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terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Além do primeiro ano

As estimativas do MADE sugerindo que a redistribuição de renda poderia elevar o crescimento não se sustentam. Ignoram impactos sobre comércio exterior, bem como a reação de preços e taxa de juros. Também confundem efeitos de curto prazo com crescimento de longo prazo. Um assunto sério merece tratamento à altura.

Quando dava aulas no Insper, era corresponsável pelo curso de Problemas em Economia, iniciativa da Luciana Yeung. Oferecida no final do terceiro ano, era uma disciplina dita “capstone”, requerendo dos alunos que juntassem os conhecimentos adquiridos ao longo dos semestres anteriores para identificar e solucionar alguma questão econômica relevante. Houve trabalhos excelentes, sem esgotar os exemplos, na área de política monetária, crescimento, crime, prostituição, e comércio exterior, que me deram enorme satisfação na leitura.

Não posso, porém, dizer o mesmo da Nota de Política Econômica formulada pelo MADE (Centro de Pesquisa em Macroeconomia da Desigualdade) da USP, estimando que a redistribuição de renda poderia elevar o PIB em 2,4% caso as medidas que defende fossem implementadas.

O argumento é simples e, à primeira vista, bastante persuasivo. Indivíduos (ou famílias) mais pobres tendem a consumir mais de sua renda do que os mais ricos – em economês, sua “propensão a consumir” é mais alta –, ou seja, se transferirmos renda dos mais ricos para os mais pobres, não só reduziríamos a enorme disparidade de renda no Brasil, como cresceríamos mais, embalados pelo consumo.

Tal impacto não se encerraria no efeito direto da transferência em si, mas, como o consumo aumentaria, também o emprego seria maior, logo a renda, portanto novas rodadas de consumo e assim por diante, configurando o chamado “efeito multiplicador”. Como o multiplicador é tanto maior quanto mais alta for a “propensão a consumir”, a redistribuição de renda teria resultados ainda mais vigorosos sobre o crescimento.

Ou, pelo menos, é o que extrairíamos dos modelos macroeconômicos que ensinamos aos estudantes do primeiro ano, mas dificilmente do que eles aprendem pouco depois.

Há, para falar a verdade, omissões sérias nas estimativas mesmo dentro do marco de referência deste modelo mais simples. A começar porque, se houve a iniciativa de estimar a “propensão a consumir” para cada faixa de renda, a questão do quanto o consumo “vazaria” para fora, seja sob a forma de importações mais elevadas, seja por seu impacto sobre o volume exportado não foi adequadamente tratada.

Não há, por exemplo, estimativas por faixa de renda da “propensão a importar”. Há uma estimativa da “propensão a importar” da economia como um todo ponderada pela participação na renda, mas implicitamente supondo que cada real de renda adicional geraria o mesmo acréscimo de importações para diferentes grupos de renda. Ignora-se, ademais, o efeito do consumo sobre as exportações, por exemplo, o que ocorre com as exportações de açúcar se há aumento da demanda por álcool combustível?

Sim, sempre à primeira vista, isto pareceria um problema menor. Ricos devem demandar mais produtos importados do que pobres, não? Se alguém está pensando em uísque ou carros importados, parece verdade, todavia:

(a)   a maior parte das importações brasileiras não consiste de bens de consumo, mas matérias primas e componentes para produção local, então não podemos dizer a priori se a propensão a importar é maior dentre os mais pobres, pois seu consumo, mesmo de produtos nacionais, tem componentes importados (pense em todos derivados de trigo, por exemplo);

(b)   extratos mais ricos da população consomem mais serviços, cuja produção é local, do que os mais pobres, ou seja, o “vazamento” do consumo para o exterior por este lado é menor. De fato, enquanto no índice oficial de inflação, o IPCA, serviços respondem por quase 48% da cesta de consumo daqueles que ganham até 40 salários mínimos, no IPNC, índice irmão, calculado para quem ganha até 6 salários mínimos, serviços representam pouco menos de 41% do consumo;

(c)   O aumento da demanda por alimentos, que tipicamente acompanha a expansão da renda dos mais pobres, subtrai das exportações, fenômeno omitido da análise.

Os problemas, contudo, não se encerram com a omissão das exportações e tratamento insatisfatório das importações.

