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quarta-feira, 27 de maio de 2020

A cloroquina monetária

O artigo de André Lara Resende na Folha de S. Paulo deste domingo é um belo exemplar de uma combinação peculiar: a mistura fina de obviedades com conclusões que não derivam delas.

Há um tom sofisticado quando afirma que “a moeda contemporânea, como também a dívida pública, é apenas um registro contábil eletrônico”, ecoando a tese de Yuval Hariri em Sapiens, para quem a capacidade de abstração foi a pedra fundamental para o desenvolvimento humano como o conhecemos. Inteligente, sem dúvida, ainda que irrelevante para sua tese, a saber, que o governo brasileiro pode partir sem medo para o financiamento monetário de seus déficits, sem o menor risco de inflação à frente.

A começar pela confusão em torno das operações compromissadas. Como se sabe (ou deveríamos saber), tais operações são vendas (ou compras) de títulos públicos (registros contábeis no Selic – Sistema Especial de Liquidação e Custódia) com compromisso de recompra (ou revenda), usadas pelo BC para garantir que a taxa a que os bancos trocam reservas bancárias no Selic (a taxa Selic!) fique próxima àquela definida como meta pelo Copom a cada reunião.

Se há excesso de reservas bancárias, a taxa Selic tende a ficar abaixo da meta; se há falta, acima dela. No caso brasileiro, há muitos anos, as reservas bancárias são excessivas, o que requer do BC a venda (com compromisso de recompra) de títulos. Bancos tornam-se detentores (temporários) de papéis do Tesouro; em contrapartida, há redução de reservas bancárias, o principal componente da base monetária.

Para Lara Resende, porém, afirma que as compromissadas “nada mais são do que emissão de reservas, base monetária, para o sistema bancário”, precisamente o oposto da realidade. Para um artigo que se propõe a superar equívocos, nada como começar com um deles.

Aproveitando o gancho, propõe que, ao invés de controlar a liquidez e, portanto, taxas de juros por meio das compromissadas, passe a um sistema de “reservas remuneradas”, isto é, como alternativa à venda de títulos do Tesouro, o BC permita que bancos depositem no Banco Central, com remuneração pela taxa Selic, seu excesso de reservas bancárias. Isto faria, segundo ele, desaparecer 40% da dívida pública, que cairia de 75% para 45% do PIB.

Para entender a mágica, é preciso dar um passo atrás. No Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países, o Banco Central é como que “consolidado” dentro do governo geral. Como o Tesouro é seu único acionista, os títulos emitidos pelo Tesouro para o BC não são contabilizados na dívida bruta, já que o Tesouro deve para si mesmo. Por outro lado, os títulos usados nas compromissadas, que estão fora do balanço do BC (portanto fora do balanço “consolidado” do governo geral) são contabilizados na dívida.

Se, argumenta Lara Resende, o BC passasse a usar depósitos remunerados no lugar de compromissadas, estas sumiriam das estatísticas e, voilá, a dívida deixaria de ser um problema, exceto pelo fato de continuar a sê-lo.

De uma forma (compromissada), ou de outra (depósitos remunerados), o BC seguiria pagando juros aos detentores de títulos ou depósitos. Para quem argumenta tão eloquentemente sobre a similaridade intrínseca a ativos que nada mais são que registros eletrônicos contábeis, Lara Resende parece não ver que essas modalidades são rigorosamente a mesma coisa. Chamá-las por nomes diferentes não muda esta simples verdade, nem faz 40% da dívida bruta se desfazer no ar.

Nos demais países, como os bancos centrais tipicamente não são consolidados com o Tesouro, não se faz esta distinção: a dívida já contabiliza títulos em poder dos bancos centrais e também não é necessário incluir depósitos remunerados.

Caso seguíssemos o critério da maioria dos países (que, diga-se, era o que fazíamos até 2007), nossa dívida já estaria próxima a 90% do PIB, como ilustrado abaixo. Todavia, como sempre ressalto, mais importante do que o nível da dívida é sua trajetória e nesse sentido o gráfico é claro: independente-mente da metodologia adotada, o crescimento da dívida relativamente ao PIB tem sido extraordina-riamente rápido e será ainda mais veloz no futuro próximo. Nenhuma mágica contábil há de mudar este fato.


