Desconfio que meus leitores já tenham percebido que não sou exatamente um fã incondicional da política econômica
adotada nos últimos anos. Os resultados ruins, seja
crescimento baixo, seja inflação
alta, certamente pesam, mas o que realmente me dá nos nervos é o
grau de mistificação, que tem atingido níveis intoleráveis.
Não
me refiro apenas, por exemplo, às tentativas toscas de maquiar os resultados
fiscais. Por mais grave que isto seja, há economistas
independentes
que
se esmeraram em mostrar os diversos artifícios utilizados pelo governo para inflar o superávit primário,
limitando o dano que estas brincadeiras possam ter sobre nossa percepção do problema.
Fico na verdade mais incomodado com as justificativas
apresentadas para ações de política econômicas,
em tamanho desacordo com a realidade que não consigo deixar de imaginar se os inventores de
desculpas não sabem o que se passa, ou sabem e não se importam, ou, pior, não sabem e também não se importam.
Um destes pretextos, invocado depois de
analistas desmascararem os números
fiscais oficiais, é a noção que o governo teria se engajado numa política fiscal anticíclica, isto é,
elevando seus gastos quando a economia perde fôlego e, supostamente, os reduzindo nos momentos de maior
aquecimento.
A divulgação dos dados de contas nacionais na semana passada pelo IBGE
nos dá a oportunidade de verificar se esta afirmação passa pelo crivo implacável do Meritíssimo
Juiz, o Dado.
Convido assim o escasso leitor a contemplar
no gráfico a evolução de duas séries.
Por um lado a demanda doméstica
privada, isto é, a soma do consumo das famílias e da formação bruta de capital fixo (ambas medidas a preços constantes); por outro o consumo do governo, também medido a preços
constantes. Ambas as séries estão expressas em termos de taxas de crescimento, comparando
os últimos quatro trimestres com os quatro
trimestres precedentes.
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Fonte: Autor (com dados do IBGE)
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Caso a política fiscal fosse verdadeiramente anticíclica deveríamos
observar uma relação negativa entre as séries: o consumo do governo deveria aumentar nos períodos de fraqueza da demanda privada e moderar seu
crescimento nos momentos de exuberância.
Por incrível que possa parecer, é precisamente o que acontece, apenas não no período
citado. Como se pode ver, entre 1997 e 2002 a evolução do consumo do governo é quase uma versão espelhada do dispêndio doméstico
privado, o que se expressa numa elevada correlação negativa entre as séries (-0,80). Já no período pós-2002 os dados revelam o fenômeno inverso: o consumo do governo passa a se mover em
linha com a demanda privada e a correlação entre as séries
passa a ser positiva (0,59).
O governo, porém, alega que esta mudança para um padrão
anticíclico ocorreu após a crise internacional, de modo que repetimos as
estimativas para o período 2009-2012, achando um valor ainda mais
alto (0,77), indicação que, a despeito das declarações oficiais, o consumo do governo se tornou ainda mais pró-cíclico
depois de 2009. O mesmo ocorre se limitarmos o período amostral a partir de 2010 (o coeficiente de correlação sobe para 0,79).
Note-se, é verdade, que a partir de meados de 2011 a correlação se torna novamente negativa, mas, com apenas seis
observações, torna-se difícil tirar conclusões mais sólidas
do ponto de vista estatístico.
De maneira, geral, portanto, os dados não corroboram a alegação de que o governo adotou uma política fiscal anticíclica. Ao contrário, ao menos do lado do gasto, observamos uma tendência de exacerbação do ciclo.
As implicações são
diretas e nenhuma é positiva. No que se refere ao controle da
inflação, esta característica da política
fiscal exige mais da política
monetária, em particular nos momentos em que se
torna necessário reduzir a inflação. Concretamente, o BC se vê (ou se veria, caso seguisse um regime de metas para
inflação) obrigado a aumentar ainda mais a taxa de
juros para compensar o efeito do gasto sobre a demanda.
Já no
que diz respeito ao crescimento não há como deixar de notar que o consumo do governo no Brasil
ultrapassou 21% do PIB no ano passado, superando em mais de 3% do PIB o investimento
total no país, um padrão que não se
repete, por exemplo, nos demais países
latino-americanos.
Dado que o PIB tem que somar 100%, não é
necessário nenhum grande salto de imaginação para concluir que o elevado nível do consumo do governo pesa negativamente sobre o
investimento e, portanto, crescimento. É certamente mais fácil culpar a crise externa, mas isto não altera o veredito inexorável dos números.
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Vai encarar
os dados?
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(Publicado 7/Mar/2013)