De forma bem mais grave, as estimativas ignoram a reação do conjunto da economia ao aumento do consumo. Logo depois de ensinarmos no primeiro ano o modelo em que foi baseado o trabalho do MADE, costumamos complicar um pouco a história, introduzindo taxas de juros no problema, fenômeno ignorado pelos pesquisadores. Um pouco mais adiante, trazemos também a resposta dos preços, isto é, o comportamento da inflação, que também tem impactos sobre as taxas de juros.

Tipicamente, um aumento do consumo leva também à elevação da taxa de juros, fenômeno que modera o efeito sobre a demanda. Se os pesquisadores tivessem atentado para isso, sua estimativa do impacto final do consumo sobre a renda seria menor.

Adicionalmente, ao ignorar o comportamento dos preços, supuseram (de novo implicitamente) que a produção pode se expandir sem efeitos sobre a inflação. Talvez possa ser uma boa representação da realidade em países de inflação muito baixa que lutam para escapar do risco deflacionário, mas certamente não é o caso do Brasil. Mesmo que não estejamos prevendo descontrole inflacionário iminente, a inflação se encontra próxima a 4,5% em 12 meses, e as medidas menos sensíveis a acidentes de percurso (os chamados “núcleos de inflação”) rodam na casa de 3% no mesmo horizonte, não particularmente elevadas, mas bem distantes do zero.

Em particular, quanto mais próxima estiver a economia de seu potencial – não o caso hoje, mas uma situação que também deve ser considerada – tanto maior será o risco inflacionário e tanto mais alta será a taxa de juros requerida para evitá-lo. Vale dizer, a taxa estrutural (ou neutra) de juros se elevaria em resposta, outra consequência não analisada.

Posto de outra forma, as estimativas teriam que levar em conta possíveis impactos sobre inflação e a reação das taxas de juros, duas forças que moderariam o efeito da redistribuição. Todavia, analiticamente isso não é viável pela simplicidade extrema do modelo. Há, é bom que se diga, alternativas que não precisam ser extraordinariamente complexas, mas que demandam mais do que algumas regressões e um tanto de álgebra para avaliar a extensão da resposta da economia de maneira mais completa. Ou, pelo menos, seria este meu conselho se alunos do terceiro ano me abordassem para estudar o fenômeno.

Os problemas não se esgotam aí. Segundo uma das autoras do estudo “é perfeitamente possível desenhar um programa que combine redução da desigualdade com aumento do ritmo de crescimento econômico” [grifo meu]. Na verdade, não.

Para começar, o modelo não tem condições de avaliar crescimento. Tudo se passa dentro de um único período, enquanto o crescimento é um fenômeno que se desenrola ao longo de vários períodos. O que o modelo consegue mostrar, quase que por desenho, é que a distribuição de renda de ricos para pobres pode gerar algum efeito sobre o consumo da economia, efeito esse que – por força dos argumentos anteriores – está bastante superestimado nos resultados dos autores.

Crescimento econômico, porém, é algo distinto. A expansão da economia ao longo do tempo não depende da demanda, mas do aumento da capacidade produtiva, ou seja, do investimento em capital físico (máquinas, equipamentos, infraestrutura, etc.), do investimento em capital humano (educação e qualificação da força de trabalho) e do crescimento da produtividade. Aliás, como diria Paul Krugman, “produtividade não é tudo, mas no longo prazo é quase tudo”.

Apenas uma dentre as muitas omissões gritantes do tratamento do tema é o silêncio ensurdecedor acerca do efeito da tributação sobre o crescimento. Tributação progressiva da renda, ou seja, mais alta para a parcela mais rica da população é analiticamente equivalente a imposto sobre capital, cujo efeito é deprimir o investimento em relação ao cenário livre de tributação, o que leva a menor crescimento.

Diga-se, aliás, que este é um dos motivos mais citados para a troca entre crescimento e equidade, isto é, porque economias mais igualitárias crescem menos do que aquelas com maior desigualdade, tema frequentemente levantado, dentre outros, por Samuel Pessoa. No entanto, os autores simplesmente omitem essa questão central da discussão.