Fonte: BCB

O que nos leva a outro argumento de Lara Resende, qual seja, que a dívida do governo brasileiro não é um problema. Para não haver dúvidas cito:

“Quando a dívida é interna e denominada em moeda nacional, como é o caso da dívida brasileira hoje, o problema não existe. O serviço da dívida interna denominada na moeda nacional não exige transferência de recursos para o exterior.

O Estado deve para os seus próprios cidadãos. É uma dívida de brasileiros com brasileiros, ou de ‘Zé com Zé’, para usar um velho jargão do mercado financeiro. O Estado pode sempre refinanciar a dívida e emitir, se necessário, para cobrir o seu serviço.”

Se a dívida não fosse um problema, apenas uma operação “Zé com Zé”, o corolário disso seria que um eventual calote não deveria gerar qualquer impacto real sobre a economia: “Zé”, que devia para “Zé”, simplesmente não se pagaria: o ganho de um “Zé” é a perda de um “Zé” e o efeito líquido seria zero.

Bom, aproveitando a efeméride (30 anos) e o recente pedido de desculpas do ex-presidente Fernando Collor, basta lembrar do efeito da calote promovido pelo Plano Collor em 1990: uma das três maiores recessões da história recente do país (ainda sem contar a atual). O PIB caiu, de pico para vale, 8,6% (um pouco mais do que na recessão 2014-16, 8,2%), ao longo de 11 trimestres (o mesmo que em 2014-16) e precisou de 7 trimestres para recuperar o nível pré-crise (mais rápido que em 2014-16).

Se alguém acredita que a dívida não é um problema, porque devemos para nós mesmos, deve também arrumar um jeito de explicar porque não seu não pagamento teve efeitos tão severos num passado não tão distante.

A dívida é uma máquina do tempo: permite anteciparmos consumo de amanhã para hoje, mas alguém terá que pagar pelo consumo de amanhã. Nossos “eus” futuros, nossos filhos, netos, etc., terão em algum grau que consumir menos no futuro para compensar o tanto que foi consumido agora.

Ah, mas podemos pagar a dívida com moeda, que, conforme notado no início, é também uma ficção contábil, não muito distinta da dívida. A prova disso seria a experiência mundial com QE (afrouxamento quantitativo), quando BCs em vários países compraram títulos públicos, ampliando em muito a base monetária sem efeitos inflacionários.

O que Lara Resende não conta, porém, é que BCs só se engajaram no QE quando não foi mais possível reduzir a taxa de juros de curto prazo. De fato, como moeda tem rendimento zero, ao menos numa primeira aproximação não seria possível trazer a remuneração dos títulos de curto prazo abaixo de zero. Sabemos agora que isso não é exatamente verdade por força de regulações e custos de se manter moeda corrente, mas, ainda assim, se não precisamente zero, sabemos haver limitações para reduzir a taxa de juros abaixo de algum patamar não muito distante dele.

O mecanismo de expansão quantitativa permite aos BCs atuar sobre outras taxas de juros além daquela de curto prazo. Trata-se de extensão da forma de atuação descrita acima, mas além do mercado de reservas bancárias. Um estudo do time econômico da Goldman Sachs em 2010 (“QE2: How Much is Needed?”) sugere que cada US$ 1 trilhão de expansão quantitativa corresponda a um corte de 1% da taxa básica de juros.

BCs calibram sua resposta de política monetária para manter a inflação na meta: caso esteja acima, elevam a taxa de juros; se abaixo, a reduzem. Nenhum economista que conheça esta dinâmica diria, de olhos arregalados, “o BC reduziu a taxa de juros e a inflação caiu!”, mas sim “o BC reduziu a taxa de juros porque espera que a inflação vá ficar abaixo da meta”. Por essa mesma ótica, a expansão quantitativa não causa inflação porque se trata de resposta à baixa inflação, similar a por o pé mais fundo no acelerador quanto o carro sobe a ladeira para manter a mesma velocidade.

