Desde a publicação do Plano Geithner tenho tentado arrumar um tempo para escrever a respeito, mas a vida anda corrida. Pior: o argumento que eu queria fazer já apareceu em mais de um lugar, em particular no blog do Krugman (http://krugman.blogs.nytimes.com/2009/03/23/geithner-plan-arithmetic/) e, acho que até melhor explicado, nesse blog (https://self-evident.org/?p=502). Trata-se, essencialmente, de oferecer um subsídio disfarçado (talvez nem tanto) à aquisição de ativos “herdados” (não os chamamos mais de “tóxicos”; questão de educação), cuja explicação está em ambos os links acima (e possivelmente em muitos outros).
Ainda assim, para quem não viu, não tem paciência de clicar no link, ou prefere prestigiar o blogueiro, segue minha versão da historinha.
Como se sabe, pelo menos no que diz respeito aos créditos hoje no balanço dos bancos (os chamados “legacy loans”), o grande criação do Plano é a possibilidade de eventuais compradores destes ativos obterem alavancagem garantida pelo Tesouro americano. Isto deve, tudo o mais constante (mais sobre isto à frente), elevar o preço dos legacy loans relativamente ao que seria o “valor justo” (muitas aspas aqui, como, espero, ficará claro).
Imaginem que o Hell Bank tenha hoje no seu ativo um empréstimo que, se pago, valha 200. Caso contrário, o valor de recuperação deste ativo seria 80. Para facilitar nossa vida, vamos presumir que cada estado da natureza (“pagou”; “quebrou”) tenha 50% de chance de ocorrer. Quanto um possível comprador (neutro com relação a risco) estaria disposto a pagar?
A resposta é meio óbvia, mas vamos tomar o caminho mais tortuoso (ajuda a elucidar o problema mais interessante). Se o investidor está disposto a pagar p* por este ativo, a sua estrutura de recompensa é a seguinte:
1) No estado favorável da natureza o investidor ganha (200-p*)
2) No estado da não-favorável da natureza o investidor ganha [a rigor se enluzia em] (80-p*)
O lucro esperado é, portanto, 0,5(200-p*) + 0,5(80-p*). Como vários investidores podem concorrer para comprar este ativo, seu preço de equilíbrio é dado pelo valor de p* que zera o lucro esperado, i..e:
0,5(200-p*)+0,5(80-p*) = 0, ou seja, p* = 140.
Como eu avisei, é um jeito tortuoso de se chegar ao óbvio. Em condições “normais”, portanto, o “valor justo” para este ativo é 140.
No entanto, as condições oferecidas pelo plano não são normais. Para cada $ 1 colocado pelo investidor privado, o Tesouro coloca também $ 1. Melhor: o FDIC pode garantir dívida emitida pelo investidor até um limite de 6x, isto é, para cada $ 2 de capital ($ 1 do setor privado e $ 1 do Tesouro), o fundo que adquire os empréstimos (aqui chamado de Hades Fund) pode tomar $ 12 no mercado, com a garantia do FDIC, i.e., em última análise, do próprio Tesouro americano.
Se o fundo for comprar este ativo pelo “valor justo” (140, como visto), o investidor pinga $10, o Tesouro pinga outros $ 10, e o Hades emite $ 120 de dívida. Assim, a um ativo de 140 corresponde um capital de 20 e uma dívida (non-recourse) de 120.
Agora, com 50% de chance este ativo vale 200. Isto ocorrendo, o ganho vai integralmente para os investidores (privado e Tesouro), isto é, o ativo do fundo vale 200, dos quais, deduzido o valor da dívida (120), sobram 80 para os acionistas. Cada um deles leva 40 para casa (um ganho de 30 por cabeça, deduzido o investimento inicial) e ninguém chama o FDIC, já que a dívida será devidamente quitada.
Só que também há a possibilidade do ativo, no final da história, valer apenas 80. Como na famosa lenda, não tem para todo mundo. Não dá para pagar a dívida (então o FDIC é convocado para cobrir a diferença entre o valor da dívida e dos ativos, isto é, 40) e todo mundo volta para casa devidamente enluziado (cada acionista perde 10).