Nada nas estimativas sugere que seja possível elevar o ritmo de crescimento econômico sustentável; no máximo, como notado, consegue levar ao aumento da demanda que pode, ou não, se traduzir em aumento da renda e do emprego dependendo do estado cíclico da economia, isto é, da distância da economia relativamente ao seu potencial.

A verdade é que a discussão sobre políticas públicas requer um tanto de profundidade, certamente bem mais que pode ser encontrada no trabalho do MADE.

Isso obviamente não quer dizer que a distribuição de renda no Brasil não seja desigual, nem que não mereça ser devidamente tratada, inclusive porque resulta de mecanismos de gastos e tributos que a tornam ainda mais desigual. Quer dizer, todavia, que deve ser encarada de maneira séria, o que certamente não foi o caso no estudo do MADE.

Tenho certeza que meus alunos fariam melhor.



(Publicado 24/Fev/2021)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Final de jogo

Mais que a demissão na Petrobras em si, a mensagem que ela encerra é preocupante: o país segue à deriva em meio à grave crise sanitária, econômica e política. Quando até a Faria Lima consegue entender isso é sinal que o jogo está se encaminhando para seu final...

A demissão do presidente da Petrobras, Roberto Castelo Branco, caiu pesado, tanto sobre o mercado acionário, mais diretamente atingido pela medida, inclusive por força do peso da empresa sobre o índice Bovespa, como sobre o mercado financeiro em geral. Engana-se, porém, quem acredita que o problema se restringe àquela esfera: as consequências são várias e abrangentes; o mercado financeiro apenas reage mais rápido em antecipação à deterioração dos fundamentos econômicos do país.

Pelo que se depreende, o motivo da demissão foi a insatisfação do presidente com a elevação dos preços dos combustíveis, decorrência direta da política da empresa, adotada já há algum tempo, de espelhar no mercado doméstico os preços internacionais de combustíveis, devidamente convertidos em moeda nacional. Preços mais altos de combustíveis costumam erodir a popularidade de governantes e, no caso específico de Bolsonaro, o efeito é pior, pelo menos na visão do presidente, por afetar uma categoria, caminhoneiros, que ele entende como aliada, ou, pelo menos, alguém que grunhe na mesma idioma.

Popular, ou não, trata-se de política essencialmente correta, como já pude argumentar em outros momentos. No que se refere à empresa, a prática contrária, usada além do limite da irresponsabilidade no governo Dilma, levou a sérios prejuízos. Medidos aos preços de hoje, os prejuízos acumulados entre 2014 e 2016 atingiram pouco mais de R$ 93 bilhões, outorgando à empresa o nada honroso título de petroleira mais endividada do planeta. Dado que o principal acionista é o governo federal, falamos aqui do que Armínio Fraga memoravelmente denominou “o meu, o seu, o nosso dinheiro”.

Note-se que tal política não resulta do poder de monopólio, muito pelo contrário. Ao equiparar seus preços aos do mercado internacional a Petrobras permite que outras empresas compitam na oferta de combustíveis. Caso praticasse preços domésticos abaixo do equivalente internacional impediria que concorrentes pudessem importar o produto e comercializá-lo no mercado interno, já que ficariam sempre acima do preço da empresa.

Há, afora isso, motivos de eficiência econômica. Quando preços de um determinado produto se elevam, a resposta (eficiente) de mercado é reduzir o consumo e aumentar a produção. O segundo efeito, no caso do petróleo, não é imediato (a menos de condições muitos específicas quanto à capacidade ociosa), mas o primeiro, a redução do consumo, é exatamente a reação que esperamos face a um produto mais caro, portanto mais escasso. Não permitir o funcionamento do sistema de preços no caso agride um princípio básico de qualquer economia de mercado.

Sim, é verdade que combustíveis são bastante tributados, assim como também é verdade que produzem chamadas “externalidades negativas”: o uso de combustíveis fósseis polui e colabora para o uso exagerado de outro recurso escasso, espaços na malha viária, cuja tradução no dia-a-dia é “congestionamento”. Obviamente não imagino que a carga tributária sobre tais produtos seja guiada apenas por tais preocupações, mas, como o ônus da prova tipicamente cabe ao acusador, críticos teriam a obrigação de provar que combustíveis são tributados em excesso ao “ótimo” (a chamada taxa pigouviana).