No caso do Brasil, não chegamos lá, ao menos não ainda. Com argumentei semana passada, parece haver espaço adicional para a redução de juro (além do que o BC sugere, mas não voltarei a essa questão), que, todavia, permanece acima de zero. Recorrer, portanto, à expansão quantitativa agora implicaria permitir que a Selic ficasse abaixo do nível consistente com a inflação na meta em seu horizonte relevante ou seja, seria sim inflacionário.

Alquimistas buscavam a pedra filosofal, substância capaz de transformar metais ordinários em ouro ou prata, que se tornou assim um símbolo de soluções mágicas para problemas difíceis.

Vivemos hoje busca semelhante por uma “bala de prata” contra a pandemia, que muitos, de Nicolas Maduro a Jair Bolsonaro, passando por Donald Trump (e outros de calibre similar), acreditam ser a cloroquina.


Lara Resende se coloca nessa nobre companhia, na sua busca alquímica pela cloroquina monetária (agradecimentos especiais a Rodrigo Azevedo pela sugestão da analogia e do título do artigo).

(Publicado 20/Mai/2020)



terça-feira, 19 de maio de 2020

Há um limite para a Selic?


A inflação futura segue em queda, requerendo afrouxamento monetário adicional, afinal reconhecido pelo BC na semana passada. Nosso modelo sugere que o efeito do juro doméstico sobre o dólar é modesto, sua valorização resultado do maior risco-país. Haveria espaço para novos cortes da Selic, mas o BC parece temeroso a este respeito.

Se a decisão do Copom, corte de 0,75% da taxa Selic, foi surpreendente, sua comunicação foi provavelmente mais. Havia, de fato, certa discussão acerca do tamanho do corte, entre 0,50% e 0,75% (desta vez estava do lado certo!), mas não se esperava que, além do movimento em si, o BC fosse se comprometer com mais uma redução no mês que vem, o que gerou ruído adicional entre os analistas.

A origem do debate se encontra, acredito, na comunicação que se seguiu à decisão anterior (corte de 0,50% em março; eu esperava 0,75%!). Muito embora a redução estivesse dentro dos resultados possíveis, a linguagem do BC havia sido bastante conservadora.

Em primeiro lugar, o comitê deixou claro que via “como adequada a manutenção da taxa Selic em seu novo patamar”. Adicionalmente, enfatizou que, dados os riscos que corria o processo reformista, “relaxamentos monetários adicionais podem tornar-se contraproducentes se resultarem em aperto nas condições financeiras”, ou, em português, que a redução da taxa de juros de curto prazo, a Selic, poderia implicar elevação das taxas de juros mais longas, com efeitos negativos sobre a demanda e, portanto, a recuperação da economia (ok, ainda não chegamos exatamente ao português, mas espero ter deixado o argumento um pouco mais claro).

De qualquer forma, a imagem que emergiu em março era de um BC que não parecia suficientemente assustado com o impacto da pandemia sobre a economia, optando não apenas por corte mais modesto da taxa básica, mas também se mostrando conservador quanto aos passos futuros. Não é por outro motivo que muita gente se surpreendeu com o movimento mais agressivo na reunião da semana passada.

Note-se, inclusive, que dois dos membros do Copom preferiam que o BC usasse sua munição agora, posição que – se não convenceu a maioria do comitê – parece ter desempenhado papel importante na sinalização sobre novos cortes em junho.

A verdade é que as expectativas quanto à inflação vêm em queda, não só as de analistas que contribuem para a pesquisa semanal do BC (o Focus), mas, crucialmente, as próprias projeções do Copom. A mediana dos consultados aponta para inflação abaixo de 2% em 2020 (1,76% segundo o Focus mais recente, 1,97% quando o Copom tomou a decisão), contra meta de 4%, enquanto para 2021 aponta 3,25%, também inferior à meta (3,75%).

As projeções do BC são um pouco mais altas (2,3-2,4% em 2020; 3,2-3,4% em 2021), mas, em ambos os casos, abaixo da meta, inclusive em cenários que já contemplavam redução da Selic para         2,75% ao ano em junho e sua manutenção neste patamar até o início do ano que vem. Ressalte-se, aliás, que as projeções para 2021 embutem elevação de 40% no preço do petróleo, que pode, ou não, se materializar.

