A sociedade não parece ter se dado conta das consequências do desequilíbrio fiscal. Permanece a crença que a dívida denominada em moeda doméstica permite a irresponsabilidade, a despeito da evidência nacional e internacional a respeito. A imunidade ao conhecimento já atingiu níveis de rebanho.
Mesmo depois de tantos anos, há ainda um entendimento precário, para dizer o mínimo, das consequências dos desequilíbrios fiscais, isto é, o excesso de gastos sobre receitas, em particular como podem se tornar um problema incontornável para o país. Apesar disso, ou melhor, por força disso, os riscos associados à evolução problemática das contas públicas seguem crescendo.
A primeira constatação é que a qualquer excesso do que sai em comparação ao que entra vira, de um jeito ou de outro, aumento do endividamento. Pode até não parecer assim num primeiro momento, porque nem sempre as estatísticas conseguem capturar o fenômeno. Foi dessa forma, por exemplo, que a dupla Mantega-Augustin enganou o distinto público durante alguns anos, atrasando pagamentos aos bancos oficiais (conforme confissão pública de Guido Mantega aqui).
Da mesma forma, governos estaduais podem atrasar pagamentos a seus funcionários, o que também não aparece inicialmente na dívida, mas, cedo ou tarde, também salários e pensões atrasadas têm que ser pagos e a conta chega.
Isso dito, a dívida em si é um instrumento, que pode ser bom ou ruim dependendo das circunstâncias. Um governo que enfrente um problema pontual (uma guerra, ou, como hoje, uma epidemia) geralmente não tem condições de bancar imediatamente um volume extraordinário de despesa, inclusive porque suas próprias fontes de receita podem diminuir consideravelmente no período. Nesses casos, o maior endividamento é uma solução adequada para enfrentar dificuldades passageiras.
Mesmo correta, porém, não é livre de consequências. À dívida mais alta corresponde também, em geral, uma carga de juros mais elevada, que tipicamente não se limita ao ano seguinte, mas se estende por um longo período após o evento que lhe deu origem. Se nada foi feito, isto é, se o devedor (no caso o governo) não separar um tanto de seus recursos para pagar, ao menos em parte, o gasto com juros, o desembolso com eles requer endividamento adicional.
Teríamos, pois, um efeito de bola de neve. A dívida seguiria crescendo por força dos juros, assim como qualquer excesso persistente de despesa sobre as receitas. A questão da solvência, isso é, da capacidade de pagar a dívida acabaria aparecendo.
Isso dito, é também verdade que devemos levar em conta, na avaliação da solvência, qual o rumo esperado das receitas relativamente às despesas. No caso de empresas, uma métrica bastante comum é o uso da razão dívida/EBITDA (Earnings Before Interest Taxes and Depreciation); já no caso de países, a capacidade de arrecadação está intimamente ligada à evolução do produto, daí o uso disseminado da razão dívida/PIB.
Países de crescimento rápido podem até arrecadar menos hoje do que gastam sem maiores problemas, porque se espera que a receita tributária cresça (mais ou menos) em linha com o produto, o que, em algum momento à frente, indicaria capacidade de pagamento, portanto baixo risco de insolvência, desde que despesas cresçam a uma velocidade menor. Já países que crescem pouco, em particular em comparação à taxa de juros que pagam sobre sua dívida, apresentam, como regra, maior risco de insolvência.
Notem que isso pode (e costuma!) agravar o problema. Quanto maior o risco de insolvência, tanto maior a taxa de juros cobrada do devedor, porque inclui não só a remuneração “normal” do emprestador, mas também a compensação pelo risco de ficar a ver navios no dia do vencimento.
Há, claro, quem afirme que isso não é um problema para quem deve na sua própria moeda. Segundo alguns porque sempre seria possível pagar a dívida criando moeda, isto é, o BC poderia recomprar a dívida pública em troca de maiores reservas bancárias.
Outros, em argumento similar, mas não idêntico, sugerem que, como o BC controla a taxa de juros, ele poderia fixá-la em nível que impossibilitasse a dívida de entrar numa espiral fora de controle.
Ambos, de uma forma ou de outra, ignoram o papel da taxa de juros no comportamento da inflação, assim como a existência de outras taxas de juros além da taxa de curtíssimo prazo (no Brasil, a Selic) geralmente utilizada como instrumento de política monetária.
A taxa de juros de curto prazo é usada geralmente pelos BCs como ferramenta de controle da inflação (exceto, é claro, quando chega a zero e não pode ser mais reduzida de forma significativa). Se o BC fixá-la em patamar inferior àquele consistente com a inflação na meta, esta tenderá a ficar acima dela, como demonstrado, por exemplo, no mandarinato de Alexandre Pombini à frente do Banco Central. De forma equivalente, se o BC recomprar a dívida com emissão de reservas bancárias a taxa Selic efetiva cairia abaixo daquela consistente com a inflação na meta, com os mesmos resultados.
A dívida seria então “paga” por meio de inflação mais alta, que corroeria seu valor real, isto é, sua capacidade de comprar bens e serviços. É uma rima, mas certamente não uma solução, em particular para aqueles que não têm formas de se proteger da inflação.
Adicionalmente o argumento ignora também, como dissemos, a existência de taxas de juros para prazos mais longos, que não são determinadas pelo BC, mas por forças de mercado com base na trajetória esperada da taxa Selic, à qual são adicionados prêmios de risco, dentre eles o descrito acima, isto é, o risco de inflação mais alta entre a emissão do título do Tesouro e seu pagamento. Quanto maior a inflação esperada naquele prazo, tanto maior a taxa de juros.
Nesse caso, se o Tesouro não quiser sancionar as taxas de juros mais altas por prazo mais longo será obrigado a “encurtar” a dívida, emitindo apenas por períodos bastante curtos. No limite poderia rolar, como fizemos anos atrás, a dívida (ou grande parcela dela) por um dia, remunerada à taxa Selic. Caso o BC fixe então a Selic em nível inconsistente com a meta, a inflação subirá, processo que pode ser agravado pela enorme massa de dívida vencendo em prazos muito curtos, o que eleva a probabilidade de fuga para ativos reais, como imóveis e ouro, bem como o dólar.
Resumindo,
permitir que a dívida (ou a razão dívida-PIB) cresça sem limites acaba levando
a uma situação insustentável, mesmo se a dívida for denominada em moeda nacional.
Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff (This Time is Different, 2009), por exemplo, documentaram algumas dezenas de calotes domésticos, dentre elas o Plano Collor, de nada saudosa memória. Nossa própria história inflacionária, intimamente ligada ao descontrole fiscal, deveria servir de alerta, mas, como já disse certa vez, a imunidade ao conhecimento já chegou aos níveis de rebanho no país.
(Publicado 20/Jan/2021)
1 comentários:
Muito bom o post. Você já leu o livro do Gary Cox, "Marketing Sovereign Promises", sobre a importância do monopólio do parlamento sobre emissão da dívida? Acho que toca nos desafios estruturais de por que alguns países têm dificuldade de ter trajetória racional de dívida.
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