Todavia, as implicações vão além da manutenção da política de equiparação do preço doméstico ao internacional.

Do ponto de vista de “governança” (não sou fã da expressão, mas não me veio outra à mente) a demissão de um dirigente de empresa estatal por razões político-eleitorais é uma distorção grave. Trata-se do uso do aparato do poder público em benefício próprio, prática que deve ser genericamente repudiada em países que prezem a democracia e o respeito à coisa pública.

A triste verdade é que, por mais que tentemos impor alguma espécie de disciplina a quem ocupa a cadeira presidencial (ou estadual, ou municipal) em dado momento, cujo exemplo mais recente é a Lei 13.303/2016 (Lei de Governança das Estatais), empresas controladas pelo poder público estão tipicamente à mercê do mandatário de plantão. Em tempos de Lava Jato em retirada, é sempre bom lembrar como a própria Petrobras foi usada e abusada para fins políticos partidários, sem esquecer, é claro, que o quase esquecido “mensalão” revelou esquemas semelhantes em outra empresa federal, no caso os Correios.

Torno a repetir: enquanto houver carniça, haverá urubus. Para acabar com a carniça, a melhor alternativa é a privatização, promessa em que muitos acreditaram quando da indicação de Paulo Guedes à liderança da área econômica (eu, modéstia às favas, não, obrigado). Talvez agora caia a ficha dos últimos ingênuos, exceto, é claro, Luiz Carlos Mendonça de Barros: não vai rolar privatização de peso no governo Bolsonaro.

Também se iludem aqueles que acreditam nos compromissos do presidente com o equilíbrio das contas públicas e reformas liberalizantes. Seu objetivo é um só: se manter no poder, custe o que custar e se o ministro da Economia ainda não entendeu isso, não será aqui que irá aprender, mas na dura realidade dos fatos.

A paralisia do governo em face de nossos desafios, de que a demissão na Petrobras é apenas uma faceta, irá, por vários caminhos, agravar a situação que já vivemos, seja do ponto de vista do nosso endividamento, seja o risível crescimento da produtividade. Mais que o fato em si, a mensagem que ele encerra é preocupante: o país segue à deriva em meio a uma grave crise sanitária, econômica e política.

Quando até a Faria Lima consegue entender isso é sinal que o jogo está se encaminhando para seu final.



(Publicado 22/Fev/2021)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Foco

 A evolução do desemprego sugere que o auxílio emergencial poderia ser melhor focalizado, protegendo os diretamente afetados a um custo menor do que sua versão original. Tais informações, contudo, não parecem balizar a decisão de sua provável extensão.

Defendo a volta do auxílio emergencial, como já deixei claro em colunas anteriores, principalmente por razões humanitárias. Da mesma forma que bombeiros têm por função apagar incêndios e exércitos nos defender em caso de agressão externa, face a uma calamidade pública como a epidemia, que impede o acesso de pessoas ao mercado de trabalho, o poder público deveria ajudar este grupo, obviamente enquanto a crise sanitária não permitir o retorno à normalidade.

Há obviamente implicações para a evolução do endividamento que precisam ser devidamente consideradas e, claro, compensadas, mesmo que tal compensação não ocorra no mesmo ano fiscal, mas ao longo de horizonte algo mais extenso. De qualquer forma, já tenho me pronunciado bastante sobre o que acredito ser necessário para contrabalançar o impacto do auxílio emergencial (reforma administrativa – séria, não o projeto de brinquedo enviado ao Congresso – e a PEC emergencial) e não pretendo me alongar sobre o assunto.

Meu ponto hoje, inspirado, devo dizer, pelo excelente artigo de Fernando Genta aqui mesmo no InfoMoney, é ajudar a mapear o universo dos que devem, em princípio, receber o amparo público. Trata-se, ao menos em tese, das pessoas que tiveram que se afastar do mercado de trabalho por força da pandemia e que não dispõem mecanismos de reposição da renda perdida.

