produto potencial (Y*) seria:
Y* = K*^(a) x (BL)*^(1-a), onde K* e L* são os níveis de pleno emprego de capital e trabalho. Logo a relação entre produto efetivo e potencial (y=Y/Y*) é:
y = k^(a) x (1-u)^(1-a), onde “k” é o NUCI e “u” a taxa de desemprego.
Se a produtividade cresce, é possível que o produto cresça com o NUCI (k) inalterado, pois o produto potencial cresce junto. Se, porém, k está se elevando, é sinal que o aumento da produtividade não é suficiente para evitar uma utilização mais elevada do estoque de capital. Portanto, sim, o NUCI é uma estatística suficiente para descrever a capacidade de oferta da indústria.
(5) O saldo em transações correntes tornou-se negativo em 2008. A conta de transações correntes é composta, grosso modo, de duas grandes partes: saldo comercial com o exterior e remessas de lucros e dividendos. O saldo comercial se reduziu drasticamente, mas continua positivo. Isto significa que a economia brasileira exporta parte do que produz. O que tornou o saldo em transações correntes negativo foi um problema estrutural da economia brasileira: a remessa de lucros para exterior de multinacionais é capaz de ser maior que todo o esforço de exportações da economia. Portanto, não é verdadeira a conclusão de que se gasta tanto que se consome tudo que é produzido aqui e ainda compra-se o que é produzido no exterior.
Verdadeiro ou Falso?
Falso de novo! (Está ficando chato).
Vamos usar os dados de contas nacionais, em particular aquilo que, no secretíssimo site do IBGE (SIDRA), é definido como capacidade de financiamento.
De início, as rendas de propriedade enviadas e recebidas (juros, lucros e dividendos) caíram de valores próximos a 3% do PIB em 2005 para 2,4% do PIB nos quatro trimestres até 3T08. Na verdade, no período 2006-2008 observa-se a menor remessa líquida referente a rendas de propriedade (2,4% do PIB entre 2006-2008 comparado com 3,2% do PIB entre 2000-2005). Qual a mágica? Nenhuma; apenas lembrar que o aumento da remessa de lucros foi compensado pela queda da remessa de juros e pelo aumento do PIB. Em bom português, o tal “problema estrutural” não existe.
Não bastasse isto, é só observar a evolução da despesa doméstica total. Em 2005 era 96,4% do PIB (consumo 60,3%, consumo público 19,9% e investimento 16,2%). Em 2008 99,7% do PIB (consumo 60,8%, consumo público 19,8% e investimento 18,8%). Como contrapartida do aumento da demanda doméstica 3,7% do PIB, as importações líquidas aumentaram 3,3% do PIB (o restante foi financiado pela diminuição da remessa líquida de rendas da propriedade, como já vimos).
Obviamente, foi o aumento do investimento que levou ao crescimento da despesa doméstica, o que não é um desenvolvimento ruim. No entanto, se tivesse sido acompanhado de redução do consumo público, não teria implicado aumento das importações líquidas no mesmo montante, mas Sicsú acredita que o governo deve gastar mais, não menos.
(6) As despesas totais do Governo Federal, como proporção do PIB, têm caído. Em 2006, eram 34,1%, e em 2007, foram 31,5%. Em 2008, as despesas realizadas entre janeiro e novembro totalizaram 25,5%. Sendo assim, o governo tem reduzido a sua demanda em relação à oferta total de bens e serviços da economia.
Verdadeiro ou Falso?
Falso (alguém ainda está surpreso?). Pelo que acabei de mostrar, o consumo público se mantém praticamente inalterado na casa de 20% do PIB. Se, porém, formos usar os dados de gasto consolidado (incluindo transferências a pessoas) que apresentei aqui (http://maovisivel.blogspot.com/2009/01/nanismo-estatal-e-outras-tolices.html), a conclusão é que o gasto público primário teria aumentado de 30,5% do PIB em 2006 para 31,3% em 2007 e, usando os dados parciais da união e estados (sem municípios), teria chegado a 31,6% do PIB em 2008 (na verdade, até 3T08), ou seja, um aumento de 1,1% do PIB.
