Recebi o seguinte comentário. O Gustaf parece ser um rapaz inteligente (mesmo errando meu sobrenome), apenas sujeito às influências erradas. Respondi alguns pontos do comentário, mas espero ter deixado outro tanto para os freqüentadores habituais deste espaço.
Olá a todos do blog. Estou fazendo uma monografia para concluir minha graduação de Economia na UFRN, cujo tema é política fiscal e trata desta questão dessa discussão entre ortodoxos e heterodoxos. Eu ainda não decidi qual o referencial teórico que pretendo seguir, mas confesso que já estou com o conhecimento sobre economia heterodoxa plenamente consolidada, sobretudo devido à influência do meu ex-professor de Macroeconomia e atual orientador (que tem doutorado na UFRJ e que também é o mesmo professor do Cleiton). Devido a isso, eu ficarei agradecido se o professor Schwartzmann responder ao menos a algumas de minhas colocações, já que a opinião dele terá muito a acrescentar na minha pesquisa.
“Logo, um corte permanente de gastos públicos implica uma queda da tributação esperada cujo valor presente deve ser exatamente o valor presente do corte de gastos. Se a tributação for lump-sum (i.e., não causa distorção), o único efeito disto será aumentar o valor presente do consumo privado exatamente pelo valor do corte de gasto público.”
Eu suponho que aqui o professor Schwartzmann implicitamente cita a proposição de Barro - Ricardo. Segundo esse raciocínio, ao se dá conta que tem que pagar impostos menores no futuro, os consumidores, baseados em expectativas racionais, diminuirão a poupança privada na mesma proporção em que a poupança pública aumenta.
O problema da teoria de Barro-Ricardo são alguns fracassos de suas previsões em alguns países, como os Estados Unidos, por exemplo. A realidade mostrou que, diferentemente do que a teoria de Barro - Ricardo predizia, o consumo de cada família não é aproximadamente proporcional à sua renda permanente, ou seja, sua renda esperada no longo prazo. No manual de Macroeconomia do Blanchard que tenho disponível (Macroeconomia: teoria e política econômica) tem dados indicando que a razão entre a poupança privada e poupança pública nos EUA entre 1968-1994 mostra que não há evidência que o aumento do déficit público desde o início da década de 80 tenha sido compensado pelo aumento da poupança privada. Além disso, a famosa contração fiscal no governo Clinton foi mais que compensada pela política monetária acomodatícia de Greenspan e seus efeitos colaterais. Não só em Blanchard se vê isso, mas há literatura nacional disponível sobre o assunto:
Franklin Serrano ; BRAGA, J. M. . “O mito da contração fiscal expansionista durante o governo Clinton”. Economia e Sociedade (UNICAMP), v. 15, p. 213, 2006.
Na verdade, Gustaf, isto não é exatamente a proposição Barro-Ricardo, mas sim algo bem mais simples, a saber, a restrição orçamentária intertemporal, que estabelece, independente da decisão dos agentes privados, que o valor presente dos gastos do governo tem que ser menor ou igual ao valor presente das suas receitas (mais qualquer ativo líquido que o governo detenha).
A proposição ricardiana é algo distinta: estabelece que, dado o fluxo de gastos públicos, seu financiamento é irrelevante, i.e., tanto faz que seja via endividamento ou tributos, já que endividamento é apenas um acréscimo de tributação à frente.
Se, porém, os gastos forem reduzidos de forma permanente, ou a dívida será menor, ou os impostos serão menores, mesmo que os agentes não percebam isto no momento do corte de gastos.
Em particular, se os impostos distorcerem fortemente a alocação de recursos – como parece ser o caso brasileiro – a redução de gastos (e conseqüente redução de impostos) deve acelerar a taxa de crescimento.
Além disto, a redução de demanda pelo lado do gasto público (também é independente da proposição ricardiana) abre espaço para política monetária menos restritiva (mantida a inflação constante), e, portanto, tanto maior expansão da demanda doméstica privada, como maior crescimento da demanda externa (já que, com juro menor temos câmbio mais fraco e, com inflação igual, temos câmbio real mais fraco).