Fonte: PNAD (dados dessazonalizados pelo autor)

Submeto assim aos leitores o gráfico acima, elaborado a partir dos dados da PNAD contínua. Medimos ali a evolução do emprego a partir de fevereiro do ano passado, último mês de evolução positiva do mercado de trabalho, imediatamente antes do impacto da crise sanitária. No caso, uso a classificação pela posição no emprego, isto é, com ou sem carteira de trabalho, ou, no que se refere a empregadores e trabalhadores por conta própria, com ou sem CNPJ, distinguindo também funcionários públicos estatutários.

Este último grupo, aliás, como mostrado acima, registrou expansão de quase 800 mil novos empregados em termos dessazonalizados, de 7,9 milhões no trimestre terminado em fevereiro para 8,7 milhões no trimestre encerrado em novembro. Trata-se de uma ilha de estabilidade (o trocadilho é intencional) no oceano de devastação, dado que todos os demais grupos apresentaram redução expressiva em termos de ocupação.

O maior impacto absoluto foi registrado entre os que estavam empregados com carteira de trabalho, incluindo trabalhadores domésticos: perda de 4 milhões (chegou a 5 milhões, mas houve alguma recuperação) entre fevereiro e novembro. Nesse caso, inclusive, o seguro desemprego, devidamente estendido, poderia ser um instrumento mais preciso de reposição da renda perdida, ainda que não integral para todos os elementos do conjunto.

O segundo maior impacto se deu entre os sem carteira de trabalho, 2 milhões no mesmo período, seguido por empregadores (menos) e trabalhadores por conta própria (bem mais) sem registro no CNPJ, pouco mais de 1,6 milhão. Já a queda entre os registrados no CNPJ foi menos expressiva, 242 mil no período referido. Para todos estes, cuja visibilidade é bem menor (mas não tanto no caso daqueles com CNPJ) caberia alguma versão do auxílio emergencial.

Note-se desde já que tratamos de universo bem menor do que o atendido pela versão inicial do auxílio, que abrangeu quase 70 milhões de pessoas. O desafio, portanto, passa por focalizar o auxílio nos grupos diretamente prejudicados pela epidemia e pela necessidade de distanciamento social dela decorrente enquanto não conseguimos debelá-la por meio da vacinação em massa. Assim, conseguiríamos com um volume bem menor de recursos, atender as pessoas efetivamente prejudicadas pela crise sanitária.

Os dados do próprio auxílio, em suas versões 1.0 e 1.1, já poderiam servir de ponto de partida para a recalibragem do programa, mas isso deveria ter sido pensado e investigado meses atrás para servir de opção para a versão 2.0.  

Não foi feito. Perdeu-se tempo negando a extensão do auxílio e agora provavelmente repetiremos, como notado pelo Genta, os equívocos da versão inicial sem o desconhecimento e necessidade de ação imediata que justificaram a decisão do ano passado.

Não chega a ser surpreendente, dado o histórico do país em termos de avaliação de suas políticas públicas, da qual fugimos consistentemente. Não é por outro motivo que gastamos como países europeus, mas obtemos resultados até piores do que os de países emergentes.



(Publicado 17/Fev/2021)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Bão também...

A autonomia do BC reduziria a chance de interferência política na decisão de taxas de juros, evitando, por exemplo, os erros do “pombinato”. Não é, porém, panaceia, já que o jogo ainda se dá na arena fiscal.

O assunto da semana é a lei que pode dar autonomia ao Banco Central, discussão que estende por mais de um quarto de século, embora muita gente jure que a lei 4.595, que criou o BC no final de 1964, já contemplasse a questão (Roberto Campos, avô do atual presidente, descreve a reunião em 1967 quando o presidente Costa e Silva na prática subordinou o BC aos caprichos do mandatário de plantão). Sou, por motivos óbvios, a favor da medida, mas não acho que sozinha vá nos tirar do atoleiro.

Como regra, BCs ao redor do mundo, pelo menos os sérios, gozam de autonomia, ou independência. Os termos, embora correlatos, distinguem o grau de controle que a autoridade monetária exerce sobre suas atividades.

O Federal Reserve (Fed), por exemplo, é independente. Apesar da lei de sua criação estabelecer um “mandato triplo” (preços estáveis, máximo emprego e taxas de juros de longo prazo moderadas), o Fed define suas próprias metas. Em particular uma meta para a inflação (embora mais recentemente use uma meta para a inflação média ao longo de um período não informado), sem quaisquer objetivos numéricos para o emprego e para as taxas de juros mais longas.