A primeira constatação, pois, é que, face a esses números, caberia mesmo ao BC promover redução mais intensa da taxa Selic.

Há, também é importante reconhecer, preocupação por parte dos analistas com a trajetória do dólar. Em março, para balizar suas projeções, o BC partiu de R$ 4,75/US$ (a cotação média da semana anterior à reunião); em maio, pelo mesmo critério, trabalhou com o dólar a R$ 5,55, 17% mais caro.

Mesmo assim, reforço, houve queda das projeções de inflação, apesar do possível repasse para preços domésticos do impacto do dólar em produtos importáveis e exportáveis, seja porque o repasse esperado seria menor que o habitual, seja porque os demais preços, notadamente serviços, se desaceleraram ainda mais.

Os números de curto prazo da inflação, não necessariamente os mais adequados para entender esses fenômenos (embora os únicos disponíveis), sugerem que ambos os processos podem estar em curso. Tanto a inflação de bens comercializáveis externamente quanto a inflação de serviços se reduziram nos últimos meses, em linha com a inflação “cheia”, bem como seus “núcleos” (medidas menos sujeitas a influências pontuais e temporárias), o que certamente colabora em algum grau para a postura mais agressiva do BC.

Isso dito, há o receio que a redução da taxa de juros possa levar à valorização adicional do dólar. De fato, segundo a Ata do Copom, o próprio BC parece temer este efeito. Aqui divirjo: apesar de indicações que, de fato, uma redução da diferença entre o juro local e o juro americano aja neste sentido, os movimentos da moeda parecem depender bem mais de outras forças.


Fonte: Autor com dados do BC, Bloomberg, FRED e CRB


Como sugerido pelo gráfico acima, construído com base em um modelo simples, o principal determinante do comportamento recente da moeda parece ser o risco-país, medido pelo CDS de 5 anos (o custo do seguro contra um calote nacional), que saltou de cerca de 1% ao ano no começo de 2020 para mais de 3% ao ano em março e abril.

Além disso, houve também valorização global do dólar, conforme captada pelo índice que mede a força da moeda americana relativamente a seus congêneres (euro, iene, libra, etc.), da ordem de 6-7% desde o início do ano, com repercussões sobre o preço do dólar face ao real.

Por fim, os preços de commodities (medidos pelo índice CRB) caíram quase 13% de janeiro para abril, na esteira da recessão global, fenômeno que também. Já a diferença de juros (para o horizonte de um ano) aumentou, dado que o juro americano despencou no período.

Assim, de acordo com nosso modelo (com todas suas imperfeições) o comportamento da moeda reagiu mais às forças não controladas pelo BC do que ao diferencial de juros. Obviamente a redução agora do diferencial pode ter algum impacto, mas, ao que tudo indica, modesto perto do resultante dos demais fatores.

Assim, se o repasse do dólar aos preços domésticos aparenta ser menor que no passado e se o efeito do juro interno sobre o dólar também parece ser relativamente pequeno, seu peso sobre a decisão de taxa de juros tende a ser bem menor que no passado.

Todavia, o BC não parece disposto a reduzir a Selic abaixo de 2,25%, o nível a ser atingido caso se repita em junho o mesmo corte agora verificado, aparentemente por receio que a redução além desse nível gere instabilidade financeira e cambial. Tal postura pode gerar um problema, caso a projeção de inflação para 2021 siga em queda, visto que o norte para a política monetária sob o atual regime é a inflação, não a taxa de câmbio. Caso tente servir a dois senhores, acabará não servindo a nenhum.

A incerteza acerca do comportamento da inflação deveria ser suficiente para impedir o BC de fazer promessas que não pode cumprir.




(Publicado 13/Mai/2020)

terça-feira, 12 de maio de 2020

E daí?


E se a dívida sair de controle? O resultado mais provável será o retorno da inflação elevada em conjunto com repressão financeira.

Hoje quero aproveitar “ganchos” de dois ótimos artigos publicados nos últimos dias, juntamente com a conclusão a que cheguei na coluna da semana passada, a saber, que o teto de gastos, na ausência de reformas profundas e rápidas (cuja chance é mínima), se tornará insustentável num horizonte de poucos anos, talvez já em 2022.