Como fica o valor esperado neste caso? Com 50% de chance o investidor privado ganha 30 e com 50% de chance perde 10, ou seja, espera ganhar 10. O Tesouro americano, acionista do mesmo jeito, também tem um ganho esperado de 10. Já o FDIC, com 50% de chance não ganha nada (e não perde nada), mas com 50% de chance agasalha 40, ou seja, espera perder 20. Consolidando o Tesouro e o FDIC de um lado e o investidor privado do outro, temos este último com um ganho esperado de 10, devidamente financiado pela perda esperada do Tesouro/FDIC.
Só que, se houver ganho esperado na operação, deve haver gente competindo por ela, isto é disposta a pagar um valor acima do “justo” (isto é do valor que reflete apenas as probabilidades de cada resultado), até o ponto em que o ganho esperado – como no exemplo anterior – vá a zero. Qual será o preço (p+) que os investidores admitem pagar?
A estrutura de recompensas agora é a seguinte:
1) Com 50% de chance os investidores ganham (200-p+)
2) Com 50% de chance os investidores ganham (0-(1/7)p+)
Por que (1/7)? Porque os investidores (privado e Tesouro) só põem 1/7 do valor do ativo, já que os outros 6/7 são dívida garantida pelo FDIC. Assim, o preço que os investidores estão dispostos a pagar é dado por:
0,5(200-p+)-(0,5p+)/7 = 0, ou seja, p+ = 175
Em outras palavras, em equilíbrio, os investidores estariam dispostos a pagar 25% a mais do que o “valor justo”, basicamente porque – graças à alavancagem graciosamente providenciada pelo FDIC – têm suas perdas limitadas a uma fração do ativo total.
Seguindo o mesmo raciocínio acima, se “q” é a probabilidade do estado mais favorável da natureza, “L” é a alavancagem (aqui tomada como a relação dívida/capital) e V é o valor do ativo no estado mais favorável da natureza, o preço que equilibraria os leilões (p+) seria dado por:
p+ = [q(1+L)/(1+qL)]V
Pode-se mostrar que esta expressão é crescente em L (precisa de um raciocínio econômico, na verdade, não só matemático, mas deixo isto com as mentes mais curiosas). Em outras palavras, a alavancagem aumenta o prêmio sobre o “valor justo”. Também se pode mostrar que, pelo menos nos termos do exemplo acima, em que a alavancagem é determinada sobre o valor de mercado (não valor de face) do “legacy loan”, o efeito da alavancagem é tanto maior quanto pior for a qualidade do ativo, i.e., quanto menor for q [noto que, segundo alguma interpretações, a alavancagem no Plano é calculada sobre o valor de face do ativo, não o valor pago, o que deve levar a resultados algo diferentes, mas ainda não fiz estas contas].
Vale dizer, a alavancagem de cortesia deve fazer com que investidores tenham um apetite maior por estes ativos, às custas, é claro, do contribuinte. Isto dito, se há bons motivos para crer que o setor privado tem condições melhores de apreçar os ativos dos bancos (acho que isto é verdade e um ponto positivo do plano), ao mesmo tempo há distorções que podem levar à má formação de preços.
De qualquer forma, está longe de ser claro que o ágio sobre o “valor justo” irá resolver a questão. Dada a qualidade dos ativos bancários, a verdade é que não se sabe se isto será suficiente para cobrir a diferença entre os preços a que estão marcados estes ativos e eventuais preços que apareçam nos leilões. Assim, não sabemos também, se isto será suficiente para cobrir a insuficiência de capital no sistema.
Por fim, a qualidade dos ativos não é uma constante da natureza. Em meio à deterioração da atividade econômica é pouco provável que não haja piora na qualidade dos ativos (na nossa notação, “q” estaria se reduzindo, o que inequivocamente diminui o valor dos ativos).