O que caiu no período foi o gasto com juros nominais: -0,9% do PIB, mas isto curiosamente não se menciona. Se fizer a conta com o juro real, então, a queda é ainda maior: de 5,5% do PIB em 2006 para 0,7% do PIB nos 12 meses até setembro de 2008.
A inflação que houve em 2008 foi causada principalmente por um choque de efeito passageiro do item alimentos. A inflação de 2008 foi de 5,9%. A inflação do item alimentos foi de 11,1% e a inflação de todos os demais itens foi de 4,4%. Resumo da ópera: se os alimentos tivessem se comportado como os demais preços, a variação do IPCA no ano teria sido inferior ao centro da meta perseguida pelo Banco Central, que é 4,5%. Os preços não subiram em 2008 por excesso de demanda, os números comprovam. O que houve, em 2008, foi “inflação” (aumento) de juros causada exclusivamente por excesso de demanda por sua elevação.
Verdadeiro ou Falso?
Falso, é claro. Já explorei este assunto aqui (http://maovisivel.blogspot.com/2008/05/inflao-e-o-p-de-feijo.html), mas volto a ele.
Comecemos pela seguinte afirmação: "a inflação que houve em 2008 foi causada principalmente por um choque de efeito passageiro do item administrados. A inflação de 2008 foi de 5,9%. A inflação do item administrados foi de 3.3% e a inflação de todos os demais itens foi de 7.1%. Resumo da ópera: se os administrados tivessem se comportado como os demais preços, a variação do IPCA no ano teria sido superior ao teto da meta perseguida pelo Banco Central, que é 6,5%." A semelhança é, claro, intencional.
Obviamente, se tirarmos da inflação o que mais sobe, o que sobra é mais baixo. Da mesma forma, se tirarmos da inflação o que menos sobe, o que resta é mais alto. É, em última análise, um exercício cretino.
Uma visão mais isenta levaria procuraria levar ambos em conta usando uma medida de núcleo. O núcleo que retira os efeitos de alimentação e administrados, porém, registrou a bagatela de 6,1% de inflação em 2008, bem acima da meta.
A notar que esta medida no final de 2007 era 4% (3,6% em 2006), acelerando para 6,1% a partir de maio de 2007. Aliás, o IPCA sem alimentação no domicílio também acelerou muito, vindo de 3% em maio de 2007 para 5,1% em 2008. Vale dizer, a inflação de não-alimentos, ainda que inferior à inflação cheia, também veio subindo, mas este fato foi solenemente ignorado.
A “inflação” (aumento) de juros de 2008 não tinha justificativa técnica. Para 2009, há justificativas técnicas evidentes para uma forte “deflação” (redução) dos juros. Crises não são situações para serem enfrentadas com conservadorismo que, neste momento, é sinônimo do cúmulo da moleza: “correr sozinho e chegar em segundo”. Portanto, é hora de “deflacionar” (reduzir) rapidamente os juros para que estes alcancem logo um dígito. Manter juros de dois dígitos em tempo de crise é amar o risco de morrer.
Verdadeiro ou Falso?
Para não perder o costume, falso. Por tudo que foi visto acima, dos sinais claros de excesso de demanda a todos os dados acerca da aceleração da inflação, claro que havia justificativa técnica para a elevação de juros. Obviamente, com base em 7 pressupostos falsos pode-se chegar a uma conclusão falsa, mas um pouquinho de respeito aos números, à análise econômica, e à inteligência do leitor desmonta a tese sem maiores dificuldades. Só não dá para tratar de tanta coisa errada num único artigo com 3500 caracteres de limite.
P.S. Devo o título do post ao Márcio Garcia.