O primeiro é o excelente texto de Persio Arida na Folha de São Paulo (Estabilizar dívida a longo prazo importa mais que conter seu aumento na pandemia), que reforça o nunca suficientemente enfatizado ponto que o fundamental é gerar uma trajetória de endividamento que não seja explosiva. Posto de outra forma, o crucial é garantir que a dívida, mesmo alta, não cresça indefinidamente a uma velocidade superior à do produto.

Como a capacidade de pagamento do governo está de alguma forma ligada à renda, por meio da arrecadação de impostos, uma dívida que cresça mais rapidamente do que o PIB por um período longo implica risco crescente de que não seja paga, ao menos não nas condições em que foi originalmente contratada.

Vimos este fenômeno ocorrendo em tempo real na Grécia e na Argentina, para não ter que recuar mais que uns poucos anos no tempo. Interessados podem encontrar um catálogo com todos os calotes de dívida pública, sob diferentes formatos, no essencial This Time is Different, de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff (que aprendeu tudo sobre crises econômicas com uma economista brasileira!), cobrindo nada menos do que 8 séculos de totós mais ou menos explícitos em dívidas soberanas.

É bem verdade que a maior parte desses eventos se verificou em cenário em que o grosso de endividamento era “externo”, muitas vezes em ambos os sentidos da palavra: eram dívidas contratadas em jurisdições estrangeiras, denominadas em moeda internacional, e os credores eram, em sua maioria, não residentes.

Já a dívida pública no Brasil é denominada majoritariamente em moeda nacional e detida também por brasileiros. No caso, para quem ainda crê nas lorotas de Ciro Gomes e assemelhados, os números do Tesouro Nacional mostram que os bancos detêm algo como 22% da dívida, enquanto fundos de investimento (seu fundo DI, caro leitor) têm 25% dela, mesma proporção que fundos de pensão, enquanto não-residentes detinham cerca de metade disso (12,5%), ficando os 15% restantes nas mãos de órgãos do próprio governo, seguradoras e demais investidores (por exemplo, o Tesouro Direto).

Há quem acredite que, já que devemos para nós mesmos e numa moeda que controlamos, não deveríamos nos preocupar com a dívida, porque jamais chegaríamos à situação de não ter como pagá-la. Há também quem, como a Rainha Vermelha, acredite em seis coisas impossíveis antes do café da manhã, então isso não deveria nos espantar.

De qualquer forma, Reinhart e Roggof (capítulo 7) documentam também algumas dezenas de episódios envolvendo dívidas doméstica, incluindo, para orgulho nacional, o Plano Collor em 1990, que curiosamente fica esquecido nesse debate.

Há, é claro, a possibilidade de “monetização” da dívida, isto é, da criação de reservas bancárias por meio do BC para pagamento tanto do seu serviço quando do principal, possibilidade defendida pelos discípulos da Rainha Vermelha em texto recente, devidamente rebatido por Samuel Pessoa, o segundo dos artigos em que me apoio (Imprimir dinheiro contra a crise?) e também por Ilan Goldfajn.

Como lembrado pelo Samuel, mesmo se resolvida a restrição legal ao financiamento do Tesouro Nacional pelo BC, esta “estratégia” implicaria o abandono do regime de metas para a inflação. A bem da verdade, implicaria o abandono de qualquer âncora nominal para o nível de preços, que se tornaria indeterminado.

A âncora, no caso do regime de metas, é a regra de política monetária, que, muito simplificadamente, envolve elevação mais que proporcional da taxa de juros em resposta ao aumento da inflação esperada e vice-versa. É possível demonstrar que qualquer regra que obedece a este princípio (conhecido como Princípio de Taylor) tem a propriedade de estabilizar a inflação; já sua violação implica perder o controle inflacionário.

O que poderia, portanto, ocorrer caso a dívida, denominada em moeda nacional e detida principalmente por residentes, continuasse a crescer mais rápido do que o PIB, sem indicações de reformas que possam estabilizá-la em horizonte razoável?