Já o Banco Central Europeu (BCE), modelado para emular o Bundesbank, tem sua meta de inflação (perto, mas abaixo de 2% ao ano) fixada na lei de sua criação. De qualquer forma, a questão crucial é que dirigentes do BCE, assim como os do Fed, possuem mandatos fixos, isto é, não podem ser demitidos a menos de situações específicas. Indo direto ao ponto, o poder político não pode, a princípio, forçar sua agenda, em geral eleitoreira, sobre as decisões da autoridade monetária.

Especificamente no caso do Brasil a proposta hoje em discussão replica esta característica capital, isto é, os dirigentes do BC, presidente e diretores, continuariam a ser indicados pela presidência da República e confirmados (ou não) pelo Senado Federal, mas, uma vez instalados, não poderiam ser demitidos fora de circunstâncias detalhadas na lei. Cumpririam assim um mandato fixo, que no caso do presidente do BC, corresponderia à metade final de um mandato presidencial e à metade inicial do seguinte, configurando a autonomia da instituição.

A meta para a inflação seguiria determinada pelo Conselho Monetário Nacional, um órgão do Executivo, sem objetivos numéricos para emprego ou produto, ou seja, com menor controle sobre o processo do que o Fed, mas similar ao do BCE.

É bem verdade que a maior parte do tempo o BC já se comporta como se a autonomia existisse de direito, mas a institucionalização desse comportamento pode trazer vantagens.

Lembremos, por exemplo, da conduta do BC no período Pombini. Naquele momento o BC se submeteu ao comando do Executivo. Em 2014, para apontar somente um episódio, apesar da inflação em aceleração – represada por controles de preços de energia, combustíveis e intervenções sobre o dólar –, o Copom manteve a taxa Selic inalterada até a reunião imediatamente posterior ao segundo turno das eleições.

Houve também outros momentos de condução errática, com mudanças bruscas de rumo a despeito de sinalização anterior (ficou famoso o caso em que Pombini “descobriu” o risco de recessão por meio das projeções do FMI às vésperas de uma reunião do Copom).

O resultado foi a perda de controle tanto das expectativas de inflação quanto da inflação propriamente dita (e não por acaso, já que as duas estão intimamente ligadas). Assim, o desvio médio anual da inflação relativamente à meta durante o pombinato atingiu nada menos do que 2,67% entre 2011 e 2015; já as expectativas ficaram, em média, 1,4% acima da meta, refletindo a perda de credibilidade do BC. Trazer a inflação de volta foi extraordinariamente custoso.

Contraste isso com o comportamento do Fed, que, apesar das críticas públicas de Donald Trump ao longo de seu governo, manteve o controle da política monetária, fenômeno, aliás, similar ao observado em outros momentos do passado, como durante a eleição de 1992, quando George H. W. Bush (o pai) perdeu para Bill Clinton.

Vale dizer, a capacidade de um BC tomar medidas que garantem a estabilidade de preços, mas podem entrar em conflito com os objetivos políticos dos governantes, deriva precisamente da existência de mandatos fixos para seus dirigentes, que não necessitam baixar a cabeça para proteger seus empregos.

Nesse sentido, a iniciativa, ainda que tardia, é mais do que bem-vinda.

Ao mesmo tempo, porém, não é panaceia, por ao menos dois motivos. Em primeiro lugar porque, mesmo expressa na lei, a autonomia pode não se verificar na prática, como no caso descrito por Roberto Campos. Ou como ocorrido na Argentina, quando o presidente do BCRA, supostamente autônomo, sequer conseguiu entrar no prédio da instituição.

O segundo, mais importante, é que o jogo há muito não é jogado na arena da política monetária, ou seja, na determinação da taxa de juros de curto prazo, mas na arena da política fiscal, isto é, dos gastos públicos e tributação.

Mesmo um BC livre de pressões políticas no processo de fixação da taxa de juros pode perder o controle da inflação caso déficits persistentes levem a um processo de elevação explosiva do endividamento, pois elevações da taxa de juros passam a ser percebidas como fator que agrava adicionalmente a evolução da dívida. Nesse caso tipicamente o prazo da dívida pública se encurta e a fuga de capitais eleva o dólar e o preço dos ativos reais, como imóveis, estoques, etc.