E o corte de gastos não é incompatível com a política econômica heterodoxa.
Pode até ser verdade, mas não vejo ninguém neste campo advogando redução do gasto público. Pelo contrário, é deste campo que vêm as teses do estado nanico, das propostas de contratação de mais X milhões de funcionários públicos, do “caráter financeiro” do déficit público (parafraseando Simonsen, “déficit não tem caráter”), e outras pérolas do gênero.
“O que possivelmente seu professor não disse é que toda esta análise (multiplicador, etc) refere-se apenas à demanda e pressupõe implicitamente que o nível de preços está dado, ou seja, que a oferta agregada é infinitamente elástica num determinado nível de preços. [...] e é onde se torna nítido que boa parte da análise keynesiana mais rasteira (no estilo UFRJ-Unicamp) só é relevante para níveis muito elevados de desemprego e capacidade ociosa.”
Na verdade, eu já conversei com ele sobre isso e o mesmo disse que o pensamento pós-keynesiano, assim como o de Keynes, não assume uma curva de oferta infinitamente elástica. Essa é uma premissa teórica dos “sraffianos” e alguns intérpretes de Keynes que tentam aproximar o britânico de Sraffa.
A curva de oferta de curto prazo keynesiana tem uma significativa inclinação positiva devido à lei dos retornos decrescentes (associada a escassez de insumos necessários à produção, escassez de trabalhadores qualificados, etc.). No longo prazo macroeconômico, devido à superação desses gargalos e estrangulamentos, a inclinação de curva de oferta fica bem mais elástica, mas ainda assim a elasticidade dela não fica no nível da elasticidade infinita. Isso implica que os pós-keynesianos vêem que a política fiscal dá melhores resultados no longo do que no curto prazo, já que é no longo prazo que as pressões inflacionárias se amenizam.
Ademais, os pós-keynesianos ainda citam que o efeito crowding-out associado a política fiscal expansionista pode ser contrabalançada pelo efeito do “acelerador keynesiano”.
De novo, Gustaf, alguém pode até elaborar isto tudo, mas, do ponto de vista do debate de política econômica não é o que se vê. Pelo contrário, não há qualquer menção a custos marginais crescentes, que implicam aceleração da inflação quando o produto efetivo se aproxima (ou supera) o potencial. O que se vê é, de novo, uma versão ingênua do “acelerador”, que imagina que, à medida que se aproxima do produto potencial a economia consegue, magicamente, elevar de tal forma seu investimento que o produto potencial nunca é atingido.
Traduzido para o debate tapuia, seus professores pós-keynesianos (de quermesse) afirmam que o crescimento do investimento cura até unha encravada. Só não mencionam que este investimento representa 17,5% do PIB, nível que só justificaria um crescimento de PIB potencial acima de 5,5% a.a. num país no qual o crescimento da PTF fosse astronômico (não é nosso caso), ou que a força de trabalho estivesse crescendo aceleradamente (também não).
Citação de citação:
“Pedro: ‘Minhas recentes incursões pela mentalidade heterodoxa me deram algumas pistas sobre esse viés ‘Bem contra o Mal’. Em uma péssima interpretação de Keynes, a pedra fundamental do pensamento ufrj-unicamp é o seguinte: só há trade-off entre consumo e poupança em termos individuais. No agregado, esse trade-off deixa de existir, E NÃO É NECESSÁRIO REDUZIR CONSUMO PARA AUMENTAR POUPANÇA E INVESTIMENTO, POIS AFINAL SEMPRE EXISTE DESEMPREGO E RECURSOS OCIOSOS. NA VERDADE, AUMENTAR O CONSUMO AUMENTA A RENDA E O INVESTIMENTO E O CRESCIMENTO ECONÔMICO DE LONGO PRAZO’.”