Resumindo: permaneço cético. Se estiver correto no meu ceticismo veremos ainda o governo americano tendo que voltar ao Congresso para pedir mais dinheiro e, aí sim, adotar uma estratégia distinta, mas tendo perdido muito tempo (além de recursos) numa trilha que pode ser um beco sem saída.
Enfim, tenho certeza que isto não esgota o assunto e espero os comentários (e correções) inteligentes dos suspeitos de sempre.
Ainda assim, para quem não viu, não tem paciência de clicar no link, ou prefere prestigiar o blogueiro, segue minha versão da historinha.
Como se sabe, pelo menos no que diz respeito aos créditos hoje no balanço dos bancos (os chamados “legacy loans”), o grande criação do Plano é a possibilidade de eventuais compradores destes ativos obterem alavancagem garantida pelo Tesouro americano. Isto deve, tudo o mais constante (mais sobre isto à frente), elevar o preço dos legacy loans relativamente ao que seria o “valor justo” (muitas aspas aqui, como, espero, ficará claro).
Imaginem que o Hell Bank tenha hoje no seu ativo um empréstimo que, se pago, valha 200. Caso contrário, o valor de recuperação deste ativo seria 80. Para facilitar nossa vida, vamos presumir que cada estado da natureza (“pagou”; “quebrou”) tenha 50% de chance de ocorrer. Quanto um possível comprador (neutro com relação a risco) estaria disposto a pagar?
A resposta é meio óbvia, mas vamos tomar o caminho mais tortuoso (ajuda a elucidar o problema mais interessante). Se o investidor está disposto a pagar p* por este ativo, a sua estrutura de recompensa é a seguinte:
1) No estado favorável da natureza o investidor ganha (200-p*)
2) No estado da não-favorável da natureza o investidor ganha [a rigor se enluzia em] (80-p*)
O lucro esperado é, portanto, 0,5(200-p*) + 0,5(80-p*). Como vários investidores podem concorrer para comprar este ativo, seu preço de equilíbrio é dado pelo valor de p* que zera o lucro esperado, i..e:
0,5(200-p*)+0,5(80-p*) = 0, ou seja, p* = 140.
Como eu avisei, é um jeito tortuoso de se chegar ao óbvio. Em condições “normais”, portanto, o “valor justo” para este ativo é 140.
No entanto, as condições oferecidas pelo plano não são normais. Para cada $ 1 colocado pelo investidor privado, o Tesouro coloca também $ 1. Melhor: o FDIC pode garantir dívida emitida pelo investidor até um limite de 6x, isto é, para cada $ 2 de capital ($ 1 do setor privado e $ 1 do Tesouro), o fundo que adquire os empréstimos (aqui chamado de Hades Fund) pode tomar $ 12 no mercado, com a garantia do FDIC, i.e., em última análise, do próprio Tesouro americano.
Se o fundo for comprar este ativo pelo “valor justo” (140, como visto), o investidor pinga $10, o Tesouro pinga outros $ 10, e o Hades emite $ 120 de dívida. Assim, a um ativo de 140 corresponde um capital de 20 e uma dívida (non-recourse) de 120.
Agora, com 50% de chance este ativo vale 200. Isto ocorrendo, o ganho vai integralmente para os investidores (privado e Tesouro), isto é, o ativo do fundo vale 200, dos quais, deduzido o valor da dívida (120), sobram 80 para os acionistas. Cada um deles leva 40 para casa (um ganho de 30 por cabeça, deduzido o investimento inicial) e ninguém chama o FDIC, já que a dívida será devidamente quitada.
Só que também há a possibilidade do ativo, no final da história, valer apenas 80. Como na famosa lenda, não tem para todo mundo. Não dá para pagar a dívida (então o FDIC é convocado para cobrir a diferença entre o valor da dívida e dos ativos, isto é, 40) e todo mundo volta para casa devidamente enluziado (cada acionista perde 10).