Isso só é evitado com um conjunto de medidas capaz de reverter o aumento do endividamento em prazo razoável, ou seja, reforma fiscal, cuja probabilidade de ocorrência, como escrevi semana passada, tende rapidamente a zero.

Aprovemos, pois, a autonomia do BC, mas conscientes que, sem medidas na frente fiscal, teremos muito pouco a ganhar desse importante – ainda que tardio – passo no sentido da construção institucional.

(Publicado 10/Fev/2021)



segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Nua e crua

A renovação das mesas diretoras no Congresso não é, nem jamais foi, um passo no sentido de avançar na pauta de reformas. Trata-se de movimento defensivo: evitar qualquer risco de impeachment. A dificuldade com reformas se origina no Executivo.

Pelas perguntas que recebo parece ainda haver quem acredite, a despeito de toda evidência disponível, que a eleição das mesas diretoras do Congresso pode dar um novo gás ao processo reformista. Minha tentação, no caso, é seguir meus instintos judaicos e responder à pergunta com outra pergunta: em que universo você mora?

Vamos deixar uma coisa bastante clara: a eleição de Arthur Lira não tem nada, rigorosamente nada, a ver com qualquer apoio a reformas de qualquer natureza.

Quem crê no contrário já parte implicitamente do pressuposto que tanto Rodrigo Maia quanto David Alcolumbre foram obstáculos ao avanço das propostas de emendas constitucionais que tratam dos temas fiscais. Para os crentes pode ser confortável imaginar que malvadões no Congresso impediram o avanço da pauta, bem como do R$ 1 trilhão que seria obtido em privatizações, de preferência nos próximos 90 dias a contar de alguma data jamais especificada; já para quem vive no planeta Terra, em particular no Brasil, é mais do que claro que o Congresso não é, nem de longe, nosso maior problema no que se refere à pauta de mudança.

O exemplo da reforma previdenciária – que parece remoto, mas ocorreu há pouco mais de um ano – deveria bastar. Levou-se adiante, e com participação decisiva do comando da Casa, uma ampla modificação nas regras de aposentadoria. Onde o avanço foi menor, e obviamente aqui me refiro aos militares, a causa não foi o Congresso, mas o Executivo, em particular o presidente da República, que jamais deixou de ser o que sempre foi: um sindicalista que se opôs a todas iniciativas de reforma, assim como privatizações, ajuste fiscal, etc.

Se isso não bastar, tomemos outro caso, o da reforma administrativa. A proposta enviada pelo Executivo ao Congresso só produziria efeitos, se aprovada, para os novos integrantes do serviço público, ou seja, mesmo que fosse impecável em diagnóstico e medidas de correção (o que não é, diga-se), demandaria algumas décadas para remediar os problemas. Nosso tempo, porém, não se conta em décadas e provavelmente também não em anos.

Caso houvesse ambição maior do Executivo, bem como capacidade de articulação no Congresso, o que foi desprezado até o presidente sentir de perto o risco de ser afastado, seria possível inclusive pensar na extensão (menor e mais bem focada) do auxílio emergencial com impacto limitado em 2021, desde que houvesse sinalização forte de controle do endividamento mais adiante. Não há nem um, nem outro.

Ilude-se também que o novo presidente da Câmara seja um campeão das reformas. Obviamente vai fazer todos os ruídos que se espera a favor delas e talvez até ajudar a aprovar alguma coisa sem maiores efeitos, mais para constar. Seu propósito lá, contudo não é avançar a pauta; é simplesmente evitar riscos de impedimento do presidente, barganha para lá de conhecida, contra a qual parcela relevante da sociedade supostamente se insurgiu em 2018.

A bem da verdade, a inflexão política iniciada no ano passado, que culminou agora com a eleição de um legítimo representante do Centrão para a presidência da Câmara, só teve esse objetivo em mente.

A dificuldade com reformas se origina no Executivo por conta de (1) incompetência da Economia; e (2) inapetência do presidente. Nada disso será resolvido com a eleição na Câmara.



(Publicada 03/Fev/2021)