Sim, keynesianos realmente consideram que a soma das partes do produto- consumo, investimento privado, gastos do governo e exportações líquidas de bens e serviços - é igual ao todo, mas não que a renda e o produto são dados. Sobre esse assunto, Luiz Fernando de Paula já disse que:
“A falácia da composição neste caso é supor que um aumento na poupança dos agentes (microeconômica) - ou seja, da fração poupada de sua renda - levará necessariamente a um aumento na poupança agregada da economia (macroeconômica). Naquilo que ficou conhecido como ‘paradoxo da parcimônia’, Keynes mostrou que toda tentativa de poupar mais, reduzindo o consumo, age de tal modo sobre a renda que acaba anulando a si mesma. Como no nível macroeconômico a renda é determinada pelas decisões de gastos de todos os agentes (indivíduos e firmas), se todos eles (ou parte importante deles) resolverem diminuir seus gastos de consumo para poupar mais o efeito final será uma redução na renda deles - de tal modo que a poupança agregada continuará a ser exatamente igual a antes. O equívoco neste caso é pensar a renda como dada, como algo estático.” (http://www.desempregozero.org.br/artigos/keynes_pac.php)
Aqui Gustaf você está invertendo o raciocínio. Mesmo que o aumento da poupança individual possa não se traduzir em aumento da poupança agregada, em situações nas quais a economia não opera com ociosidade elevada, um aumento do investimento tem que ser financiado com: (1) maior poupança (i.e., menor consumo); ou (2) menores gastos do governo; ou (3) maior déficit em conta corrente (ou ainda uma combinação destes três fatores). Recursos não caem do céu, seja num contexto estático, seja num contexto dinâmico. Só quando – como bem colocou o Pedro – há muitos recursos ociosos é que poderia valer uma coisa deste tipo, mas isto é a exceção, não a regra.
Pensar que para aumentar a poupança/investimento implica necessariamente que se deve reduzir o consumo, já é tomar a Lei de Say como uma verdade inquestionável. Heterodoxos não questionam que a existência de uma curva de oferta de longo prazo vertical seria válida se cumprida certas condições. A questão é que para que a Lei de Say e a existência de uma a tendência da economia caminhar ao pleno emprego seja uma verdade, essas hipóteses fortemente questionadas por pelos teóricos da demanda efetiva também deveriam ser verdadeiras: i) flexibilidade dos preços dos fatores; e ii) funções de (excesso) de demanda ‘bem comportadas’ por fatores de produção em geral, e por “capital” em particular. Tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista empíricos, os heterodoxos consideram que há implausibilidade do mecanismo que serve de base para a teoria da produção ortodoxa. O professor Franklin Serrano (da UFRJ) listou seus argumentos sobre isso neste artigo publicado em seu blog: http://franklinserrano.files.wordpress.com/2008/03/equilibrio-neoclassico-mercado-de-fatores.pdf
Se a flexibilidade de preços, salários e juros no longo prazo macroeconômico é incapaz de corrigir os desequilíbrios entre oferta e demanda e garantir a validade da lei de Say, a conseqüência é tão somente a validade do Princípio da Demanda Efetiva. Além disso, meu professor já colocou a seguinte questão abordada por diversos autores:
“Choques de demanda, de oferta e outros estão sempre mudando o ponto de equilíbrio de posição; como o processo automático é lento, antes de o ponto de equilíbrio ser atingido, ele novamente é deslocado por tais choques; na prática, nunca dá tempo de atingir o equilíbrio pelo mecanismo automático; a economia estará sempre em desequilíbrio, a menos que se utilize a política econômica para, de forma mais rápida, fazer a economia convergir para o equilíbrio. O longo prazo seria, na visão keynesiana, um prazo ‘virtual’, que nunca se efetiva”.
Gustaf: a flexibilidade de preços é condição suficiente para pleno emprego. Podemos (e devemos) discutir se o modelo com preços flexíveis é a melhor representação para o problema do ciclo econômico. Eu, particularmente, acredito que não (quem mandou estudar em Berkeley?). Rigidez nominal e real de preços por conta de custos de menu, ou near-rationality (a abordagem do Akerloff), ou salários eficientes (seja na versão do Akerloff, seja na versão de Shapiro-Stiglitz) me parecem gerar dinâmicas muito ricas de ciclo econômico.