Como fica o valor esperado neste caso? Com 50% de chance o investidor privado ganha 30 e com 50% de chance perde 10, ou seja, espera ganhar 10. O Tesouro americano, acionista do mesmo jeito, também tem um ganho esperado de 10. Já o FDIC, com 50% de chance não ganha nada (e não perde nada), mas com 50% de chance agasalha 40, ou seja, espera perder 20. Consolidando o Tesouro e o FDIC de um lado e o investidor privado do outro, temos este último com um ganho esperado de 10, devidamente financiado pela perda esperada do Tesouro/FDIC.
Só que, se houver ganho esperado na operação, deve haver gente competindo por ela, isto é disposta a pagar um valor acima do “justo” (isto é do valor que reflete apenas as probabilidades de cada resultado), até o ponto em que o ganho esperado – como no exemplo anterior – vá a zero. Qual será o preço (p+) que os investidores admitem pagar?
A estrutura de recompensas agora é a seguinte:
1) Com 50% de chance os investidores ganham (200-p+)
2) Com 50% de chance os investidores ganham (0-(1/7)p+)
Por que (1/7)? Porque os investidores (privado e Tesouro) só põem 1/7 do valor do ativo, já que os outros 6/7 são dívida garantida pelo FDIC. Assim, o preço que os investidores estão dispostos a pagar é dado por:
0,5(200-p+)-(0,5p+)/7 = 0, ou seja, p+ = 175
Em outras palavras, em equilíbrio, os investidores estariam dispostos a pagar 25% a mais do que o “valor justo”, basicamente porque – graças à alavancagem graciosamente providenciada pelo FDIC – têm suas perdas limitadas a uma fração do ativo total.
Seguindo o mesmo raciocínio acima, se “q” é a probabilidade do estado mais favorável da natureza, “L” é a alavancagem (aqui tomada como a relação dívida/capital) e V é o valor do ativo no estado mais favorável da natureza, o preço que equilibraria os leilões (p+) seria dado por:
p+ = [q(1+L)/(1+qL)]V
Pode-se mostrar que esta expressão é crescente em L (precisa de um raciocínio econômico, na verdade, não só matemático, mas deixo isto com as mentes mais curiosas). Em outras palavras, a alavancagem aumenta o prêmio sobre o “valor justo”. Também se pode mostrar que, pelo menos nos termos do exemplo acima, em que a alavancagem é determinada sobre o valor de mercado (não valor de face) do “legacy loan”, o efeito da alavancagem é tanto maior quanto pior for a qualidade do ativo, i.e., quanto menor for q [noto que, segundo alguma interpretações, a alavancagem no Plano é calculada sobre o valor de face do ativo, não o valor pago, o que deve levar a resultados algo diferentes, mas ainda não fiz estas contas].
Vale dizer, a alavancagem de cortesia deve fazer com que investidores tenham um apetite maior por estes ativos, às custas, é claro, do contribuinte. Isto dito, se há bons motivos para crer que o setor privado tem condições melhores de apreçar os ativos dos bancos (acho que isto é verdade e um ponto positivo do plano), ao mesmo tempo há distorções que podem levar à má formação de preços.
De qualquer forma, está longe de ser claro que o ágio sobre o “valor justo” irá resolver a questão. Dada a qualidade dos ativos bancários, a verdade é que não se sabe se isto será suficiente para cobrir a diferença entre os preços a que estão marcados estes ativos e eventuais preços que apareçam nos leilões. Assim, não sabemos também, se isto será suficiente para cobrir a insuficiência de capital no sistema.
Por fim, a qualidade dos ativos não é uma constante da natureza. Em meio à deterioração da atividade econômica é pouco provável que não haja piora na qualidade dos ativos (na nossa notação, “q” estaria se reduzindo, o que inequivocamente diminui o valor dos ativos).
Resumindo: permaneço cético. Se estiver correto no meu ceticismo veremos ainda o governo americano tendo que voltar ao Congresso para pedir mais dinheiro e, aí sim, adotar uma estratégia distinta, mas tendo perdido muito tempo (além de recursos) numa trilha que pode ser um beco sem saída.
Enfim, tenho certeza que isto não esgota o assunto e espero os comentários (e correções) inteligentes dos suspeitos de sempre.