“Hipocrisia”, dizia
Oscar Wilde François de La Rochefoucauld (*), “é a homenagem que o vício presta à virtude”. E, se não lhe faltam
homenagens no pacote de medidas para auxiliar o setor elétrico, a verdade é que
a virtude propriamente dita não compareceu ao tributo.
É claro, pela
formulação do pacote, que o governo não gostaria de ver inflação mais alta, nem
de registrar deterioração adicional em suas contas fiscais, dois objetivos sem
dúvida virtuosos. O problema, como de hábito, é que, por trás da aparente retidão,
as medidas adotadas somente disfarçam os problemas (ou os empurram com a
barriga), sem atacar nenhum de suas causas.
A redução a fórceps das
tarifas de energia em 2013 e a seca deste ano produziram uma situação delicada
no setor elétrico. Como as empresas distribuidoras de energia não conseguiram
contratar 100% de suas necessidades no ano passado por conta da truculência
governamental no trato com as geradoras, precisam agora comprar energia termoelétrica,
mais cara, no mercado à vista, pois a seca não permite o pleno funcionamento das
hidroelétricas.
Têm, assim, comprado
energia por preço mais alto do que são autorizadas a vendê-la, replicando, em
certa medida, a mesma situação pela qual passa a Petrobrás. Não há, porém,
milagre de gestão que faça uma empresa, em qualquer ramo, ganhar dinheiro
vendendo seu produto por um valor menor que custam seus insumos e as
distribuidoras não são exceção à regra.
Note-se que esta
situação já ocorria desde o ano passado, quando os níveis dos reservatórios
ainda se encontravam em condição razoável. A seca agravou o problema, mas está
longe de ser a única causa. Tanto é que já em 2013 o governo foi obrigado a
desembolsar R$ 8 bilhões para ressarcir as empresas (outros R$ 4 bilhões vieram
de fundos de reserva do setor, agora devidamente esvaziados).
Este aumento de custos precisaria
ser repassado ao consumidor. Por menos que gostemos de pagar mais caro por
alguma coisa, o funcionamento de qualquer mercado minimamente eficiente requer
que preços reflitam custos (tanto quando sobem como quando caem) e isto também
vale, aliás, crucialmente, no que se refere à energia.
Caso tivéssemos a
inflação (e principalmente suas expectativas) sob controle, esta reação levaria
a uma aceleração provavelmente temporária, que poderia ser absorvida pelo
intervalo de dois pontos percentuais ao redor da meta. Como, porém, desafiando
as melhores práticas, permitiu-se que o intervalo fosse usado para acomodar uma
taxa de inflação persistentemente mais elevada, não há espaço para qualquer
aumento de preços este ano.
Há também, sem dúvida, receios
quanto aos danos políticos que poderiam resultar da elevação de tarifas num ano
eleitoral, também presentes na decisão de não reajustar adequadamente os preços
de combustíveis.
Assim o governo acena
com aumentos apenas em 2015, sendo, pois forçado a auxiliar financeiramente as
empresas já em 2014. No entanto, para evitar mostrar o dano em suas contas,
decidiu aportar apenas R$ 4 bilhões (além dos R$ 9 bilhões já no orçamento)
para este fim. Estima-se que R$ 8 bilhões adicionais seriam necessários, mas
estes recursos seriam tomados pela Câmara de Comercialização de Energia
Elétrica (CCEE), um ente privado, de modo que os empréstimos não apareceriam
nas contas do setor público.
Considerando, contudo,
que o orçamento para 2013 da CCEE foi da ordem de R$ 150 milhões, parece claro
que qualquer empréstimo à empresa ou virá de bancos públicos, ou será garantida
pelo Tesouro (ou ambos). A contabilização do empréstimo fora do setor público é
mera formalidade, que muda a aparência, mas não a natureza do subsídio.
Esta preocupação é
louvável apenas pelo reconhecimento implícito da virtude; como toda instância
de contabilidade criativa, porém, serve apenas para erodir a já escassa
confiança em qualquer dado que provenha do governo.
(*) Obrigado Sergio Lamucci!
(Publicada 19/mar/2014)