Dado que o crescimento da dívida relativamente ao PIB depende da diferença entre a taxa de juros e o crescimento nominal do PIB (ou seja, o crescimento real do produto acrescido da inflação), uma alternativa seria fixar a taxa de juros abaixo da inflação, ou seja, uma taxa real de juros negativa, presumivelmente negativa o suficiente para compensar a existência de déficits primários que continuariam requerendo a emissão de dívida nova.

Obviamente isto requereria, além de considerável encurtamento do prazo e duração da dívida (por meio de LFTs),  também algum grau de repressão financeira para forçar goela abaixo de poupadores rendimentos inferiores à inflação (seria mais vantajoso gastar o dinheiro ou comprar bens reais, como imóveis, para se proteger da alta de preços). Todavia, mesmo sob repressão financeira, caso a taxa de juros não seja congruente com a manutenção da inflação na meta, o que só ocorreria por coincidência mais que improvável, esta última sairia de controle.

Colocado de outra forma, a estabilização da dívida e seu eventual encolhimento relativamente ao PIB se daria pela corrosão de seu valor mediante inflação elevada, não reposta pela remuneração dos títulos públicos.

Fonte: Autor, a partir das projeções da LDO

As projeções de endividamento público que emergem do cenário explorado na minha coluna da semana passada (algumas das quais estão resumidas no gráfico acima) apontam para evolução preocupante da dívida. A estabilização ali aventada (apenas a partir de meados da próxima década!) decorre da suposição de manutenção do teto de gastos públicos, que, por sua vez, depende da capacidade de reformar rapidamente a estrutura de gastos no país.

Face à incapacidade de promover reformas profundas e rápidas, estamos nos encaminhando para uma “solução” inflacionária de nosso endividamento. A tinta em que este destino está escrito ainda não secou completamente, mas falta pouco para que esteja definitivamente selado.

E nem precisamos da Rainha Vermelha para acreditar nisso...



(Publicado 6/Maio/2020)

segunda-feira, 4 de maio de 2020

O capitão em seu labirinto


O projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias escancara as dificuldades fiscais do país. Mesmo que fosse cumprido o teto de gastos, à custa de compressão impossível da despesa discricionária, não reverteremos o aumento da dívida até 2027-30. A prioridade do governo é sobrevivência, não reforma, receita para problemas sérios à frente.

Em meio a mais uma severa (e gratuita!) crise política, acredito que poucos devem ter prestado atenção ao projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) divulgado semanas atrás. Apesar disso, por mais árida que possa parecer sua leitura, as projeções fiscais da LDO, mais do que interessantes, são reveladoras.

Há um ano imaginava-se possível voltar ao azul em 2023; na atual versão não há a menor chance que isso possa ocorrer. Completaremos uma década sem resultados primários positivos.

Ainda assim, os números da LDO me parecem otimistas, em boa parte porque a previsão para o PIB de 2020 (bem como os números fiscais para o ano) foi baseada no desempenho da economia até fevereiro, longe de brilhante, mas infinitamente superior ao que deve ser registrado de março em diante.

Na tabela abaixo adapto as projeções da LDO à minha visão da evolução da atividade (e preços) em 2020, com todas as incertezas cabíveis. O desempenho das despesas, baseado no respeito ao teto de gastos e evolução do dispêndio obrigatório é o mesmo da LDO de 2021 em diante; as principais diferenças são a incorporação dos gastos mais elevados em 2020 (dados da Secretaria de Política Econômica) e o comportamento da arrecadação de 2020 a 2023 à luz de um PIB bem menor.