Quando, porém, o foco da questão sai do ciclo para crescimento, a questão da rigidez real ou nominal de preços perde relevância. Qual a evidência teórica ou empírica que a sugere que preços não se ajustam nunca? Se isto fosse verdade, o fenômeno do crescimento seria muito distinto do que é (seria a exceção, não a regra).
Toda discussão séria da teoria do crescimento tem seu foco na oferta agregada, i.e., como acumulação de capital (físico e humano) interage com a elevação da PTF. Na nova teoria do crescimento (Romer, Grossman & Helpman, Aghion, etc), inclusive, o foco principal é na questão da evolução da PTF via criação de novos bens ou melhora de qualidade dos bens existentes.
Isto sugere que mesmo investimento não é o fator mais relevante do crescimento, já que retornos decrescentes eventualmente vão levar a taxa de crescimento à taxa de aumento da produtividade, de onde se percebe a irrelevância da demanda agregada para o crescimento de longo prazo.
E, se choques alteram a posição de equilíbrio de longo prazo, tudo bem, pois as trajetórias de convergência também se alteram e o equilíbrio continua ancorando a nova trajetória.
Por fim, eu queria dizer que há uma visão equivocada em achar que a visão heterodoxa necessita do argumento que só há necessidade de políticas expansionistas se houver a existência de “recursos ociosos”. Os sraffianos e boa parte dos pós-keynesianos (Dutt, Lavoie, etc.) reconhecem que há congruência de longo prazo entre os tamanhos relativos do estoque de capital e a demanda pelos produtos produzidos, mas que isso se dá porque o investimento privado é uma variável basicamente induzida. Quando foi explicar a teoria de crescimento do Franklin Serrano, meu professor usou estas palavras:
“[Na teoria de Serrano] sempre que a taxa de crescimento da demanda aumentar, acelerando o crescimento da economia de forma que a taxa de crescimento efetiva supere a do estoque de capital o grau de utilização da capacidade aumentará até que, eventualmente, ela passe a superar o grau de utilização desejado. Os capitalistas responderão a este fenômeno aumentando o investimento, o que fará com que, após certo tempo, o grau de utilização da capacidade volte ao normal.”
Franklin Serrano diz em seu blog que: “Isso significa que esta teoria leva em conta não apenas o efeitos multiplicador usualmente contemplados também nas teorias de curto prazo de utilização de capacidade mas também os efeitos aceleradores pelos quais o crescimento sustentado da demanda efetiva vai induzindo a criação de capacidade produtiva da economia.”
Serrano citando Pierangelo Garegnani:
“Agora, o tamanho da dotação de capital parece, quando nada, até mais suscetível de adaptação ao seu emprego do que é o tamanho da força de trabalho ... é o nível da demanda agregada e do produto que determina o nível de estoque de capital.”
Por outro lado, existem os teóricos que consideram o investimento como uma variável essencialmente autônoma, como Michal Kalecki e a escola da Unicamp. Em comum, essas duas correntes de pensamento compartilham a idéia que crescimento econômico nas nações subdesenvolvidas é limitado por insuficiência estrutural de divisas devido a restrição externa no balanço de pagamentos.
Aqui, de novo, chegamos ao paraíso terrestre da economia sem escassez. Se esta visão for verdadeira, me explique por que países crescem a taxas distintas, por que há inflação e por que certos países passam por crises de balanço de pagamentos e outros não. Se o problema do crescimento é só a restrição externa, por que alguns países a superam e outros não?
Do jeito que as afirmações acima aparecem, basta jogar bastante demanda na economia que o crescimento sempre virá, porque o aumento da utilização de capacidade gera investimento e, portanto, crescimento. Não há menção a retornos decrescentes (e, portanto, aos limites ao crescimento baseado apenas na acumulação de capital físico). Não há menção ao que pode acontecer entre o momento que a utilização de capacidade passa o desejável e a materialização da nova capacidade (preços nunca sobem?). Não há menção ao quanto o investimento teria que subir para acomodar o aumento de demanda. Desculpe, mas isto não é teoria econômica: é "wishful thinking" disfarçado.