Orçamento federal

2020
2021
2022
2023

R$ billion
% PIB
R$ billion
% PIB
R$ billion
% PIB
R$ billion
% PIB
Receita primária total
1.508,2
21,2
1.566,6
20,7
1.657,0
20,7
1.765,2
20,7
  Receita administrada pela RFB
923,9
13,0
968,7
12,8
1.032,0
12,9
1.100,5
12,9
  Arrecadação líquida para o RGPS
407,1
5,7
427,1
5,6
447,6
5,6
476,8
5,6
  Receita não-administrada pela RFB
177,2
2,5
170,8
2,3
177,4
2,2
187,8
2,2
Transferências por repartição de receita
357,2
5,0
291,2
3,8
315,1
3,9
338,5
4,0
Receita primária líquida
1.151,1
16,2
1.275,4
16,8
1.341,9
16,7
1.426,7
16,8
Despesa primária total
1.700,1
23,9
1.530,1
20,2
1.594,7
19,9
1.654,2
19,4
  Benefícios previdenciários
677,7
9,5
711,2
9,4
755,1
9,4
797,8
9,4
  Pessoal e encargos sociais
325,7
4,6
337,6
4,5
358,0
4,5
371,6
4,4
  Outras despesas obrigatórias
217,1
3,0
228,4
3,0
240,6
3,0
255,3
3,0
  Despesas do Executivo sujeitas à programação financeira
479,6
6,7
252,9
3,3
240,9
3,0
229,5
2,7
    Obrigatórias com controle de fluxo
145,4
2,0
149,8
2,0
155,5
1,9
160,6
1,9
    Discricionárias
334,3
4,7
103,1
1,4
85,5
1,1
68,9
0,8
Resultado primário
-549,1
-7,7
-254,7
-3,4
-252,8
-3,2
-227,5
-2,7
  Tesouro Nacional
-278,5
-3,9
29,4
0,4
54,8
0,7
93,6
1,1
  Previdência Social
-270,6
-3,8
-284,2
-3,7
-307,6
-3,8
-321,0
-3,8
Fonte: Auto, a partir das projeções da LDO

O déficit primário em 2020 deve atingir quase R$ 550 bilhões (7,7% do PIB), dos quais R$ 300 bilhões resultam do conjunto de medidas de combate à crise, principalmente a rede de proteção social ampliada nas últimas semanas. Todavia, mesmo supondo que tais medidas sejam revertidas em 2021, observa-se a persistência de déficits primários elevados. Enquanto na versão oficial da LDO o déficit em 2023 alcançaria 0,9% do PIB, pelas minhas projeções esse número pode atingir 2,7% do PIB.

Note-se a propósito que, para fazer o gasto total “caber” no teto, dado o crescimento persistente da despesa obrigatória, o dispêndio discricionário – que inclui o investimento público – é comprimido sem dó nem piedade, caindo a menos de R$ 70 bilhões em 2023, contra uma previsão de R$ 103 bilhões no ano que vem (em 2020 o número está inflado pelos programa contra a crise), provavelmente insuficiente para manter o governo operacional e a infraestrutura pública em condições mínimas.

Ainda assim, a dívida bruta deve saltar para quase 90% do PIB em 2020 e atingir 95% do PIB em 2023 caso as hipóteses da LDO se materializem. Essa relação, que esperávamos se estabilizar por volta de 2022-24, seguirá em alta até a segunda metade da década de 20. Medidas pontuais, como venda de reservas, privatizações e concessões podem desacelerar o ritmo de crescimento, mas são insuficientes para reverter sua dinâmica, apesar do juro mais baixo nos próximos anos, mesmo supondo que o teto de gastos permaneça até lá.

Deve ficar claro, contudo, que – na ausência de reformas que consigam conter a expansão persistente das despesas obrigatórias – o teto de tornará insustentável. Quando a administração de plantão tiver que optar entre manter o governo funcionando e o controle de gasto não resta muita dúvida sobre quem será sacrificado.

Isso dito, as chances de avanços no lado da reforma fiscal, que já não eram altas, ficaram menores com a crise sanitária e, para fins práticos, inexistentes à luz dos desenvolvimentos das últimas semanas, marcadas por intensos torneios de tiro ao pé, todos vencidos, com mérito, pelo presidente. Resta pouca dúvida que sua prioridade daqui para frente será a manutenção do poder, não a reforma.

Qualquer capital político que lhe reste deverá ser usado para aquele fim, não para levar adiante medidas impopulares, pelas quais já não nutria qualquer apreço bem antes do começo da crise, demonstrado pelo tanto de quintas-feiras anunciadas como a “data final” do envio da reforma administrativa.

O presidente pode “prestigiar” o quanto quiser o ministro da Economia; sua (falta de) vontade e de condições para fazer avançar qualquer pauta de reformas no Congresso são determinantes de um futuro para lá de complicado num horizonte cada vez mais próximo.




(Publicado 29/Abril/2020)